TBTMDQA!: Passados 32 anos, será que encontramos a tal "Ideologia" da qual Cazuza tanto falava?

Enquanto, esteticamente, remete à sonoridade do Barão Vermelho, "Ideologia" versa sobre questões internas e externas sobre Cazuza.

Cazuza
Foto: Divulgação

Cazuza, incrível nome da nossa música, nos deixou há pouco mais de 30 anos. Seu legado para a cultura brasileira, no entanto, ficará para sempre marcado por sua trajetória artística, seja no Barão Vermelho ou em sua carreira solo.

Após ter feito de Maior Abandonado (1984) seu último lançamento com o Barão, o músico se tornou um exemplo de carreira solo de sucesso com seus dois primeiros discos: Exagerado (1985) e Só Se For a Dois (1987). No entanto, seus maiores sucessos de venda viriam justamente depois. O politicamente engajado Ideologia (1988) conquistou certificado de diamante e é considerado por muitos o seu melhor lançamento.

Muito disso se deve à faixa-título. Polêmica, a faixa se mostra uma música que se volta, simultaneamente, para questões externas e internas do cantor. Ao mesmo tempo em que critica a sociedade e apresenta uma certa “frustração política” com os rumos da esperançosa redemocratização, “Ideologia” também traz questões pessoais de Cazuza.

Falamos sobre alguns fatos e curiosidades sobre a produção e o legado da música logo abaixo. Confira:

 

“A gente achava que ia mudar o mundo”

Cazuza é a representação de juventude que contemplou o golpe militar em sua infância (em 1964, o cantor tinha apenas 6 anos), cresceu nas sombras da ditadura e só foi experimentar a democracia, de fato, com o seu fim em 85 (aos 27 anos).

Sobre isso, o cantou falou certa vez:

A música, por sua vez, é muito pessimista, porque, na verdade, é a história da minha geração, a de 30 anos, que viveu o vazio todo. É meio amarga porque a gente achava que ia mudar o mundo mesmo e o Brasil está igual; bateu uma enorme frustração. Nos conceitos sobre sexo, comportamento, virou alguma coisa, mas deixamos muito pelo caminho. A gente batalhou tanto. E agora? Onde chegamos? Nossa geração ficou em que pé?

 

Conjuntura política

O fim oficial da ditadura militar no Brasil, em 1985, foi um sopro de esperança não apenas para a geração de Cazuza, como também para toda a sociedade brasileira. As eleições voltaram a ser democráticas e a participação política do povo voltou à ativa. Mas, mesmo passados 3 anos do fim do regime militar, a música exemplifica insatisfação com a política de então.

Em 1988, o Brasil vivenciava a metade do governo de José Sarney, que assumiu a presidência após complicações na saúde de Tancredo Neves, que seria o primeiro presidente civil em mais de 20 anos. Em seu governo, Sarney criou diversos planos econômicos a fim de conter a alta inflação da época e foi acusado de corrupção em casos de superfaturamento e de irregularidades em concorrências públicas.

Em “Ideologia”, Cazuza entrega essa inquietude em versos como “Meu partido é um coração partido” e “Os meus sonhos foram todos vendidos tão barato que eu nem acredito”.

 

AIDS

Ideologia foi o primeiro disco lançado por Cazuza após descobrir-se soropositivo. Nele, o cantor versa sobre sua relação com a AIDS e com sobre a ideia da morte. A faixa-título, por sinal, foi uma das primeira letras escritas pelo cantor após a descoberta.

Alguns versos são claramente um reflexo de como a doença afetou sua vida. Com poucas palavras, na segunda parte da música, ele mescla indignação, revolta, preocupação e decepção com a situação toda. O cantor faz referência ao estilo “Sexo, Drogas e Rock n’ Roll” confessando que os dois primeiros elementos não entregam mais a mágica poesia do terceiro.

O meu prazer agora é risco de vida
Meu sex’n’drugs não tem nenhum rock’n’roll
Eu vou pagar a conta do analista
Pra nunca mais ter que saber quem eu sou

 

Cazuza e Frejat

Se engana quem acha que a relação entre Cazuza e Roberto Frejat ficou apenas no Barão Vermelho. Cazuza contou com a ajuda de seu ex-guitarrista na composição de várias canções de sua carreira solo. Mas nenhuma, até então, havia chamado tanta atenção quanto “Ideologia”.

Para os fãs da “era Barão” de Cazuza, a música foi bem vista logo de primeira, relembrando a estética de sucessos como “Maior Abandonado”, “Bete Balanço” e “Pro Dia Nascer Feliz”. Ideologia, o álbum, ainda conta com mais duas músicas assinadas pela dupla: “Vida Fácil” e “Blues da Piedade”.

 

O clipe

Também ganhou muita repercussão o clipe da música. O vídeo já nos mostra um artista mais fragilizado diante da doença, mas conta com várias referências que merecem destaque.

A introdução inclui takes que mostram os detalhes da capa do disco, idealizada por Luiz Zerbini, que soletra o título a partir de diversos símbolos. Os recursos visuais vão desde o sinal da paz até o cifrão, passando pelas representações gráficas do anarquismo, do comunismo e a polêmica união entre a suástica nazista e a estrela de Davi.

O clipe também conta com referências a elementos da cultura pop, como Batman e Mickey Mouse. Mas o que mais chama atenção são imagens de diversos “heróis mortos de overdose”, citados por Cazuza no emblemático refrão. Aparecem desde cientistas como Albert Eistein até músicos como Jimi Hendrix e Bob Marley.

 

Uma das melhores músicas brasileiras de todos os tempos

Em sua comemoração de três anos de existência, a revista Rolling Stone Brasil, em 2009, divulgou uma ousada lista em que faz um ranking das 100 melhores músicas nacionais de todos os tempos lançadas até então.

“Ideologia” foi a única faixa de Cazuza a entrar, enquanto nenhum dos sucessos de sua ex-banda foi contemplado. A canção aparece na 83ª posição, á frente de hits de Elis Regina, Blitz, Los Hermanos, Os Mutantes e mais.

Cazuza

 

Outras versões

É evidente que “Ideologia” nunca foi uma música datada e que seus versos são, por assim dizer, atemporais e sempre urgentes.

Uma releitura notória da música foi lançada em 2011 pelo grupo de rap Oriente. Fazendo parte do disco Desorientado, a faixa conta com versos novos que citam vários novos nomes. O refrão parafraseia Cazuza: “Ideologia, eu quero uma pra viver”.

Paulo Ricardo, fundador do grupo RPM, era amigo de Cazuza e homenageou o colega com o EP Paulo Ricardo Canta Cazuza, lançado no fim do ano passado. As releituras também dão uma ambientação eletrônica para os também hits “O Tempo Não Para“, “Exagerado” e “Pro Dia Nascer Feliz“.

 

Já encontramos a tal ideologia?

De acordo com o Priberam, a palavra que dá nome à canção pode ser entendida como um “Conjunto de ideias, convicções e princípios filosóficos, sociais, políticos que caracterizam o pensamento de um indivíduogrupomovimentoépoca ou sociedade”. A busca à qual Cazuza se refere diz respeito a questões sociopolíticas e até mesmo pessoais.

Mesmo com a redemocratização, o cantor teve a impressão de que as coisas não mudaram como deveriam. Apesar das similaridades, o cenário de hoje é muito diferente do que serviu de inspiração para a composição de Cazuza. Mas será que a tal ideologia foi encontrada?

É uma questão complexa, já que atualmente contemplamos um cenário político polêmico. Mas, em temos musicais, temos visto que os artistas encontraram (e têm encontrado de forma cada vez mais clara) maneiras de usar a arte a favor de pautas sociais, culturais e políticas. Passados pouco mais de 35 anos desde o renascimento de uma frágil democracia, a classe artística tem se mostrado cada vez mais organizada e ciente do que deseja.

Para Cazuza, a impressão de que tudo se resolveria no pós-ditadura, após incessantes lutas, foi frustrada, mas não em vão. Os relevantes questionamentos levantados pelo cantor servem de base para uma esperta nova safra de artistas, cientes do que querem mudar e de como querem essas mudanças.