A música brasileira sempre teve suas interessantíssimas peculiaridades, desde o samba até o funk, passando por maracatu, forró e diversos gêneros genuinamente nacionais. Mas também sempre teve uma personalidade híbrida, incorporando elementos estrangeiros para dar origem a algo novo.
Foi o que aconteceu com a bossa-nova nos anos 50. O samba se encontrou com o jazz norte-americano e deu deu origem àquilo que ainda é entendido por muitos como a face da música brasileira. Na mesma época, o rock se desenvolvia em nossas terras com forte influência de nomes como Elvis Presley e os Beatles. Por sinal, muito da ideia antropofágica da Tropicália, anos mais tarde, abraçaria esses elementos da música gringa a fim de tornar algo legitimamente brasileiro.
Dados todos esses acontecimentos, vimos na década de 70 uma cena musical mais versátil, cheia de referências e novas pautas para discussão. Uma delas é a identidade latino-americana. Muito se falava sobre a identidade musical brasileira, mas pouco sobre o seu contexto. Aliás, apesar do tamanho continental, o Brasil faz parte da América Latina, subcontinente com o qual compartilha histórias, estações do ano e várias questões histórico-geográficas.
Sobre isso, separamos três grandes músicas dos anos 70 que evocam o personagem latino-americano, entre seus clichês e universalidades. São elas: “Apenas um Rapaz Latino Americano” (Belchior), “Sangue Latino” (Secos & Molhados) e “Para Lennon e McCartney” (Milton Nascimento).
Confira algumas curiosidades sobre essas canções abaixo:
Contexto
Os 21 anos da ditadura militar no Brasil englobaram os anos 70, mas o nosso país não foi o único a sofrer com isso. Uma onda de regimes ditatoriais tomou conta do continente na época, a partir de experiências marcadas pelo terrorismo de Estado. Associados ao cenário da Guerra Fria, os regimes foram influenciados pelos Estados Unidos, que temiam a aproximação da União Soviética com outros países americanos (como o que aconteceu com Cuba, em 1959).
Diante disso, os EUA decidiram aumentar sua influência na América Latina, o que motivou em muitos países a tomada de poder pelos militares. Também aconteceu no Chile (em 73), na Argentina (em 66) e em mais países, como Paraguai, Uruguai, Peru e Bolívia.
O momento tecnicamente pedia aos artistas brasileiros para que voltassem o olhar ao que estava acontecendo dentro do continente.
A tal carta aos Beatles
A emblemática carta musical “Para Lennon e McCartney” foi escrita por Fernando Brant, Márcio Borges e Lô Borges no final dos anos 60. Ela veio a ganhar fama com as interpretações de Milton Nascimento e Elis Regina no início da década seguinte.
Seu título se refere a dois integrantes dos Beatles, John Lennon e Paul McCartney, que exportaram o rock britânico para todo o mundo. Mas não é necessariamente uma carta de amor e admiração. Apesar do inquestionável talento da mundialmente famosa dupla, a letra julga a submissão musical aos grandes ídolos. “Eu sou da América do Sul. Eu sei, vocês não vão saber”, diz Milton no refrão, em que exalta Minas Gerais, estado onde cravou sua carreira artística.
Enquanto isso, a roupagem instrumental da música tem elementos de rock, mas dentro de um contexto completamente MPB. Será que a carta sensibilizaria Lennon e McCartney?
Domingão de macarronada
A canção imortalizada na voz de Milton surgiu em pleno domingo, durante uma festa que contou com a participação de vários artistas. Aguardado o preparo de uma macarronada, Lô Borges criou, inspirado, a base da canção no piano.
No mesmo ano, os Beatles anunciaram o fim da banda, e isso foi assunto para os integrantes do Clube da Esquina. Brandt e Márcio Borges entraram na sala de onde vinha o som do piano, e Lô os apresentou à base. Os dois sentaram e fizeram a letra rapidamente.
Depois da refeição, o trio apresentou a música para os presentes. Na segunda vez que tocaram, todos já estavam cantando o emblemático refrão.
“Uma pessoa dependente economicamente do restante do mundo, mas com uma capacidade enorme de desdobramento”
“Apenas Um Rapaz Latino Americano“, de Belchior, é a faixa de abertura do incrível disco Alucinação (1976), que deu origem a alguns de seus maiores sucessos. O eu-lírico é relevado logo nos versos iniciais. Trata-se de um rapaz vindo do interior, humilde, humano e cheio de sonhos que percebe, aos poucos, que a vida não é divina ou maravilhosa como cantava Caetano Veloso (a quem Belchior se refere como um “antigo compositor baiano”).
A canção faz referência àqueles que saiam do interior para tentar a vida no eixo Rio-São Paulo, mas vale lembrar que Belchior sempre foi contra qualquer tipo de clichê. Em uma entrevista a uma rádio em 1983, Belchior falou sobre o conceito da faixa:
[Trata-se de] uma pessoa na esquina do mundo, uma pessoa do Terceiro Mundo, uma pessoa na expectativa… Uma pessoa dependente economicamente do restante do mundo, mas com uma capacidade enorme de desdobramento vital, de resistência, de rebeldia do espírito, de novidade, de transformação, de poder novo. Então, assumir o fato de sermos latino-americanos, sendo brasileiros, sendo cearenses, sendo de Sobral, é justamente participar da fraternidade latino-americana.
Isso diz muito de perto respeito àquilo que eu falo em muitas outras músicas, esse sentido de desinsular a cultura, de fazer com que a cultura seja penetrante, troque energias com todos os espaços… O Brasil é um país que está isolado culturalmente da grande tradição irmã latino-americana. Então, essa música, que dá continuidade a outras músicas de outros autores como Milton Nascimento, Rui Guerra, que já haviam levantado de alguma forma esse problema da latinidade e já era uma constante na literatura e a na poesia, sobretudo. Essa música dá continuidade àquela tradição inicial naquele momento.
“Os ventos do norte não movem moinhos”
Escrita por João Ricardo e Paulinho Mendonça, “Sangue Latino” é um dos pontos altos do disco de estreia do grupo Secos & Molhados, lançado em 1973. A letra versa sobre os descaminhos dos povos latino-americanos. O interessante é a força da mensagem, uma vez que, mesmo diante de um contexto assombroso, o eu-lírico não se dá por vencido.
Em face ao descaso, aos pecados e à pobreza, o latino continua segundo seus “caminhos tortos” em uma bela narrativa de existência. Não à toa, a canção é considerada uma das 100 melhores músicas brasileiras de todos os tempos, de acordo com a Rolling Stone. Ela ocupa a 40ª posição no ranking, à frente de nomes como Jorge Ben, Tim Maia, Noel Rosa e Os Mutantes.
Rompi tratados, traí os ritos
Quebrei a lança, lancei no espaço
Um grito, um desabafo
E o que me importa é não estar vencido
Brasil e a latinidade
Não é uma afirmação exagerada dizer que, dentre os países que compõem a América Latina, o Brasil é o mais afastado. Isso se dá por diversos fatores, como o idioma e outros aspectos históricos e culturais. Por sinal, já pararam para pensar na autossuficiência que a expressão “país continental”, constantemente dita por intelectuais e até por governantes, carrega?
O que estes artistas dos anos 70 fizeram foi aproveitar seu espaço musical para questionar a “autonomia natural” do Brasil, propondo o estabelecimento de vínculos solidários para aproximar o diálogo do nosso país com os vizinhos latino-americanos. O melhor meio para disseminar essa ideia foi a MPB, que marcava um posição intermediária entre canção e poesia, permitindo espaço para a pauta da América Latina, até então pouco desenvolvida, crescer.
Outras versões
Diante de seus fortes significados e de seu prestígio no repertório de alguns dos artistas mais importantes da década, essas três canções ganharam notáveis versões nas vozes de outros artistas.
“Para Lennon e McCartney” já ganhou versões gravadas por nomes mineiros como Affonsinho e Samuel Rosa (Skank). No entanto, fronteiras não limitaram o escopo de interpretações. Um exemplo disso está na cantora baiana Simone, que também gravou uma versão incrível em um de seus discos.
Em 1992, “Sangue Latino” ganhou uma versão animadíssima graças à interpretação da banda gaúcha Nenhum de Nós. Mas a canção definitivamente não foi esquecida pelo tempo. Este ano, a cantora carioca Mahmundi deu vida a uma releitura moderna e tranquilizante da atemporal faixa.
Já “Apenas Um Rapaz Latino-Americano” demorou para ganhar uma versão à altura da original. Em 2017, no ano da morte de Belchior, a cantora Daíra lançou Amar e Mudar as Coisas. O disco, de releituras magníficas, arrancou elogios de nomes como Elba Ramalho e Duda Brack. A faixa em questão é usada para encerrar a tracklist do disco com chave de ouro.
Outros flertes
Naquela época, a arte passou a ser o principal portador da mensagem do sofrimento do povo latino. Também foi um meio-termo encontrado para a permissão de mais trocas culturais entre o Brasil e os países de língua espanhola que compõem o continente.
A “Maria, Maria“, personagem tipicamente brasileira de Milton Nascimento, se tornou argentina, na voz da cantora argentina Mercedes Sosa. Mas o movimento contrário também aconteceu. “Yolanda“, do artista cubano Pablo Milanés, virou brasileira na interpretação de Chico Buarque. Isso para citar apenas dois exemplos deste interessante movimento de aproximação.
Mais importante do que a mera tradução, vemos que essas trocas reforçam a identidade latina. Personagens originalmente “locais” se transformam em figuras “continentais”.
Atualmente
Quanto ao tema “música”, é complicado traçar um paralelo entre os anos 70 e os dias atuais. Muita coisa mudou nos mais amplos sentidos possíveis. Mas uma coisa é certa: as possibilidades para a “dominação mundial” da música latina não são pequenas.
A latinidade brasileira tem se mostrado cada vez mais explícita na ampla e plural sonoridade de grupos como Francisco, el Hombre e BaianaSystem. Mas também existe o apelo pop do reggaeton, que tem se consolidado cada vez mais com o tempo. Neste quesito, temos em Anitta a grande embaixadora, seja cantando em português ou em espanhol (ou até em inglês).