Rap

Há 20 anos, Sabotage mostrava de uma vez por todas que o "Rap É Compromisso"

Um dos maiores discos da música brasileira, "Rap É Compromisso" completa 20 anos em 2020 e o legado de Sabotage se mostra mais vivo do que nunca.

Sabotage
Foto por Marcio Simnchmono

Respeitado pelos Racionais e apadrinhado pelo icônico grupo RZO, o rapper paulista Sabotage tem uma das histórias mais lendárias da música brasileira e, apesar de seu triste fim, envolve um legado inapagável para o Rap no país.

Há 20 anos, logo após a famigerada virada do milênio, Mauro Mateus dos Santos saía do reconhecimento underground para levar sua música ao Brasil todo, mostrando de uma vez por todas que o Rap É Compromisso.

Um talento descoberto por Mauro depois de uma vida perigosa no tráfico, a música fez sua vida mudar e mostrou ser seu verdadeiro chamado — canções como “Um Bom Lugar”, “A Cultura” e, claro, a faixa-título do disco não deixam nenhuma dúvida disso.

Rap É Compromisso

A paciência de “Sabota”, como ficou conhecido, é inquestionável: o cara começou a aparecer nos concursos de Rap entre 1988 e 1989, no mínimo 11 anos de gravar seu disco de estúdio. Foi por lá que ele impressionou alguns nomes da cena, como o próprio RZO, além de Mano Brown Ice Blue, integrantes do Racionais, que valorizaram sua performance e, como todos os presentes, ficaram incrédulos ao descobrir que aquele rapaz compunha e apresentava suas próprias músicas (e assim o fez sempre).

A revolução promovida pelo músico veio em diversas formas, mas é claro que as letras estavam à frente de tudo. Nelas, ele costumeiramente narrava a realidade da Zona Sul de São Paulo, onde nasceu, cresceu e, infelizmente, morreu cedo demais aos 29 anos em 2003, vítima de um assassinato que nunca foi devidamente explicado.

O seu viés comunicativo e a sua coragem de se colocar à frente de um movimento que se via muito receoso em lidar com uma mídia desacostumada a humanizar a periferia e seus habitantes fizeram com que Sabotage ganhasse um espaço até então inédito, o levando até mesmo ao cinema, onde participou de O Invasor (2002) e mais famosamente em Carandiru (2003).

Sabotage e parcerias

Dentro do âmbito musical, Sabotage inovou ao explorar ritmos diversos em suas bases, além de ter um flow — o nome que se dá ao estilo próprio de cada rapper — considerado inigualável por muitos.

Em uma época onde o Rap nacional vivia muito fechado dentro de sua própria cena, o que é amplamente justificado pelas circunstâncias em que esses grupos foram se formando, Mauro não teve medo de se juntar, por exemplo, com o também saudoso Chorão (Charlie Brown Jr.) na icônica faixa “Cantando pro Santo”.

O protagonismo do “Maestro do Canão”, como ficou conhecido em homenagem à comunidade de suas origens, só foi possível graças à sua permissividade em colaborar com tantas vozes importantes. Além de Chorão e dos integrantes do RZO, artistas como Negra LiBlack Alien Rappin’ Hood marcaram presença no Rap É Compromisso e ajudaram a transformar aquelas faixas em hinos que já duram gerações.

Mas talvez o maior rompimento de sua carreira tenha acontecido ao se juntar com os ícones do metal nacional Sepultura em uma cover de “Black Steel in the Hour of Chaos”, do Public Enemy, lançada pouco tempo após a morte do rapper.

Legado, influência e homenagens

Em uma matéria de 2016 d’O Tempo, que celebrava a influência do músico, o rapper Roger Deff (Julgamento) falou sobre o legado do paulista:

O Sabotage foi um artista diferenciado dentro do rap por várias razões, mas acho que a principal era a visão que ele tinha das coisas, de conseguir ver o estilo inserido, sem ter que fazer concessões pra isso. Ao mesmo tempo, seu jeito de fazer rap trazia uma certa liberdade. Ele narrava as mazelas também, nunca deixou de fazer isso, mas apresentava uma forma de escrita e de ‘flow’ muito únicas, longe de qualquer padrão. Eu tive a oportunidade de conversar com ele, antes de ele lançar o disco que o consagrou, e era um cara com um olhar muito atento a tudo, que entendia, já naqueles dias, a importância de nos fortalecermos em rede. Para o Rap nacional e para o meu trabalho, tanto solo como com o Julgamento, ele ensinou na prática que as fronteiras não precisam existir. Sabotage, em vida, rompeu todas.

As homenagens à sua obra vieram das mais diversas formas e culminaram com o lançamento do disco póstumo Sabotage (2016).

Além de reunir nomes como Rappin’ Hood e Dexter, que já haviam colaborado com Sabota em vida, o rompimento de fronteiras continuou com a inserção de músicos da cena atual — a cantora Céu e o duo Tropkillaz são bons exemplos.

Em uma entrevista à Revista MTV em 2002, o rapper deu uma declaração que vale, e muito, para encerrar esse especial:

Moro na favela desde os 2 anos e, dos 8 aos 19, andei no crime que nem louco. Saí por causa de Deus, porque polícia não intimidava, tapa na orelha só deixa a criança mais nervosa.

Em meio a tantos protestos tomando conta do mundo, a afirmação de Sabotage serve no mínimo para trazer alguma reflexão a todos nós. E nada melhor do que colocar um disco tão cheio de mensagens para acompanhar esses pensamentos — relembre Rap É Compromisso na íntegra logo abaixo.