Taslim pretende mudar a sociedade com sua música, e o clipe de "Pretinha" é um ótimo exemplo

Citando Nina Simone, Gilberto Gil e Elza Soares, Taslim conversou com o TMDQA! sobre representatividade e a importância do poder social da classe artística.

Clipe de "Pretinha" (Taslim)
Foto: Raphael Pizzino

O ano é 2020. Usamos tecnologias como nunca antes. A comunicação tem se mostrado cada vez mais facilitada. Não temos nada mais com o que se preocupar, então? Errado!

Não podemos dizer que os avanços são os mesmos em termos sociais. Padrões engessados ainda assolam a convivência em sociedade. Pretensões, preconceitos e um abismo racial ainda são pautas de discussões. Isso precisa mudar, mas ainda bem que temos uma engajada classe artística disposta a mudar isso. Racismo, homofobia e outros pensamentos horrendos parecem estar mais fortes do que nunca, mas vemos uma resistência cada vez mais forte. Dentre vários artistas LGBTQ+ e negros que estão tentado mudar a perspectiva social, temos a cantora e compositora Taslim.

Publicidade
Publicidade

Criada em um tempo em que pouco se via representatividade negra na mídia, a cantora sentiu que, artisticamente, precisava contribuir para melhorias. Ela tem dedicado sua carreira musical a enaltecer a história negra. Assim, jovens negros poderão se ver representados na música, tal como hoje conseguem se ver com maior (mas não suficiente) frequência em filmes e na televisão.

 

“Contratar mulheres pretas já tem sido uma prioridade pra mim enquanto artista”

Recentemente (antes da pandemia), Taslim foi para o Maranhão para gravar o clipe de sua nova música, intitulada “Pretinha“. Com uma equipe completamente composta por mulheres negras, a cantora conseguiu atribuir ao resultado maior sensibilidade e sinceridade ao resultado final. O vídeo, lançado no Dia dos Namorados (12), celebra o amor entre duas mulheres.

Por sinal, seu primeiro disco, intitulado Pretambulando, tem previsão de lançamento ainda para este ano. Enquanto aguardamos ansiosamente as novidades, tivemos a oportunidade de conversar com Taslim sobre sua música e sobre a sociedade.

Confira abaixo a conversa:

TMDQA: Eu queria te dar parabéns pelo clipe. Ficou sensacional! Normalmente, o amor entre duas mulheres é retratado de uma forma sexual e machista. Aqui, vemos, com sensibilidade, um amor com naturalidade, que transborda amizade e companheirismo. E a equipe foi composta 100% por mulheres negras, certo? Acredito que isso tenha dado esse olhar sincero ao clipe. Como foi o processo de produção?

Taslim: Obrigada! Fico muito feliz de conseguir transmitir esse amor real. No geral, o retorno tem sido exatamente esse: as pessoas se sentem vistas e representadas, e isso me emociona bastante. A sensação que tenho é de que foi exatamente o fato de a equipe ser 100% preta e feminina que trouxe esse diferencial e essa sensibilidade. E mais potente ainda é que, como o videoclipe foi gravado no Maranhão, nós ainda conseguimos ter uma equipe de maioria nordestina (seis maranhenses e uma baiana), com a participação também de uma representante do Norte, vinda de Manaus, e eu como a única do Sudeste. Os dois dias de gravação foram muito especiais porque eu via aquelas mulheres (e nisso me incluo) se sentindo realizadas por contarem uma história na qual elas são as protagonistas.

E pra além de só contar, elas estavam construindo aquela história na produção, no roteiro, na estética. Contratar mulheres pretas já tem sido uma prioridade pra mim enquanto artista por entender que a presença delas é mais importante do que tudo que eu possa dizer. Esse é apenas o caminho óbvio do que eu canto. De nada valeria falar sobre esse amor de uma forma pura e materializá-lo de um ponto de vista estereotipado. Então, essa escolha é sobre ser coerente com o que acredito e defendo  e sobre entender que essas mulheres precisam de oportunidades para trabalhar, precisam ser remuneradas, precisam se desenvolver profissionalmente. No mercado audiovisual, elas ocupam menos de 1% dos cargos. Com “Pretinha”, a gente mostra que existem profissionais negras capacitadas em todo o Brasil, não só no Sudeste.

 

“A arte reflete a vida”

TMDQA: Infelizmente, a gente ainda vive em uma sociedade heteronormativa. O seu clipe, especialmente por ter sido lançado no Dia dos Namorados (onde normalmente casais heterossexuais ganham destaque) é uma aula, no sentido da busca da normalização desse tipo de relacionamento. Na sua visão, como a arte, no geral, consegue contribuir para a aprendizagem social das pessoas?

Taslim: Diz-se que a arte imita a vida. Já eu creio mais no contrário. As pessoas enxergam no entretenimento e nas artes que consomem reflexos da sua vida ou de expectativas que têm para ela. Então, quando uma criança negra assiste apenas a filmes ou lê livros nos quais os protagonistas são sempre brancos, ela vai buscar esse reflexo e não vai encontrar. A mesma coisa vale para pessoas homo ou bissexuais que não se enxergam nas representações heteronormativas. Quando não se sentem representadas, essas pessoas acabam por projetar a normalidade nessa única imagem que recebem constantemente. Acabam se vendo como anormais e não pertencentes.

Foto: Raphael Pizzino

Eu enxergo mais que a arte reflete a vida, inclusive suas estruturas mais preconceituosas. Felizmente, no entanto, existem artistas e trabalhos que são focados em acelerar um processo de mudança da sociedade. Eles entendem que a arte é aquela por meio da qual é possível criar outras realidades no inconsciente coletivo. Um dos meus guias é uma fala da Nina Simone em que ela questiona como você pode ser um artista e não refletir os tempos. Pra mim, isso seria inviável e desmotivador. Quando me perguntam o objetivo da minha música, sempre digo que é mudar o mundo, seja de uma forma micro ou macro. Quando eu consigo fazer com que uma pessoa se sinta confortada e representada, sinto que estou criando novas realidades e, consequentemente, mudando o mundo.

 

TMDQA!: Por falar em sentimentos positivos, seu próprio nome artístico remete à felicidade. Taslim foi uma face sua que se revelou durante um intercâmbio que você fez na África do Sul. Queria que você falasse mais um pouco sobre esse processo de descobrimento e o que ele significa para o seu desenvolvimento artístico.

Taslim: Eu fiz um intercâmbio para a Cidade do Cabo, na África do Sul, quando tinha 21 anos, assim que concluí a faculdade de Jornalismo. Na época, sabia muito pouco sobre o lugar. Basicamente, sabia que era a terra de Nelson Mandela, que tinha sido palco da Copa do Mundo e que a cidade para onde eu iria tinha paisagens belíssimas. Ao chegar, descobri um mundo de cultura e diversidade. Isso fez com que a minha estadia na África do Sul fosse um divisor de águas na minha vida. Eu ainda não sabia, mas foi lá que encontrei todas as bases para ser a artista que sou hoje. Descobri que Taslim significava “felicidade” em uma língua nativa do Malawi. Essa palavra passou a simbolizar o que vivi naquele intercâmbio. Tempos depois, entendi também que ela trazia a minha proposta de fazer música com alegria e leveza.

Musicalmente, enquanto estava em Cape Town, tentei aprender o máximo que eu pudesse sobre a cultura do país. Comprava revistas de música, ouvia rádios locais… Mas, para minha sorte, também conheci africanos de outros países que me apresentaram o que rolava em outras partes do continente. Depois que eu voltei pro Brasil, senti muita falta da África, da sonoridade e das vivências de lá. A saudade me levou a fazer uma pesquisa musical muito mais profunda, usando a internet e as referências que eu já tinha adquirido. Comecei a ouvir músicas da Nigéria, de Angola, Cabo Verde, Mali… Aos poucos, eu fui me aprofundando cada vez mais no afrobeat, no semba e na kizomba. Isso foi me mostrando tudo que a música preta tem a oferecer e que era um pouco do que eu queria trazer no meu trabalho e que foi me aproximando do afropop.

 

“Nossas crianças negras precisam se sentir representadas”

TMDQA!: Nesses tempos de quarentena, você tem se dedicado também a lives. No repertório, você se dedica a versões de músicas lançadas por artistas negros. Isso me faz refletir sobre a própria história da cultura musical brasileira. Alguns dos nossos maiores e mais influentes artistas são negros. Quais são as suas maiores influências musicais?

Taslim: A música brasileira é negra em sua origem. A bossa nova, por exemplo, é vista como uma suposta “renovação” do samba e depois gerou a MPB. Ou seja, a base da música produzida no Brasil durante muitas gerações, e até hoje, foi originada pela música negra. Isso aconteceu em diversos outros ritmos e movimentos como a Tropicália, por exemplo. Eu, particularmente, tenho um apreço especial pelo trabalho do Gilberto Gil. Acredito que ele foi o meu primeiro contato com a música baiana e afrobrasileira. Então, essa experiência teve uma grande relevância para que quando eu viesse a conhecer a música africana tivesse uma identificação imediata. Gil é um compositor excepcional e ele me inspira na forma metafórica e poética que ele traz os dilemas e a realidade do povo preto no Brasil.

Por outro lado, Elza Soares é uma referência não só de cantora mas também de mulher negra, em virtude de tudo que ela passou para conseguir chegar ao lugar onde está hoje. Apesar de todo o sofrimento que passou, de todo preconceito que sofreu e de todas as dores que viveu, ela segue sendo uma referência na música brasileira. Principalmente nesse momento, em que seu trabalho a aproxima das novas gerações, ela mostra como é possível ser atual, trazendo novamente a fala de Nina Simone de que o artista precisa refletir o seu tempo. Elza, independente do tempo que tenha de carreira, segue representando esse tempo. Segue falando sobre ele e mudando o mundo a partir da sua voz, que é a voz da mulher do fim do mundo.

TMDQA!: A atual cena também é marcada por talentosíssimas artistas negras, que ajudam a levar para frente esse poder da música. Temos Xênia França, Luedji Luna, Liniker, Drik Barbosa… Que outros nomes você nos indicaria?

Taslim: Bia Ferreira, Doralyce, Majur, Luciane Dom, MC Tha, Jucy, Monique Brito, Aika, Malía e Késia Estácio.

TMDQA!: Todos os seus singles lançados até então trazem essa questão da afirmação de identidade negra. É uma discussão necessária, visto que vivemos em uma sociedade que, historicamente, sempre privilegiou os brancos. Isso me remeteu àquela discussão recente sobre bonecas negras e a importância da diversidade e da representatividade. Como você se sente ao contribuir para fazer essa diferença no mundo da música?

Taslim: É fato que as nossas crianças negras precisam se sentir representadas. Hoje eu vejo uma diferença muito grande das referências que a juventude negra consome do que a que era disponível pra mim na adolescência. Na minha época, não existiam cantoras negras pop como hoje. Não víamos atrizes e atores pretos nos filmes ou nas novelas com a frequência que é possível atualmente. Ainda assim, o que temos hoje é pouco perto do tamanho da população brasileira. Não se ver representado é uma ameaça muito grande para autoestima dessas crianças. Às vezes, apenas um elogio ou um exemplo de como essa identidade pode ser bela pode fazer uma diferença que a gente não consegue mensurar.

Eu tenho uma canção que se chama “Afrourbana“, que é sobre uma mulher negra que se diverte pela cidade do Rio de Janeiro. Certa vez, eu recebi uma mensagem de uma menina negra que tinha ouvido essa música. Ela disse que, antes da música, ela tinha vergonha de dizer que era preta e que, depois, passou a ter orgulho. É diferente quando você escuta alguém falando que você tem que ser a primeira a saber se admirar do jeito que você é. Passa a existir uma autoaceitação sobre si mesma.

Esse sentimento de ajudar a pessoa a se amar mexe muito comigo porque é uma cura interior muito necessária e que eu tive que enfrentar sozinha. Então, para mim, é muito reconfortante poder mostrar que essas pessoas não estão sós. Não estão sós quando querem usar seu turbante ou o cabelo pro alto. Não estão sós quando querem admirar sua ancestralidade e nem quando desejam viver o amor que sentem sem entraves. No fim do dia, falar sobre essas histórias é mostrar que essas pessoas existem e são vistas.

 

“A vida do povo preto é movimento”

TMDQA!: Você está preparando o terreno para o lançamento de seu primeiro disco, que vai se chamar Pretambulando. Pode nos adiantar algo sobre o álbum?

Taslim: O álbum é resultado de um trabalho de criação e de desenvolvimento meu enquanto artista. Durante essa construção, foram vários momentos que se iniciaram na descoberta da Taslim até ter o álbum pronto. Pretambulando busca fazer uma viagem musical pelos ritmos negros de África e da diáspora e ainda falar sobre as vivências desse povo, contado a partir do meu ponto de vista. A produção musical contou com as atuações de Roger Fraiha, meu antigo empresário e produtor. Também contou com William Magalhães, que já produziu discos de artistas de destaque como Gilberto Gil, Gal Costa, Caetano Veloso, Ed Motta, Daniela Mercury e o premiado álbum Galanga Livre, de Rincon Sapiência.

“Pretambulando” é um conceito que eu criei pra simbolizar uma experiência individual e também coletiva que entende que a vida do povo preto é movimento. Enquanto uma mulher negra viajando por vários países em vários continentes do mundo, entendi que o movimento era uma necessidade para mim e também uma realidade para o povo preto diante da diáspora e de todas as suas consequências. As minhas composições foram naturalmente entrando dentro desse guarda-chuva e, hoje, temos um álbum que traz várias temáticas (assédio sexual, representatividade, amor) e que começa e termina em África.

 

TMDQA!: O mundo tem se mobilizado com a causa #VidasNegrasImportam, diante dos tristes episódios de violência contra negros que ganharam repercussão recentemente. No entanto, a violência contra negros não é algo recente na sociedade. Na sua visão, o que fez com que esse movimento ganhasse maior repercussão apenas agora, especialmente por parte dos brancos que se dizem antirracistas?

Taslim: A meu ver, o que deu destaque ao movimento é o fato de ter sido iniciado nos Estados Unidos, e não aqui. Pessoas negras morrem de forma injusta diariamente nesse país. A cada 23 minutos um jovem negro é morto, mas é mais interessante quando está longe.

Temos inúmeros casos de injustiça policial sem mobilização, como o da Chacina de Costa Barros, quando cinco adolescentes – Wilton, Wesley, Cleiton, Carlos Eduardo e Roberto – de 16 a 25 anos, foram assassinados com 111 tiros; o caso de Evaldo Evaldo Rosa e Luciano Macedo, que morreram em um carro, assassinados com 80 tiros dados “por engano”. Sete anos depois, seguimos sem saber onde está Amarildo e seis anos depois os policiais que arrastaram Claudia Ferreira da Silva por 300 metros seguem sem punição. Citar esses nomes é necessário pra lembrar que não basta se dizer antirracista, é preciso agir e se engajar, antes de tudo com as causas próximas.

 

TMDQA!: Além do talento musical, você também é formada em Jornalismo. Diante do necessário movimento do #VidasNegrasImportam, como você acha que o Jornalismo, especialmente no que diz respeito à vertente da cultura, com a divulga1ção de artistas e análise de obras culturais, consegue ajudar?

Taslim: Em 2018 eu participei da SIM (Semana Internacional de Música), em São Paulo. Um dos painéis envolvia uma votação para definir o artista destaque do ano, de acordo com os participantes. Dos dez concorrentes, oito ou nove eram artistas negros, dos quais dois dividiram o primeiro lugar: Edgar e Luedji Luna.

Naquele dia, eu percebi que é isso que a gente precisa: espaço para mostrarmos a nossa arte. A cena musical preta é vasta, mas ainda vejo que existe uma lógica implícita na qual, muitas vezes, um único artista negro é visto como suficiente pra representar todo o segmento. Festivais, revistas, rádios e playlists trazem com frequência as mesmas pessoas que já alcançaram destaque ao invés de dar espaço pra diversidade de artistas que estão na cena. A mudança vai acontecer de forma mais real e alcançável quando as mídias, e consequentemente o público, entenderem que nós não estamos competindo. É uma cena musical em que todos podem coexistir. Cada um tem uma forma de se expressar, seu jeito e sua autenticidade.

 

TMDQA!: Alguma contribuição final? Algo que eu não tenha perguntado e que você queira falar?

Taslim: Seria maravilhoso que eu pudesse estar aqui apenas falando da minha arte e de coisas boas, da beleza do meu povo, de amor… Mas, infelizmente, o racismo me impede de esquecer as dores. Durante essa quarentena vivenciamos muitas perdas. João Pedro, Miguel e George Floyd são só algumas. Espero que da próxima vez que eu venha aqui tenhamos mais coisas boas do que ruins pra falar e celebrar. Obrigada!

Sair da versão mobile