Henrique Cartaxo materializa a saudade em canções no ótimo disco de estreia, "Bai"

Ouça o novo disco de estúdio do baiano Henrique Cartaxo, "Bai", que tem inspirações que vão de Tom Zé a Caetano Veloso passando por Radiohead.

Henrique Cartaxo - Bai

Henrique Cartaxo é um cantor, compositor e instrumentista baiano que, como tantos outros nomes do entretenimento no Brasil, deixaram seu lar para ir a São Paulo.

Pois o período entre 2012 e 2017 serviu para que ele se adaptasse à maior metrópole do país e, claro, absorvesse inspirações no processo para trabalhar em sua arte.

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E o resultado disso é o seu disco de estreia, Bai, que tem premiere exclusiva hoje aqui no Tenho Mais Discos Que Amigos!

Cancioneiro, Cartaxo diz que sua maior inspiração é o mestre Caetano Veloso, mas o caldeirão de influências vai de Belchior a Radiohead passando por Tom Zé, além de nomes da nova música brasileira como Giovani Cidreira, Maria Beraldo e Peri Pane.

 

Henrique Cartaxo – Bai

Ao falar sobre esses nomes todos, inclusive, Cartaxo afirmou:

A minha referência consciente maior é a obra de Caetano Veloso, como é para tantos cancionistas. Me inspiro muito nessa corrente da música brasileira que usa a canção como forma de refletir sobre a vida, sobre os acontecimentos, sobre o amor, o infinito e a finitude. Para muitas pessoas no Brasil, a canção é a psicanálise, a terapia, a filosofia, a medicina. É nossa maneira de pensar talvez mais disseminada e frutífera.

E ao transformar as saudades em canções, ele ainda simbolizou bem o período de isolamento em que vivemos ao pedir para que pessoas próximas gravassem vídeos em suas casas e mandassem para ele. Como resultado, além de já estar nas plataformas de streaming, Bai também ganhou uma versão visual belíssima no YouTube.

A produção musical de Bai é assinada por Ivan Gomes e André Bordinhon, e além das pessoas queridas que enviaram seus vídeos, o álbum ainda conta com participações especiais de Inés Terra, Daniel Dias, Marina Beraldo (Bolerinho) e Rafael “Chicão” Montorfano (Quartabê).

Aperte o play logo abaixo e mergulhe pelo mundo sonoro de Henrique Cartaxo, que versa sobre a vida de um imigrante em São Paulo, seu amadurecimento e naturalmente, as relações humanas dentro de uma cidade tão complexa, logo abaixo.

Ao TMDQA!, ele criou um faixa a faixa exclusivo que irá te guiar pelas canções e você pode encontrar logo após o vídeo.

Divirta-se!

1 – “Taiobas”

Essa canção começou a ser escrita pelo fim. Estava passando uns meses em Paraty, trabalhando em um filme, e fiquei esse tempo numa casinha com um lindo quintal. Neste quintal se destacava um poderoso pé de taiobas. Pois eu passava dias inteiros olhando pra elas, observando o desenho das folhas, vendo elas crescerem. Achava lindo como a água da chuva acumulava e escorria de uma folha pra outra. Pensei em como nossos sonhos se dissipam de manhã, como essas gotas da chuva da noite que vão escorrendo e secando. Saíram daí os versos finais e depois escrevi o começo. As taiobas que aparecem no vídeo da música são as próprias musas inspiradoras, as taiobas originais.

2 – “A Vizinha”

Eu sou baiano mas essa talvez seja no disco a faixa mais mineira, pelo menos na sonoridade. Isso tem motivo: eu tinha acabado de passar um fim de semana acompanhando o lançamento do disco do meu amigo e parceiro Daniel Dias, que tinha como um dos convidados especiais Toninho Horta. Ver os dois ensaiando juntos e conversando tudo e mais um pouco que há pra conversar sobre harmonia com certeza deixou uma sementinha em mim. Estava já com essa letra meio começada e daí a música saiu. Pra gravar, chamei outro ídolo e amigo meu que é Rafael Montorfano, da Quartabê, que entendeu todas as idéias harmônicas quase que imediatamente e fez uma interpretação emocionante ao piano. A faixa ficou exatamente como eu sonhava quando comecei a conceber o disco.

 

3 – “Hoje Vai Chover”

Por um tempo achei que essa faixa ia se chamar “Janeiro em São Paulo”. Singela e sincera, ela é sobre aqueles dias de verão no sudeste em que a gente vai vendo desde o meio da tarde a chuva se aproximar, do sol quente ao fechar do céu, o vento batendo, a chuva chegando. Em Salvador não chove muito no verão, se chove é de repente, vem rápido, vai rápido, então essa dinâmica, se repetindo todo dia, me chamou à atenção. A introdução da faixa tem um quê de caixinha de música e a catarse no final tem uma lembrança de maracatu, é uma mistura legal de estados de espírito. Tem a participação especial de Marina Bastos, do Bolerinho, que contribui pra esse clima, essa contemplação de fim de tarde.

 

4 – “Piatã”

A letra de Piatã é cheia de coisas que falei quando era criança, algumas das primeiras frases que formei, que meus pais acharam interessantes. Não pela minha própria lembrança, mas pelo que eles me contam. Por isso algumas construções meio erradas como “tem um tempo que eu fico calado, acho até estranho quando alguém me fala”, que talvez saísse mais certinho se fosse “Às vezes fico calado por um tempo e acho até estranho quando alguém fala comigo”. A história do coqueiro também é real. Uma vez vimos um coqueiro tombar na praia, meu pai e minha mãe olharam pra mim esperando uma reação espantada e eu só disse calmamente “O coqueiro caiu”, essa oração de uma construção gramatical das mais básicas, como se estivesse descrevendo uma coisa qualquer que via, nesse processo de aprender a falar. Outra: passamos por uns 3 ou 4 dias de chuva forte em Salvador e fiquei sem poder sair pra brincar, reclamei, lembrando das bolachas velhas: “estou parecendo uma bolacha guardada”. Entrou na música. Tudo isso ressignificado pela minha experiência de ser mais um baiano vivendo em São Paulo, com saudades da infância em Piatã.

 

5 – “Manifesto”

“Então se eu cantar a dor de um amor, solidão ou loucura, pode ser a arquitetura de uma ponte mais segura entre eu e você” – hoje nesse momento de isolamento social, me pego pensando qual seria a arquitetura de uma ponte segura entre todos nós. Mas a inspiração da música é realmente um amor que acabou. Ela se chama Manifesto porque declara o motivo fundamental por que eu canto, como se eu estivesse lançando um movimento artístico solitário: vou cantar para cuidar do coração, porque cantar pode sarar, pode ajudar aceitar o destino e ficar realmente em paz. Mesmo que em outras canções eu fale de mágoas, “não tome os versos pra você”. Manifesto referencia muito Drão, de Gil, e foi com esse propósito que coloquei nela a palavra “arquitetura”.

 

6 – “Servo Bardo”

Trago nessa música um episódio real que me aconteceu numa sessão de psicanálise e que me fez trocar de analista. Ela traz um desafio, para mim mesmo e para outros homens, de renegar ao papel de dominador que o homem é educado a representar nas relações amorosas, mas me colocando eu mesmo como bobo, escravo, servo, bardo. São lugares que se pode assumir, assim como o da igualdade, da honestidade, das propostas abertas para a concretização de desejos mútuos. Afinal, ao contrário do que dizem os nostálgicos, um homem pode ser decente sem comprometer as dimensões da sedução, do erotismo e da masculinidade.

Daniel Dias fez a meu pedido o arranjo de violão para essa faixa, e o gravou. Queria trazer pra ela a sofisticação do samba-canção com um certo clima de jazz. Ela tem um solo elegantíssimo de André Bordinhon, que é também um dos produtores musicais do disco.

 

7 – “A Tarde”

A canção mais antiga do disco. Foi feita em 2008 e naquele momento era uma canção solar, que celebrava a vida. Em 2018 quando eu, Ivan Gomes e André Bordinhon começamos a criar os arranjos, o tom foi ficando mais sombrio. Ainda não era sobre a Quarentena, mas com o recrudescimento político no Brasil, a idéia de “poder sair pra passear” livremente e depois “dormir” tranquilo foi começando a parecer mais distante, mais nostálgica, diante das preocupações que se assomavam e que agora estão tão presentes, tão agudas.

 

8 – “O Céu de São Paulo”

“O céu de São Paulo é reto como um teto, onde eu ando cabisbaixo de cabeça pra baixo”. Quando eu era adolescente, em Salvador, conheci uma paulistana que me falou impressionada de como o céu na Bahia é de fato uma abóbada, que em São Paulo não se tinha de jeito nenhum essa sensação, que era mais como um teto sobre as cabeças das pessoas. Quando finalmente vim pra São Paulo eu vi que era a mais pura verdade. Esse verso não é uma metáfora, é mesmo uma observação. Talvez tenha a ver com a latitude, não sei. Mas a canção segue falando de uma certa desorientação que a falta de horizonte, a falta de um limite com o mar, pode causar. A sensação de que estando de cabeça pra cima, ou pra baixo, ao meu redor sempre estão infinitos prédios. A faixa entra numa catarse, que é uma homenagem ao Radiohead, pra dizer como num mantra que “São Paulo é grande, mas não é maior que o mar.”

9 – “Um Gigante”

Sempre gostei de cantar alto e forte com os amigos, nas rodas de violão, mas minhas músicas eram sempre calmas e baixinhas. Talvez por eu gostar de compor de noite, sozinho. Mas eu buscava uma canção pra extravasar. O verso central de Um Gigante ficou esperando mais de uma década. Em 2006, logo que tinha chegado em Campinas pra fazer faculdade, escrevi “Eu sou um gigante que nada no céu e abraça o sol. Meu corpo ora é ar, ora é fogo.” Ao longo dos anos, tentei várias versões, várias letras, várias melodias e harmonias. Até que um dia depois de um show uma amiga astróloga me disse “a sua voz é como um Júpiter acolhedor, você nos convida a habitar nela”. O planeta gigante me trouxe de volta os versos e escrevi de uma vez todo o resto da canção, isso em 2018. Ela é um grito de força e potência e foi quando terminei ela que decidi que estava na hora de gravar o disco.

10 – “A Musa do Xerife”

Essa foi a minha primeira música a fazer sucesso entre os amigos, que o pessoal canta nos shows, principalmente o refrão, “Seu coração é o Texas, onde os fracos não têm vez.” A música toda referencia o filme, Onde os Fracos Não Têm Vez, dos Irmãos Cohen. Sempre senti que apesar de toda a ação da perseguição, o filme era sobre a dor de um xerife que estava se sentindo ultrapassado diante dos males de hoje, para ele incompreensíveis. Essa incompreensão eu comparo com a minha diante de um amor. Nela referencio Caetano Veloso, no próprio ato de referenciar o cinema, e cito diretamente a Saudosismo que é uma citação da citação de “Chega de Saudade”, um “apud”, digamos assim. Decidimos fazer A Musa do Xerife só em voz e violão pra realmente trazer à frente minha presença, meu coração aberto, e saudar às que me ouviram cantá-la nas rodinhas e me estimularam a prosseguir musicalmente.

11 – “Presente”

Uma anedota do mundo das artes plásticas diz que se perguntou uma vez a Michelangelo como esculpir um cavalo no mármore. Michelangelo teria respondido que “é muito simples, é só tirar do mármore tudo que não for um cavalo”. Cito isso na música: “A manhã só pra trabalhar entre a lama e o barro, a tarde inteira pra tirar um pedaço de mármore, dia após dia o milagre da realidade, um passo depois do outro, o barro e o mármore, pra de repente achar o cavalo”. Mas diferente da anedota, valorizo a diligência do artista, fazer-se presente como um esforço diário. Na minha cabeça essa música é uma mistura de Paula e Bebeto, de Milton e Caetano, com Amor de Índio, de Beto Guedes, com um toque de Vento no Litoral, do Legião Urbana. Ela foi de fato um presente para dois amigos muito especiais.

 

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