Não restam dúvidas de que parte significante de quem somos tem relação com o mundo externo. Desde as gírias que falamos e nosso sotaque até os hábitos de consumo, essas características moldam personalidade e criam uma visão sobre o mundo. Mas e a parte interna, no que diz respeito a nós mesmos e a nossos sentimentos? Onde ela se encaixa nessa equação.
A impressão que fica é a de que passamos muito tempo contemplando o mundo e esquecemos da nossa própria imensidão. Essas questões foram levadas à tona por conta da quarentena do coronavírus. Diante da necessidade de nos isolarmos socialmente, muitos estão lidando com a própria companhia de uma maneira que nunca precisaram antes.
Mas o curioso é que foi a questão só entrou em pauta por causa de uma pandemia mundial quando, na verdade, esta é uma questão que deveríamos ter sempre em mente. O músico Gustavo Bertoni, por exemplo, compôs antes da chegada da Covid-19 o seu terceiro e mais novo disco solo. Intitulado The Fine Line Between Loneliness and Solitude, ele traz à tona essa temática através de reflexões pessoais após se mudar para São Paulo. A solitude (que é algo diferente de solidão) de Gustavo em seus passos iniciais na nova cidade fez com que ele entrasse em contato com questões internas às quais ainda não tinha dado o devido cuidado.
“A linha realmente é tênue”
The Fine Line conta com nove faixas que contemplam o folk, ao mesmo tempo que nos oferecem traços experimentais sustentados por sutis elementos eletrônicos. Assim, é criada toda um atmosfera envolvente, que prende o ouvinte do início ao fim. Também vale destacar as participações especiais da cantora YMA e do pianista norueguês Kjetil Mulelid.
Gustavo respondeu algumas perguntas do TMDQA!, explorando bastante o ainda pouco difuso estado de privacidade ao qual remete o termo “solitude”. Ele também falou sobre privilégios, sobre seus processos de composição e sobre suas influências (que, vale adiantar, não incluem Bon Iver).
Leia a entrevista logo abaixo!
TMDQA!: Eu nunca tinha parado para pensar antes nos conceitos de “loneliness” e “solitude”. Acontece que “loneliness” carrega uma carga negativa, e pode remeter à dor de estar sozinho. “Solitude”, no entanto, é algo que se mostra necessário na vida: a sensação de estar na presença de si mesmo. O que te levou a refletir sobre isso para a criação do disco? O que esse tema simboliza para você?
Gustavo Bertoni: É, pois é. Talvez o próprio fato de culturalmente atribuirmos essa carga negativa à solidão é o que a institui como tal. Talvez não precise ser… Virar essa chave, ou mudar esse prisma, é o que nos oferece o estado de solitude – que não acredito ser sobre sentir-se sempre pleno ou tranquilo. Pode ser que seja sobre estar ciente das dualidades, do gostoso e do difícil de estar só, e lidar com isso com mais tranquilidade, menos compensações.
A linha realmente é tênue e não tenho a pretensão de tentar defini-la, sinceramente. Tentei olhar pra ela como um borrão turvo de cores, sobrepostas, sem a necessidade de dar forma. Acho que é sobre a relação que cada um cria com a própria companhia, com o próprio ruído mental que temos ao buscarmos o silêncio. Tem muita gente cheia de companhia que se sente só, enquanto muita gente só se sente conectada com o outro ou com um todo. Essas reflexões surgiram a partir do meu primeiro ano em São Paulo morando sozinho, solteiro e entrando em contato com questões minhas que não havia dado a merecida atenção e cuidado.
TMDQA!: Ele foi feito em 2019, em tempo mais curto do que seus outros discos. O que você acha que justifica isso? O tema escolhido foi mais fluido para a consolidação da narrativa?
Gustavo: Aconteceu naturalmente. Talvez pelo fato de ser muito pessoal e não envolver vozes/percepções externas no processo (ou o mínimo possível, né? sempre tem). Não queria um tom muito coloquial ou um ritmo que soasse revisitado e editado. As músicas foram todas feitas numa sentada só, praticamente. Pareceu justo abraçar isso para preservar a sensação do momento e não uma apuração do que foi sentido. É como pintar ao ar livre: se demorar ou pensar demais a luz já é outra. Dizem, né. Eu não pinto, mas fica aí a metáfora pseudo-intelectual para vocês.
“Arranjos um pouco mais imersivos e assimétricos”
TMDQA!: Essa relação que temos com nós mesmos acaba, inevitavelmente, sofrendo interferências do mundo exterior. Desde padrões de beleza até status social, a forma pela qual vemos o mundo acaba impactando a maneira pela qual nos vemos. Eu sinto essa dualidade bem presente no disco a partir de elementos sonoros que nos fazem pensar na coexistência (ou no impasse) entre a intimidade e a vida urbana. Como essa estética musical foi desenvolvida, misturando folk com arranjos mais experimentais?
Gustavo: Foi um caminho natural também, por diversos fatores. Meu último álbum é um tanto cru/simples. Neste, eu quis mergulhar mais nas possibilidades de arranjos um pouco mais imersivos e assimétricos, com mais camadas. O folk em si é um estilo nada brasileiro e ao importá-lo (na real, ao nos descerem goela abaixo), o colocamos no nosso imaginário de forma rural/bucólica, além da relação com cenários e estereótipos da cultura de língua inglesa (Irlanda e Estados Unidos).
Faz mais sentido, na minha visão, levar o disco para um lugar mais urbano e menos “americano”. Isso já agrega um tanto de ruído e instrumentos diferentes. Só quis expressar isso de uma forma que conduza mais a minha realidade. Fazer isso, no papel, é simples, mas, ao mesmo tempo, não é. Já somos condicionados a esses comportamentos colonizados. Quis oferecer menos um “escapismo” e mais uma integração desse som no agora e no aqui.
TMDQA!: Essa sonoridade foi baseada em algum artista ou movimento musical em específico? O que você estava ouvindo nesse momento de solitude para a composição do disco?
Gustavo: Em vários. Cada pessoa envolvida no projeto trouxe suas influências e isso expande a parada a um ponto de ser difícil e/ou até desnecessário nomear. Todos nós curtimos muito trilhas e música instrumental contemplativa. O Lucas Mayer, produtor do disco, tem muito vocabulário em diversos gêneros. Então, flui fácil. Já produz folk faz um tempo, do mais pop ao mais sofisticado. Tiramos sons menos convencionais pro estilo, só microfone veio de fita e umas gambiarras inusitadas pra gravar os violões dedilhados. O Max Van Dusen, berlinense que colaborou no disco e que, inclusive, veio pra SP terminá-lo com a gente durante o carnaval (entre noitadas em Berlin e carnaval de SP, fico surpreso com o nível de detalhe e comprometimento que conseguimos para as gravações hahaha).
Trouxe algumas sagacidades nos synths analógicos e beats. Curtimos muito também alguns lances de música eletrônica minimalista/ambiente. De menos óbvio, acho que veio muito daí. No mais, dos compositores mais atuais, vale citar o Scott Matthews, a Haley Heynderickx, a Adrienne Lenker (Big Thief), Moses Sumney… Dos mais velhos, tem Ted Lucas, Leonard Cohen, Fleet Foxes… São artistas incríveis que nem todo mundo conhece. Vou ter que desapontar uma galera. Por mais que curta muito o trampo, a gente não deu play em uma música do Bon Iver durante as gravações, tá? Galera insiste em achar que é uma baita influência… “Tem falsete e violão!!!… Bon Iver!!”
“A gente acha prazer e beleza em coisas menores”
TMDQA!: Apesar de o disco ter sido feito em 2019, acredito que o isolamento social tenha potencializado essa reflexão sobre estar sozinho em você, certo? Como foi lançar um disco sobre esse tema em pleno 2020? O que você tem recebido de feedback em relação ao novo trabalho?
Gustavo: É, inevitavelmente. Mas não é minha intenção fazer esse link. Pelo contrário, gosto de deixar claro que o álbum foi composto e gravado (quase todo) antes de começar a me isolar. Arte tem isso de sentimos e interpretamos a partir do nosso estado de espírito e contexto no momento da absorção, mesmo sabendo o contexto ou intuito. Esse momento nos forçou a lidarmos mais com a própria companhia mesmo e muitos estão nesse processo sozinhos.
Cara, sou muito privilegiado e não senti metade do impacto que as pessoas estão sentindo. Fui passar uma boa temporada na casa dos meus pais em Brasília, no maior conforto e com ótima companhia deles e do meu cachorro. Tenho trabalhado muito, talvez mais que nunca, e não senti tanta falta de estar com pessoas, sinceramente. Estava curtindo estar comigo. Mas não é o caso de muitos… Entendo que minha realidade é de uma parcela pequena. Então, não vou ficar aqui falando que foi a parada mais sofrida do mundo.
Minha preocupação mais pulsante é com o todo, não com a minha solidão. É o que é. Da minha posição, tento fazer minha parte e isso inclui não ficar me lamentando de “barriga cheia”. Vi muita gente na minha posição fazendo isso. Prefiro não ocupar esses lugares. Fico feliz e realizado de saber que dei meu melhor em um álbum que está fazendo companhia pra muita gente e trazendo reflexões boas sobre um tema atemporal e importantíssimo. Pelo que vi, tem acompanhado as pessoas em momentos introspectivos, contemplativos e, curiosamente, de trabalho. Nesse projeto, me realizo levando beleza, introspecção e vulnerabilidade para as pessoas. No Scalene, o bagulho é mais complexo.
TMDQA!: Em tempos de isolamento social (pelo menos na teoria), em termos gerais, a solitude se transformou em solidão ou o contrário também aconteceu, de as pessoas aprenderem a conviver com a própria companhia?
Gustavo: Ah… não cabe a mim dizer. São processos pessoais dos outros. O que gostei de tentar abraçar é um tempo diferente. Foi um pouco desacelerado durante um tempo. A gente acha prazer e beleza em coisas menores. Isso ajuda na solidão porque faz ela parecer menos vazia. É disso que acho que nunca podemos abrir mão. Nos faz humanos. Nos tira do ritmo e das demandas loucas desses tempos hiperbólicos e autodestrutivos que estamos vivendo.
Participações e processos de composição
TMDQA!: Como foi a oportunidade de colaborar com o norueguês Kjetil Mulelid e com a cantora YMA? Por que pensou neles como as colaborações que dariam ainda mais brilho ao disco?
Gustavo: Cara, minha amiga Fernanda, que tá morando em Berlim, me levou num show do trio do Kjetil (se pronuncia meio que “Siétil”, o L com a língua no teto da boca). Fiquei chocado com os caras e no intervalo fui comprar um disco na “mesa de merch” (galpão do bar) e ele estava lá. Trocamos uma ideia boa. Ele se amarra em bossa nova. Enfim, mantivemos contato.
Na demo de “Mirror In The Room”, tentei fazer um improviso meio jazz atonal na parte final e é lógico que ficou uma bosta. Tomás até riu quando mostrei e falou “tá, acho que entendi o que você tentou fazer…”. Então, por que não chamar um devido pianista de jazz pra fazer o tal improviso? Ele fez com o esforço que eu faço um riff post hardcore de zueira numa passagem de som. Aí ele se amarrou em “Patience” e fez por vontade própria uma continuação do tema do refrão, que virou o epílogo “Alnes”. O Lucas ouviu e em um dia meteu a colagem das texturas e os arranjos todos e me mandou. Não mexi em um cabelo dessa música.
A YMA é muito foda. E é uma das pessoas mais gostosas de se conversar e de criar junto. A entrega dela para as coisas é genuína e ela abraça várias linguagens. Enxerga as coisas de um modo inusitado, tem muita referência e é um doce. Foi um prazer colaborar com ela e isso surgiu, na verdade, a partir de um convite dela para cantar numa música que ela fez. Não sei quando e nem se vai sair. Ainda não gravamos. Fiquei surpreso que ela curtia meu trampo solo e um dia fomos tomar um café. Depois de cantarmos essa música linda dela, tinha certeza que era ela que faria o dueto de “White Roses”.
TMDQA!: O seu trabalho solo, em paralelo ao trabalho com a Scalene, mostra a sua versatilidade enquanto artista. Quais são as principais diferenças entre compor com uma banda e, por assim dizer, em sua própria solitude?
Gustavo: São muitas as diferenças e por isso que é tão legal. Scalene cria a partir da própria tensão construtiva de ideias diferentes, de pessoas cada vez mais únicas e menos codependentes. São onze anos de banda e cada vez mais camadas e referências para se conciliar. Como compositor “líder” num processo grupal, rola uma vontade de tentar criar coisas que gerem faíscas e identificação no processo e vocabulário deles. Caso contrário, perde o sentido e força. Já a composição solo em si é total sobre a solitude e um diálogo interno. Como em qualquer relação, ter esse espaço criativo pra desenvolver minha individualidade é fundamental pra que eu possa criar em grupo com mais tranquilidade.
TMDQA!: The Fine Line é o seu terceiro disco solo, depois de The Pilgrim e Where Light Pours In. De 2015 para cá, o que você sentiu de diferença em relação aos seus métodos de composição?
Gustavo: Boa pergunta… não pensei muito sobre isso. Compor virou um hábito desde então. É uma necessidade e um prazer ao mesmo tempo. Acho que consigo me questionar bem menos durante o desenvolvimento da ideia inicial. Descarto com mais facilidade. Não me frustro com algo não ficar da forma que gostaria porque sei que aquela tentativa possibilitou futuras ideias e soluções. Acho que tenho tentado levar cada vez mais o processo de criação para o caminho da expressão, menos da realização ou cumprimento de algo.