Entrevistas

"Encontro de Almas": Milton Nascimento e Criolo falam com o TMDQA! sobre projeto em parceria

Nas primeiras gravações de estúdio feitas em parceira, Milton Nascimento e Criolo iluminam o caos dos tempos atuais com quatro ótimas releituras.

Criolo e Milton Nascimento
Foto: Fred Siewerdt

Distanciamento, tristeza, incerteza, ódio, violência e medo. O momento não é fácil para ninguém. As relações sociais têm sido colocadas à prova diante de um momento tão delicado para a história humana, e é justamente em momentos como esses que a humanidade mostra suas maiores vulnerabilidades.

Mas eis que, em meio ao caos, Criolo e Milton Nascimento se unem para provar que Existe Amor. Em formato de EP, o lançamento dessa incrível parceria contempla quatro músicas brilhantemente arranjadas por Arthur Verocai. É uma parceria que planta em nós os melhores dos sentimentos.

Publicidade
Publicidade

Ambos os artistas responderam algumas perguntas do TMDQA! de forma separada, e isso apenas nos ajudou a concluir o quanto estavam sintonizados durante a produção do EP. Confira o resultado abaixo:

Foto: Divulgação

 

Uma amizade frutífera e sincera

De onde surgiu essa parceria? Criolo conhece Milton, obviamente, por causa de seu legado na música brasileira, que deixa marcas na música nacional desde os anos 70. Mas o consagrado compositor mineiro, sempre aberto a novas experiências musicais, é grande fã do singular trabalho artístico de Criolo.

Eles já se fizeram até uma turnê juntos em 2014 (Linha de Frente). No entanto, foi só agora que eles fizeram o primeiro lançamento em parceria.

Milton Nascimento: Somos amigos desde quando ele lançou seu primeiro disco [Nó na Orelha]. E a primeira vez que eu ouvi falar dele foi através de um vídeo onde ele fez uma versão impressionante de “Cálice”, onde ele cita o Chico e eu. Então, eu fiquei muito fã dele desde o começo.

Criolo: Em um dos intervalos do ensaio do Prêmio da Música Brasileira de 2013, o Ney Matogrosso me chamou para ficar no camarim com ele. Para a minha surpresa, ele estava dividindo o camarim com Milton Nascimento. Eu levei um susto assim que entrei. Foi uma mistura de sentimentos absurda vê-lo ali, um verdadeiro patrimônio da música brasileira, tal como Ney. Eu fiquei quieto, quase paralisado. Quem quebrou o gelo para termos assunto foi o Toninho Horta, que entrou e começou a tocar em um piano que estava ali no camarim. Ele pegou um sanduíche, e parte dele caiu acidentalmente em mim. Toninho pediu desculpa e, nisso, Milton deu risada. “Meus amigos são danados, né?”, falou Milton, com muito carinho. Foi isso que fez eu abrir a boca e falar alguma coisa com ele. Demos risada juntos e não paramos mais de se falar.

 

Admiração mútua

Um dos mais interessantes aspectos de uma parceria musical é o fato de que os artistas envolvidos podem contribuir com suas singularidades. Milton e Criolo partilham de grande sensibilidade musical, e deixaram suas marcas no EP.

Mais do que o simples objetivo de atingir maior público com uma colaboração, a admiração que esses artistas sentem entre si foi um tempero essencial para alcançar o resultado que vemos em Existe Amor.

Foto: Fred Siewerdt

Criolo: A arte de Milton faz com que você se perceba vivo, e isso é impagável. Eu acho que isso tudo é encantador. Depois que eu o conheci, isso se potencializou de um jeito tão maravilhoso que eu queria que todo mundo pudesse vivenciar isso. Ele é muita pureza, sabe? É muito “tudo de bom”. Tudo de bom que vocês possam imaginar que o ser humano é capaz de criar. Isso tudo vai para a musicalidade dele, e é o que impacta as pessoas. Seus shows são como orações de celebração à vida, ao amor e às possibilidades. É força para vencer, para sorrir e para seguir.

Milton: Tem até um lance que ele fala, de que o nosso encontro é “um encontro de almas”. E na verdade é bem isso mesmo… A nossa troca é direta, e eu aprendo muita coisa com ele, sempre. O Criolo é um dos artistas mais sensíveis com quem eu já convivi. Conheço poucas pessoas que conseguem fazer música do jeito que ele faz.

Gravar junto, portanto, foi uma experiência maravilhosa e emocionante para as duas parcelas dessa equação. Eles dizem, no entanto, que nada foi com a intenção de “agregar para a carreira”. A ideia foi fazer algo natural, que simbolizasse uma grande amizade. “Você está diante do Milton Nascimento! Isso já é uma coisa que mexe com você em todos os cantos da sua parte espiritual”, conta Criolo.

 

Repertório

Existe Amor conta com releituras impecáveis de “Cais” (1972) e de “Não Existe Amor em SP” (2011), além de uma versão de “Dez Anjos“, que foi composta pela dupla anteriormente. Já o encerramento fica por conta da envolvente “O Tambor” (Arthur Verocai/Criolo). Sem uma narrativa definida, o EP se desenvolve de maneira fluida com uma temática entrelaçada entre as músicas: carinho, afeto, amizade e respeito. Tudo isso sob a direção musical do grande Daniel Ganjaman.

Sobre as novas versões, eles contam:

Milton: A escolha de “Cais” para este projeto aconteceu logo depois de uma homenagem que o Serginho Groisman fez pra mim no Altas Horas. E entre vários amigos que o Serginho convidou para cantar coisas minhas, “Cais” foi a música que o Criolo cantou no programa. Daí veio a ideia de gravá-la. Esse projeto, Existe Amor, foi um encontro de almas. Sem medo nenhum do clichê.

Criolo: “Dez Anjos” foi originalmente tecida para Gal Costa, para o disco Estratosférica. Ela ligou para o Arthur e pediu uma música dele. Um belo dia, eu estava nos ensaios para o filme “Tudo Que Aprendemos Juntos”, que é protagonizado pelo meu amigo Lázaro Ramos. A gente tinha acabado de fazer uma das atividades, aí um colega meu disse, de repente: “Rapaz, o Milton quer falar com você!”. Eu fiquei assustado. Ele disse que a amiga dele estava fazendo um disco, e que ele queria que eu fizesse a letra. Fiquei uns tempos sem dormir pensando nisso, mas acabou dando tudo certo. Ele transformou esse texto nessa coisa maravilhosa aí.

Criolo: Ele gosta da música [“Não Existe Amor em SP”], aí pensei “Vamos nessa!”. Não sei descrever a emoção que é ver essa canção na voz do Milton. Era difícil segurar o choro ali, cara. É difícil segurar o choro até aqui falando. Foi uma sublimação total. É muito amor envolvido. (…) É uma reafirmação do lance que foi falado há 10 anos. O amor está dentro do coração de cada pessoa.

 

Contexto

Além da pandemia do coronavírus, o Brasil vive um momento cada vez mais delicado em termos sociais e políticos. A arte, importante instrumento para a cultura do país, tem sido massacrada e desvalorizada. Diante disso, o encontro épico entre Milton e Criolo nos aquece. É uma luz em meio à escuridão. É, ao mesmo tempo, um convite à reflexão, a um olhar atencioso com o mundo.

Criolo: Essa inquietude que o artista brasileiro provoca no mundo é o que dá movimento e cria calor. Isso causa muito medo em quem quer que tudo continue como está, para quem quer que você seja reprimido e humilhado. Essas pessoas morrem de medo dos artistas, e ficam inventando mil monstros. A arte tem aquilo que ninguém tem: uma chave para a porta do conhecimento e da reflexão, para você se perceber alguém, para você se perceber um ser único que merece todo o amor, todo o afeto e todo o respeito. Passa muito pela luta por direitos e por dignidade. Quem quer que tudo permaneça no caos, não está ligando muito para a dignidade para o povo, né?

Milton: A arte em geral, não só a música, é o que ainda faz com que as pessoas possam resistir com suas próprias forças. Por isso ela é tão importante. Ainda mais num momento obscuro como este que estamos vivendo agora. Temos um governo que não confia na ciência, que faz piada com a palavra de cientistas renomados e que, além de todo esse absurdo diário, ainda tem um absoluto desprezo pela arte de seu próprio país. É uma tragédia sem parâmetro.

Sair da versão mobile