Crítica: A Vastidão da Noite é uma das melhores surpresas de 2020

Distribuído pela Amazon, a ficção científica homenageia clássicos mas inova ao valorizar elementos diferentes do habitual.

Cena de A Vastidao da Noite
Foto: Divulgação

Cansado de filmes pipoca, com muito apelo comercial e que nem sempre entregam tudo que prometem? Os serviços de streaming estão nos presenteando com ótimas opções “alternativas” e A Vastidão da Noite (The Vast of Night), do Amazon Prime Video, é uma delas. Apesar de ter estreado há alguns meses, não é o tipo de produção que atinge um público tão grande mas vale uma análise mais aprofundada.

Este é um filme de ficção científica de baixíssimo orçamento (apenas US$ 700 mil) que marca a estreia do diretor Andrew Peterson e quase não conseguiu apoio para estrear. Os direitos de distribuição foram comprados pela Amazon aos 45’ do segundo tempo, quando The Vast of Night conseguiu uma indicação ao Spirit Awards de Melhor Primeiro Roteiro, no Festival de Sundance de 2019.

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A trama se passa nos anos 50 e acompanha a telefonista Fey (Sierra McCormick) e o radialista Everett (Jake Horowitz) durante uma noite na pequena cidade norte-americana de Cayuga, no Novo México. Eles têm que trabalhar em uma noite em que toda a cidade estaria ocupada com um jogo de basquete no ginásio da escola local e acabam testemunhando uma série de acontecimentos estranhos, possivelmente relacionados a aparições alienígenas.

A ambientação é uma clara homenagem ao clássico The Twilight Zone, reforçada por recortes de trechos que passam em uma tela de televisão antiga. Além de deixar claro que se trata de uma ficção, esta opção faz com que tudo pareça um episódio de série de outrora. É como se nós mesmos fôssemos convidados a voltar para os anos 50 e assistir a tudo como se estivéssemos naquela época.

Foto: Divulgação

O curioso sobre The Vast of Night é que a história… não tem nada de mais. O que menos importa aqui é “o que” está se desenrolando, pois não há absolutamente nada de muito chamativo. No entanto, “como” tudo se desenvolve é um diferencial e tanto. Para uma história tão simples se tornar algo interessante, porém, todos os aspectos técnicos teriam que se destacar de alguma forma e é exatamente isso que acontece. Direção, fotografia e, principalmente, trilha sonora, roteiro e atuações.

Fica muito perceptível o jeito como o cinema pode manipular as sensações do público com seus recursos técnicos, algo que é feito maravilhosamente por Peterson.

Foto: Divulgação

O clima crescente de tensão parte de um início descontraído para apresentar os protagonistas e a cidade. A fotografia já entrega um ambiente escuro a partir daí, mas tudo vai escalonando para um grande suspense sobre o que está acontecendo, de fato, enquanto todos estão distraídos com a partida de basquete.

Para isso, são utilizados takes longuíssimos. Em certo momento, um tracking shot de quase cinco minutos é utilizado de forma ousada, mas é tão bem feito para dimensionar o cenário e posicionar os personagens que o público entra totalmente no clima da narrativa.

Tomadas muito grandes, contudo, não significam muita coisa apenas por existirem. É preciso estar em uníssono com as atuações inspiradas do elenco e um texto convincente para não dar a impressão de ser puro exibicionismo. É exatamente isso que acontece, com diálogos tão bem escritos e interpretados que prendem a atenção o tempo inteiro

Foto: Divulgação

Chegamos, então, ao maior valor de The Vast of Night, que é a utilização do som como um aliado poderoso, seja na voz dos atores, seja na trilha e nos efeitos sonoros. Apesar de o cinema ser uma expressão artística majoritariamente visual e utilizar esses recursos como complemento para o que está sendo mostrado na tela, Peterson dá uma subvertida nesse conceito e praticamente inverte os papéis.

Isso fica nítido quando analisamos as profissões dos protagonistas (operadora de telefones e radialista), ou a importância de ferramentas como um gravador para apresentar a personalidade mais desajeitada de um, mais descolada do outro.

Além disso, o rádio é praticamente um personagem em si, dando voz a minorias, democratizando o acesso à informação e sendo um mecanismo de denúncia – características latentes nos anos 50 e que sobrevivem até hoje.

O áudio é tão relevante que o diretor, sem a menor vergonha, chega a tirar todas as imagens da tela em determinado momento, deixando tudo preto durante um diálogo e dando total atenção à conversa. O melhor é que isso soa natural, é feito de forma delicada e é muito, muito diferente do que estamos acostumados.

É inevitável comparar com uma das formas de “evolução” do rádio, que é o podcast, e uma das suas variedades, que são os programas dramatizados. O melhor exemplo seria, talvez, Welcome to the Night Vale, podcast apresentado como se fosse um programa de rádio no povoado fictício de Night Vale.

Foto: Divulgação

Reparou como até agora não fez a menor diferença se o que estava acontecendo era realmente um episódio envolvendo alienígenas, como citado lá no início? Esse desapego pelos finalmentes pode ser um pouco desafiador para parte do público, mais habituado ao corre-corre para entregar resoluções críveis.

Mas A Vastidão da Noite se contenta em finalizar uma história de uma forma simples, convincente para quem chegou até ali. O espectador, assim como parte da cidade que nunca vai saber o que aconteceu fora do ginásio do colégio, vai apenas seguir a sua vida como se nada tivesse acontecido.

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