Exclusivo: Unindo mulheres de quatro países das Américas, grupo LADAMA contextualiza novo álbum Oye Mujer em entrevista

Brasil, Venezuela, Colômbia e Estados Unidos se encontram no disco "Oye Mujer", da banda LADAMA. Leia entrevista exclusiva com o TMDQA!

Ladama
Foto por Yanina May

Por Nathália Pandeló Corrêa

Em tempos de fronteiras fechadas, LADAMA dilui as barreiras de línguas e sons na riqueza e pluralidade da América Latina em seu segundo disco, Oye Mujer. O coletivo faz uma ponte entre a América do Sul e os Estados Unidos e já chama atenção de veículos como a rádio pública americana, NPR. O novo trabalho é um manifesto pela força da mulher latina diante de crises globais e pessoais, das vidas afetadas pelas ondas migratórias à destruição ambiental.

Não é nenhum segredo: LADAMA traz no nome do grupo, no título do disco, na arte de capa as suas intenções de ressignificar a identidade latino-americana e, principalmente, as narrativas femininas diante de contextos sem precedentes. As faixas refletem acontecimentos recentes como o crime de Brumadinho e os apagões na Venezuela e servem até como luz diante da quarentena em que nos metemos neste começo de 2020.

Mas o álbum vinha sendo realizado bem antes disso, com o renomado produtor brasileiro Kassin (Jorge Ben, Bebel Gilberto, Caetano Veloso) e o colaborador musical de longa data Pat Swoboda, de Nova York. Eles ajudam a guiar a visão plural de Mafer Bandola (voz/bandola llanera – Venezuela), Lara Klaus (voz/bateria e percussão – Brasil), Daniela Serna (voz/tambor alegre – Colômbia), e Sara Lucas (voz/guitarra – EUA). Oye Mujer vem para suceder o homônimo LADAMA, lançado em 2017 e que abriu as portas das artistas em turnê por diversos países da região.

Como uma progressão e amadurecimento da sonoridade construída na estreia, o quarteto embala letras imersas em temas políticos e sociais com uma musicalidade igualmente plural, como que comprovando as várias identidades possíveis para as vozes femininas na América Latina. Oye Mujer é samba reggae, bolero, ijexá, punk, reggaeton, fandango, merengue dominicano, cumbia. Cada instrumentista e vocalista se reveza no protagonismo das faixas, mas nesse panorama tão amplo, a mensagem é a mesma: de união e de resistência. “Cada um de nós é a expressão do todo”, canta Daniela Serna em Cada Uno. Em um 2020 mais turbulento que o previsto, esse é um discurso impactante e necessário.

Para entender melhor Oye Mujer, o Tenho Mais Discos Que Amigos! conversou com LADAMA sobre o álbum e o atual momento político e social da América Latina. Confira:

TMDQA!: O feminino guia o trabalho de vocês, em especial nesse disco. E o universo da mulher é vasto, infinito. Como vocês escolheram as temáticas que abordariam nessas canções?

Daniela: Nós não sentíamos nem um pouco que estávamos escolhendo os temas. Apenas fomos fiéis ao que mexia com a gente naquele momento. Por exemplo, eu compus Misterio como uma canção de amor para celebrar a sexualidade feminina, para aproveitarmos nossos corpos e os amarmos, de forma diversa e livre. Lembro de colocar no meu caderno a letra de “Mar Rojo” como um tipo de oração para enfrentar o medo da morte e os perigos que nos cercam nas ruas enquanto mulheres. Também para “Inmigrante”, Mari e eu escrevemos um refrão celebrando a força dos imigrantes, mas meses depois ela e Sara também acabaram escrevendo “Maria” como um retrato da luta das mulheres migrantes pelo mundo todo. Então meu ponto é que não tínhamos um plano para a temática em si, entretanto o processo criativo coletivo de conversas constantes e reflexões sobre nossos sentimentos sobre o que víamos no mundo fluiu naturalmente, criando uma narrativa que conecta todas as músicas em um disco que nós descrevemos como visceral. E é claro que o universo vasto das mulheres, como você disse, faz parte da alma de “Oye Mujer”.

TMDQA!: O disco é atual, trazendo os apagões na Venezuela, Brumadinho, questões ambientais, políticas, etc. Desde que gravaram, o mundo já está em um novo ciclo de revoluções que trouxeram à tona a nossa fragilidade e desumanidade. De certa forma, o disco dialoga com isso, embora não diretamente, porém vocês escolheram adiar um pouco o lançamento. O que motivou essa alteração?

Mafer: É verdade, o disco vem sendo escrito desde 2018 e foi concluído em 2019, então ele representa o que vivemos antes e durante esse período. É verdade que há novas revoluções que respondem a necessidades presentes ou antigas, mas vejo que algumas necessidades não foram resolvidas, enquanto outras vêm se resolvendo. Nesse disco, temos histórias de vozes que não são ouvidas ou expostas e que sabemos que ainda serão relevantes, e um mês depois que decidimos fazer o lançamento, não porque são músicas escritas pelo LADAMA, mas porque são histórias que representam identidades em desvantagem e se há algo que temos em comum é isso que chamam de “minorias”, mas que para nós representam mais dimensões das que estamos conscientes. Como músicos e pessoas sensíveis aos momentos em que nossa música é feita, é determinante atuar em consideração e coerência com o que queremos expressar. Adiamos o lançamento do álbum motivadas pelo fato de reconhecermos que o silêncio na mídia não é apenas feito por nós, mas sim por muitos artistas de todo o mundo que mostraram como podemos ser solidários se nos conectarmos às vezes quando parece que todos estão em conflito. Isso torna notório como o artista está conectado com os tempos que ele tem que viver.

TMDQA!: A capa do álbum simboliza essas transformações que vocês vêm narrando nas músicas. Mas o fogo, embora destruidor, também pode ser um catalisador para mudança e renascimento. O que vocês gostariam de ver transformado após esse período que parece de grandes incertezas e inseguranças?

Lara: O nosso disco nasce nesse momento de mudanças e marca pra nós essa passagem entre duas realidades. O período de quarentena nos tem feito refletir a respeito do nosso papel não só como pessoas que usam a música como ferramenta de educação – e em como podemos nos manter ativas nesse papel – mas também a respeito da importância da empatia. Tenho notado que muitas pessoas estão mais sensíveis e sensibilizadas com sofrimento alheio, com a possibilidade de perderem sua estabilidade tanto financeira quanto emocional, e isso faz com elas se aproximem e olhem o outro com mais cuidado e carinho. Esperamos que esse período nos traga o entendimento e a consciência do reconhecimento das necessidades do próximo e que assim possamos nos multiplicar em atitudes de transformação e desenvolvimento de uma sociedade mais acolhedora e justa para todas pessoas.

TMDQA!: A diversidade na formação do grupo reflete muito a riqueza cultural da América como um todo, mas também muitos dos mesmos desafios sociais, raciais, econômicos. O que vocês acham que nos une enquanto povos americanos?

Mafer: Como instrumentistas, estamos unidos pelo ritmo, como seres humanos, somos separados pelo código de nossas línguas, como habitantes do mesmo continente, somos separados pelo Equador e sua influência no clima (alguns de nós), como mulheres que compõem o povo do continente americano, nos juntamos à busca de igualdade e equidade, a partir da abordagem intersetorial que nos leva a criar um projeto como o LADAMA para alcançar um espaço de exercício colaborativo entre quatro nações de diferentes latitudes e mostrar que é possível trabalhar em conjunto para objetivos comuns.

TMDQA!: O Brasil sempre ficou meio isolado musicalmente dos vizinhos, talvez pela língua, talvez por um complexo de vira-lata que nos faz mirar mais as influências estadunidenses e europeias. Mais recentemente, movimentos sociais, culturais e migratórios estão diluindo um pouco mais essas fronteiras. Como vocês veem essa integração? Ela se reflete na entrada da sua música por aqui?

Lara: O Brasil é visto lá fora como um grande celeiro de músicos e artistas. O fato de sermos um país tão grande e diverso faz com que nos sintamos auto-suficientes de alguma maneira, além de sermos o único país da América Latina de língua portuguesa. Isso faz com mantenhamos o distanciamento de outras culturas, especialmente dos nossos vizinhos de língua hispana. Porém, a cada dia mais, como resultado da globalização e do acesso à tecnologia, as culturas têm se entrelaçado, e a discussão sobre a importância da quebra de barreiras culturais através da música e da arte têm ganhado força. Não fosse pela globalização e o desejo de quebrarmos essas fronteiras, não teríamos nos conhecido e formado LADAMA. Por essas razões, a abertura para artistas de outras culturas e o acesso mais fácil a eles vem ajudando que projetos como o nosso nasçam e circulem pelo Brasil com mais frequência e sem preconceitos.

TMDQA:! Sendo de lugares tão distantes entre si, como funciona o processo de composição e gravação do grupo? Podem contar um pouco sobre como foi colaborar com o Kassin nesse trabalho?

Sara: Compomos a maior parte do nosso trabalho juntas, de forma colaborativa. Para o nosso álbum de estreia, a maioria das nossas músicas foi escrita na estrada durante nossa turnê de quatro meses em nossos países. Para terminar o álbum, cada uma de nós trouxe uma ideia de música para o grupo, que foi organizada por todas. Mas para este segundo álbum, fomos capazes de fazer duas residências de duas semanas em Massachusetts (em junho de 2018 e março de 2019) nas quais escrevemos quase todas as músicas do Oye Mujer começando em duplas colaborativas. O Kassin foi um parceiro colaborador incrível e um ótimo produtor. Ele foi capaz de entender todas as habilidades únicas de cada instrumentista da banda, ouvir todas as nossas ideias, considerar as possibilidades de produção e arranjo que poderiam existir e, em seguida, foi capaz de sintetizar tudo de uma maneira que fosse fiel à nossa arte e à visão da banda, ao mesmo tempo que nos desafiou a seguir em novas direções. Ele sabe muito sobre música, de todos os lugares do mundo, é sempre curioso e aberto e, claro, é um músico fantástico. Ele é um original e ama verdadeiramente a música e as pessoas que a tocam. Além disso, foi divertido!

TMDQA!: O som do grupo bebe de influências múltiplas, representando bem a riqueza dos tantos ritmos latinos e indo além de estereótipos. Cada integrante traz a sua bagagem cultural distinta e uma identidade única pro seu instrumento. Como é o processo de transformar isso em algo novo, que reflita todas vocês?

Sara: É sempre um desafio, é claro – mas um desafio que todas nós recebemos de braços abertos. Não consigo imaginar um cenário melhor do que aquele em que estou constantemente aprendendo com as pessoas com quem trabalho. Estamos sempre aprendendo novas línguas, novos instrumentos, novos ritmos e novas formas de expressão uma da outra. Até novas receitas culinárias! Novas maneiras de ver o mundo. Se alguém é honesto sobre a busca por entender e aprender novas habilidades, isso possibilita muitas coisas em termos de colaboração. E para mim, acho que todas estão animadas para ensinar e pacientes, observando umas às outras aprendendo coisas novas. Como somos todas educadoras, isso também é fundamental para o nosso processo como banda. A partir desses processos, encontramos sempre um ponto de encontro, para a colaboração e a criação de novas artes, que esperamos que seja uma extensão de quem somos, de quem queremos ser e de como queremos interagir com o mundo.

TMDQA!: O discurso de LADAMA e de Oye Mujer não deixa dúvidas quanto ao posicionamento social e feminista do grupo. Considerando as últimas transformações políticas que temos visto no continente (e no mundo), qual a importância de usar a música como esse instrumento de empoderamento?

Dani: É importante usar a música como um instrumento de empoderamento, porque além do fato de que a música quebra barreiras e atinge todos, a música deve ser adotada como uma Escola da Vida, como um livro, como uma fonte da qual você se nutre e se torna amiga de seus comportamentos. Em outras palavras, não podemos fingir que vivemos em uma sociedade que não é machista se continuarmos ouvindo música dedicada apenas à objetificação de mulheres, para citar um exemplo. Mas a beleza da música e seu impacto é que é que ela é livre, portanto, cada música é como o ar. Queremos que nossa mensagem alcance, ressoe, conecte, impacte, excite e, acima de tudo, motive e inspire ações, para expressar uma opinião, para compartilhar e abraçar toda a diversidade. A música é um espelho da sociedade. Para mim, isso representa a possibilidade de projetar o mundo em músicas como eu imagino.

TMDQA!: Como tem sido esse período de isolamento social pra vocês? Podem compartilhar com a gente algum disco que tenha sido como um amigo durante esse período, fazendo companhia nos momentos mais difíceis?

Lara: O início do isolamento foi especialmente difícil, principalmente em relação às possibilidades de trabalho. Como musicista que depende de contratos e contato físico com as pessoas, foi necessário fazer uma reavaliação da vida para entender os caminhos possíveis a seguir. Com o passar dos meses as soluções foram se apresentando e as coisas estão começando a se organizar dentro do possível e da atual realidade. Mas, sem dúvida, a música é a minha grande companheira e salvação nos momentos mais difíceis, e eu tenho escutado muito ultimamente o disco “Moraes Moreira Acústico”, além de ter revisitado a obra de Gilberto Gil, que é o meu maior ídolo.

Dani: Tem sido revelador de muitas maneiras poderosas. Eu mudei minha rotina para uma rotina mais livre e respeitosa, para meus verdadeiros desejos, em vez de continuar servindo a produtividade e distrair minha mente, corpo e alma com todos os tipos de atividades, agora eu aprecio cada momento que tenho no que mais importa : a vida, música, minha família e amigos e, claro, eu. Sinto que tenho me curado de muitas maneiras diferentes, especialmente espiritual e emocionalmente. [Tenho ouvido] STAY.HOMAS de Barcelona. Eles ainda não têm um álbum, mas você pode encontrar todos os vídeos no YouTube. Eles provavelmente são a única banda do mundo que se tornou viral e bem-sucedida graças ao Covid-19. Suas canções eram a luz nos meus dias mais sombrios de ansiedade no início da quarentena.

Maria: Não tem sido fácil, tem sido um período cheio de incertezas em dimensões que eu não esperava. Mas não posso reclamar, cresci em um curto período, o que poderia levar talvez três anos para crescer em condições estáveis. Por isso, sou grata porque, pensando no que as outras pessoas tiveram que passar, reconheço que estou bem, embora longe da minha família que está de bom humor, possuo meus instrumentos e a possibilidade de continuar criando e fazendo música, tenho uma companhia magnífica em uma bela paisagem, estou comendo bem e tenho um teto sob o qual posso dormir. Ter minha banda LADAMA tem sido essencial neste momento, percebi que somos uma família, é uma sorte. Eu não me senti sozinha. Só fui forçada (de uma maneira boa) a aprender mais, e foi nesses aprendizados que criei uma playlist com a música necessária e oportuna e com os seguintes nomes: Betsaida Machado, Danyèl Waro, Gilsons, Concha Buica, Aquiles Baez, Linda Briceño, Nella Rojas, Rafa Pino, Onda Guara, El Tuyero Ilustrado, Jorge Torres, Trabadeos, Vasallos del Sol, Miguel Siso, Rawayana, Gaêlica, Soledad Bravo, Gabriela Montero.

Sara: Uau, essa é uma ótima pergunta. Porque, honestamente, fico triste em dizer que não ouvi muita música durante o isolamento. E essa pergunta é um lembrete de que eu deveria. Mas houve um álbum que eu ouvi várias vezes. Tenho a sorte de ter um toca-discos em casa e, quando adolescente, colecionei muitos discos antigos de jazz e descobri muitos cantores que amo até hoje. Um desses registros foi “Golden Lady”, de Abbey Lincoln. Sua versão de “Sophisticated Lady” é incrível. A voz dela, uau. E os músicos com quem ela toca. Este álbum, com certeza, me fez companhia.