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Bolsonaro, Tarantino, Jordan Peele e por que beber leite puro é um símbolo de supremacia?

Mesmo antes da polêmica envolvendo o presidente Bolsonaro, o cinema já retratou o ato de beber leite como uma demonstração de poder em várias oportunidades.

cena do leite em bastardos inglorios
Foto: Reprodução/YouTube

O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) se envolveu em mais uma polêmica, dessa vez durante uma live que estava sendo realizada no dia 28 de maio. Ele tomou um copo de leite puro ao longo da transmissão, a princípio em referência ao “desafio do leite” proposto por ruralistas do estado do Paraná. Porém, o que tem repercutido é a relação desse gesto com um costume de grupos neonazistas que reforça uma ideologia supremacista.

Apesar de não ser possível associar diretamente o gesto do presidente com intenções de cunho ideológico, é fato que beber leite puro em público é um símbolo utilizado por simpatizantes do nazismo e membros de movimentos de extrema-direita, principalmente nos Estados Unidos.

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Essa estratégia semiótica que sugere a superioridade dos autores da ação já é conhecida há muito tempo e tem sido explorada, inclusive, no cinema. Não são poucos os exemplos de personagens que aparecem em cena bebendo leite puro para demonstrar algum tipo de poder ou mascarar uma faceta impiedosa. A partir de um levantamento do canal Now You See It, beber leite pode ser interpretado narrativamente de duas formas: 

  • dominância e controle sobre a ingenuidade e fragilidade de outros;
  • amenização da aparência autoritária e rígida de algum personagem.

Não há dúvidas, portanto, que beber leite é algo relevante quando aparece em tela.

Um dos aspectos interessantes de retratar um adulto bebendo leite é percebido em produções como Bastardos Inglórios (2009). O coronel Hans Landa (Christoph Waltz), um dos personagens mais icônicos de Quentin Tarantino, pede um copo de leite para a família Dreyfus quando visita a casa deles na França. Esta é uma óbvia manifestação de superioridade por parte de Landa, que promove um massacre logo em seguida. 

Tarantino insere cirurgicamente o leite como um elemento que representa a vulnerabilidade dos franceses, uma sobreposição de forças que coloca o personagem de Waltz em clara situação de privilégio.

Foto: Reprodução/YouTube

Já nas cenas finais de Corra! (2017), de Jordan Peele, Rose come cereal com leite enquanto escolhia sua próxima vítima, mas com a bebida separada. O simbolismo do racismo está presente em todo o filme, mas esta cena talvez tenha a melhor construção de todas. Pense bem: quem diabos come cereal separado do leite?

Trata-se de uma metáfora, claro. Ela separa o branco (leite) dos “de cor” (cereal), colocando-se em uma posição superior na qual ela usa uma suposta inocência para atrair novas vítimas.

Foto: Reprodução/YouTube

O consumo consciente do símbolo da inocência transforma essas figuras em seres assustadores. Em Laranja Mecânica (1971), a gangue de Alex (Malcolm McDowell) aparece em um take bastante intimidador bebendo leite em um bar. Os dois significados da bebida estão presentes aqui: a representação de uma inocência que deveria existir em adolescentes como eles, mas também o caráter perverso do protagonista, que chega a aterrorizar os próprios colegas. Tudo se reflete nas campanhas sádicas que Alex participa e, acima de tudo, que ele lidera.

Foto: Reprodução

Na primeira temporada da série Westworld (2016-), um dos autômatos que está ligado a uma narrativa brutal e violenta aparece sempre bebendo uma garrafa de leite. Quando ele é traído pelo seu colega, o outro homem toma não apenas seu lugar como homem dominante daquela história, mas também seu hábito de beber leite.

Em Mad Max: A Estrada da Fúria (2015), os dois significados também são bastante claros: o leite materno dá mais vigor físico aos filhos de Immortan Joe, que têm acesso aos seus nutrientes desde crianças — outro exemplo de que a bebida é um sinal de poder.

Já o personagem Max (Tom Hardy), turrão e inexpressivo, passa por uma transformação que o deixa mais sensível e dá a ele mais empatia. Pouca gente percebeu, mas o símbolo dessa mudança foi quando o personagem lavou o rosto com o leite materno (não que o leite tivesse poderes mágicos de amolecer corações de pedra, mas ele funcionou como um elemento da narrativa para marcar essa transição).

Voltando para a vida real, em 2017, um grupo alt-right (como é conhecido um dos braços da extrema-direita nos EUA) invadiu uma transmissão ao vivo bebendo galões de leite e com gritos de ódio. Clique aqui para assistir à ação do grupo.

No mesmo ano, o ativista supremacista Lucian B. Wintrich teve uma palestra interrompida na Universidade de Connecticut também por estar bebendo leite. O participantes não gostaram da provocação e entoaram gritos de “go home, nazi”. 

A partir de 2018, a alt-right passou a ironizar as críticas à associação do leite puro com manifestações políticas, com o objetivo de desqualificar as denúncias realizadas pela imprensa e por cientistas. 

Se parece teoria da conspiração, há um artigo publicado ainda em 2018 no The New York Times sobre isso, que mostra como o símbolo foi apoderado pelo movimento supremacista lá em terras norte-americanas.

O fato de um ex-secretário de Cultura do governo brasileiro ter sido demitido após replicar um discurso nazista não é um bom sinal, claro. Mas estão crescendo as vozes que afirmam que Bolsonaro quis novamente copiar um dos símbolos do crescente movimento político no país governado por Donald Trump.

Fugindo das conjecturas e voltando às certezas, o ato de beber leite puro em público tem um caráter supremacista e o cinema sabe utilizar essa característica muito bem. O segredo é conseguir identificar quando esse recurso é empregado e ter o discernimento para separar o retrato de um conceito da apologia a qualquer tipo de ideologia.

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