Giovanna Moraes vai de Fiona Apple a Tom Zé no ótimo "Direto Da Gringa"; ouça

Ouça "Direto Da Gringa", novo disco da brasileira Giovanna Moraes que mistura experimentalismo e música pop ao melhor estilo Fiona Apple.

Giovanna Moraes

Giovanna Moraes é uma artista que não tem medo de experimentar.

Em 2018, ela lançou Àchromatics, com músicas em inglês, e começou a dar as caras da sua sonoridade que mistura elementos do folk, do rock e da música alternativa.

O lançamento do álbum, porém, não apenas a colocou nos holofotes como também escancarou uma série de impasses e para resolvê-los, Giovanna encarou a onda de frente e resolveu produzir: aí nascia Direto Da Gringa.

Logo de cara, a primeira grande mudança fica exposta com as composições em português, e se agora a artista continua celebrando as influências de nomes como Fiona Apple, Patti Smith e Ellza Fitzgerald, também o faz com Tom Zé e Clarice Lispector ao encarar o desafio de compor na nossa língua.

Para celebrar o lançamento, o TMDQA! pediu para que Giovanna Moraes explicasse cada uma das faixas do álbum e como resultado você pode ler as suas declarações a respeito no faixa a faixa exclusivo a seguir.

Divirta-se!

Giovanna Moraes – Direto da Gringa

Olá Tenho Mais Discos que Amigos!, muito prazer, eu sou a Giovanna Moraes e hoje lancei meu novo disco, o segundo da minha carreira, chamado Direto da Gringa. A ideia desse disco era compor em português, o que pra mim era novidade. Então, como parte do processo criativo desse novo trabalho, mergulhei fundo em pesquisas sobre a língua portuguesa.

Ouvi muita música brasileira, clássicos como Elis Regina, Tom Zé e contemporâneos como BaianaSystem e O Terno e comecei a reparar o que tinha em comum das músicas que ressonavam mais comigo. Desde trocadilhos, palavras com duplos significado, até expressões maneiras do dizer popular, ditados subvertidos e colocados sobre nova perspectivas e brincadeiras de entonação. Enfim, só em música já deu muita pesquisa.

Mas também submergi na nossa literatura, observando a escrita de Clarice Lispector, cuja cadência carrega sua escrita de maneira fluida e cativante. Também observei outros conteúdos, entrevistas, examinando maneiras de dizer de outros que não eu, sobre temas que sempre me interessaram. Para dar aquela leveza dançante, explorei o pop, a MPB e rock de de diferentes jeitos dentro deste álbum, apostando nas sugestões sonoras mais que bem vindas do meu produtor e amigo Thommy Tannus, e do baterista Renato Lellis (Plutão Já Foi Planeta), com quem trabalho desde o meu primeiro trabalho, Àchromatics (2018).

No Direto da Gringa escrevi sobre diferentes temas, brinco muito com palavras relacionadas à ÁGUA. É um trabalho que se volta muito a questões como a coragem para pular para fora da zona de conforto e enxergar o mundo em constante transformação.

Faixa a faixa

“Let’s Get Mental” é um áudio que eu mandei pro Thommy. Tenho uma brisa meio de personagens e tava numa fase que fazia “áudio aventurinhas” e mandava pros amigos. Esse foi meu favorito e acho que um bom convite para o álbum: tudo perfeito como se fosse pra ser, a Alice [minha cachorra] bocejando bem depois que falo sobre livre arbítrio (risos).

Como se tivesse alguém apresentando o álbum, um Mr Fingerman ou qualquer outro personagem instigando para que você se permitisse viajar e refletir.

“Devaneios” é a primeira canção do Direto da Gringa, é o single que precede o álbum, mas também a primeira música do disco. Além disso foi uma das primeiras que colocamos voz, foi um “first” pra mim, um momento que marcou , onde surgiu pela primeira vez aquela adrenalina de perceber o quão FODA ficaria meu som em português. Por isso sua letra e melodia inspiraram muito o sentimento das outras músicas do álbum. Um sentimento de ser capaz, independente do que vem nas incertezas do
mundo, de ser capaz de fazer as coisas do meu jeito e construir o que eu quero para minha vida. Eu sempre gostei de fazer as coisas do meu jeito, não tenho muito paciência para coisas muito dentro da caixinha. Às vezes o que crio causa uma resistência, um sentimento no ouvinte padronizado, aquela sensação de “não pode fazer isso” ou “isso tá errado”. A música e o álbum é uma resposta a todos esses nãos que carreguei de certa forma minha vida inteira, e que esse álbum me ajudou a descarregar. Tipo um: “ah é não dá, ô se dá, olha aqui queridão (risos)”.

“Pluralidade do Espelho”: Essa música começa meio com um tom indignado, a introdução carrega uma atitude, talvez seja o rhodes e seu elemento anos 70, a taquicardia do baixo ou as as viradas da bateria. Já começa criando aquele clima de filme de suspense. Na letra converso com aqueles que seguem sem perceber a pluralidade dentro de todas as coisas, mas sobretudo dentro deles mesmos. Aqueles que se entendem dentro de rótulos de fácil acesso. “Nao teve razão pra questionar – prefere tudo no binário – se priva de qualquer explorar – adepto ao já comprovado.” A ideia com a estrutura era começar com loop meio hipnótico, não convencional que aos poucos fosse desencadeando de uma maneira fluida, mas imprevisível, entrando em outras músicas dentro de uma só. Como a vida, que às vezes muda sem nem percebermos:“O mesmo de sempre suou diferente, suspeitam o ainda a transformar”. Mas que tivesse a voz tranquila conectando tudo por melodia e letra, com uma vibe confessional, estendendo o braço para um ouvinte e o convidando a enxergar as várias vertentes, camadas ou movimentações que existem dentro deles mesmos. “Não vou nem mentir – entendo estive ai – mas hoje percebo o mundo – eu – sempre a girar”.

“Singularidade”: O instrumental dessa música me passa uma vibe meio fim dos tempos. Com a introdução meio anos 90 achei legal refletir sobre o ser na era virtual, sobre como o mundo mudou desde o surgimento da internet. E sobre se já não alcançamos a tal singularidade, não só pelas transformações em tecnologia e inteligência artificial desde a virada no milênio, mas também pelo papel que a tecnologia e comunicação tem na nossa vida hoje. Quem passa um dia sem internet ou celular? Estamos mais conectados do que nunca, com mais recursos do que nunca, mas também meio perdidos diante de tanta informação, de tanto conteúdo. Estamos ainda nos adaptando a essa nova era digital.

“Espera” é sobre dar tempo ao tempo. Esperar antes de se dizer entendido, refletir que as coisas e pessoas muitas vezes não são o que aparentam ser. E que o não saber, a incerteza, amplia o escopo da nossa existência, pois nos permite a explorar mais “essa tal de incerteza pode até ajudar – meu mundo é amplo e lá – lá vou eu”. Adoro a quebra de tempo e acelerada nessa parte, confere uma adrenalina, como se o mergulho no desconhecido quebrasse a monotonia da lentidão do resto da música. Para mim essa música é tipo um quadro, pintado de emoções. Foi minha primeira música em português, apresentei ela ao vivo com o show de lançamento Àchromatics gravada com Rob Ashtoffen na guitarra e Lucas Cornetta no baixo. Tem também uma versão gravada acústica piano
voz é baixo acústico com uma pegada jazz no ep À/b que adoro.

“Sai Por Inteira” traz um instrumental mais samba jazz e vocal confessional, como se tivesse conversando com uma amiga numa mesa de bar, falando de algo que tivesse dado tremendamente errado, ou algum ocorrido que tivesse reagido da pior maneira possível, mas que durante o percurso tivesse aprendido muitas coisas. É uma música de tom leve e vibe positiva, que descontrai a ideia do erro, dançante e determinada a seguir independente, pro que der e vier na vida. Adorei fazer o clipe com minhas amigas cantando e dançando essa música, várias me mandaram mensagens depois que sentiram muita vergonha fazendo, mas no final ficaram muito felizes de participar e que de certa forma elas também sentiram que saíram por inteiras do desafio.

“O Gosto que Permeia no Palato” é sobre o vazio. Gravadas teclas, bateria e uma voz grossa cadenciada de maneira estranha. Me imaginei um personagem que hoje já não sou, descrevendo a depressão como um aftertaste, um gosto, algo que pegasse na língua. Uma sensação opaca que permanece sob tudo. A pegada dessa música é que o personagem de certa forma está viciado naquela emoção e se define por ela e então não a quer esquecer e não pode esquecer daquele gosto, pois seria como se esquecer. Acho a letra poderosa. Um fato curioso sobre o processo criativo dela é que a rítmica dessa música, a maneira de parar em momentos estranhos da frase e aí resgatar a linha de pensamento foi inspirada na maneira de falar do filósofo Cortella.

“Copo Cheio” aconteceu meio de trás pra frente. Não era originalmente esse piano nessa bateria. Foi uma música que quase não entrou no disco, lindamente improvável! Nunca tinha tentado fazer um piano em cima de uma bateria, risos, ainda não entendi como ouvi aquele piano no groove do Renato, mas não é que ficou legal? Adoro a letra dessa, acho que me define bem. “Sou copo cheio – não o prive meu transbordar – abundante o que serei perante – outra mudança outro lugar”.

“Seu Problema”: Uma mistura maluca com elementos de beat e hip hop e uma pegada melodia meio bluegrass. Eu tava vendo um dos Tiny Desk Concerts e me amarrei na melodia da Quarter Chicken Dark, virou inspiração. Imaginei minha voz como um violino ou rabeca vibrando uma emoção. Originalmente tinha outra melodia e um começo de letra em português, mas a pegada melódica do bluegrass tinha mais a ver com a oralidade do inglês falado. A letra fala (tradução): “Não estou dizendo que você é bom ou ruim, estou dizendo que meu problema é você, que sabe tudo mas jamais questionou, o meu problema é você (…) que segura a porta mas não deixa ninguém entrar, meu problema é você”.

“Gringa” reflete sobre o me sentir “gringa”, estrangeira no próprio país, por ter estudado no exterior e ter escrito até então em inglês. Amo o sambinha no refrão que o Pedro Dona fez no baixo, acho que trouxe um elemento muito interessante pra música que jamais teria ouvido. A música faz menção a uma faixa do meu álbum Àchromatics, “Dig Up”, como se em agradecimento pelo desafio de escrever em português. Adoro como o final vai se desmanchando e como a voz abre um ângulo com a bateria.

“Achados e Perdidos” eu escrevi em Portugal, em um passeio por Madeiras, quando me perdi e acabei caminhando por algumas horas a mais até encontrar o carro. Comecei a refletir sobre se perder, sobre a perda, coisas perdidas. Olhei para trás, meu percurso até aqui e vi quão improvável meu caminho tem sido, quanto das minhas inseguranças consegui superar e como as coisas vem se transformando. O que perdi de ontem, hoje virando outra coisa. Tem uma beleza melancólica em se perder, pela esperança do que você pode vir a descobrir e o lamento daquilo que já se foi.

“Futuros Do Passado” foi gravada no rhodes, já amo. Uma das últimas que compus pro álbum com uma vibe que mistura The Doors com Brasil 66, um samba jazz psicodélico, estranhamente maravilhoso. Música meio de déjà vu, como se você visse alguém ou algo que achasse que já conhecia, que já tinha visto antes, apesar de não conhecer. Tem algo sedutor nisso e a melodia com agudos cristalinos deixam um brilho ethereal que ajudam a enfatizar. Passa uma emoção “que se sente na pele”. A brincadeira aqui é que de certa forma tudo é variação do que já veio, e que as coisas reverberam na gente porque são variações do que já veio. A ideia é: somos amarrados ao nosso passado, pertencemos a ele e destinados a viver variações dele. Reflete sobre o destino e se realmente somos livres, já que pertencemos ao passado. A estrutura da música reflete isso caminhando entre riffs de uma maneira labiríntica até “nesses futuros do passado somos todos servos”; onde o rhodes dá uma interrompida, se encontrando em um final sem saída, antes de recomeçar o ciclo novamente.

“Perdão” deu trabalho. O tema era: perdão. O instrumental começa reagindo, de maneira quase agressiva, como se fosse no meio da briga e aí as teclas em som de sopro abrem para uma leveza para um personagem refletindo sobre as palavras de outro: “aos prantos cê se mandou, caiu na conta o que cê falou….”. Tem uma oralidade na letra, queria dar a sensação de que fossem recordações da briga (ou brigas) e mal entendimentos, como se o personagem tivesse ecos ou reverberações da própria discussão, tentando entender o que aconteceu. Como se nem um dos relacionados entendessem porque estavam brigando, mas que por alguma razão não conseguissem se relacionar.”;esse prisma enxergo por aqui – e este prisma – seu – me implica- como solo – solamente causador”.
Uma briga do passado que não adiantasse mais pedir perdão.

“Samba Gringa” é uma reprise da gringa com o Renato trazendo seu batuque, mostrando a raiz nordeste do som dele. Engraçado ver como fazer esse álbum ajudou a mudar essa minha sensação de “ser gringa” e me empenhou para trabalhar, hoje me sinto muito contente em poder fazer mais contribuições para a música brasileira.

“Linda, Leve (Não Livre)”: Talvez a música favorita do Thommy. Quando você achar que acabou a música, respire e repare no fade natural que acontece na música. Fora o teclado, não teve automatização de volume nos instrumentos.

Sobre o despertar, fala de sentir a coragem para quebrar o padrão e enxergar que já tá na hora de acordar. Me passa a sensação que o mundo como você o enxerga já mudou, algo bem Clarice Lispector em Água Viva. Não pode se tocar o momento, nada é constante e já mudou. Faz menção a uma música “Wake up Time”, que virá no meu terceiro álbum, algo que já está virando característico do meu trabalho, pedacinhos de outras músicas misturadas. O barulho no final gravamos daqueles timers de cozinha, que usei muito para otimizar meu tempo e escrever as letras.