Muitos de nós nascemos em um ambiente urbano e acabamos acostumados ao caos da cidade grande. Barulhos de veículos, luzes em toda parte, a incapacidade de ver as estrelas do céu com clareza… Mais recentemente, ainda temos nos acostumado com o aditivo das tecnologias em nossas vidas, fazendo com que o ambiente virtual conquistasse espaço gradativo.
E não é só isso. Uma vez que diz respeito à cidade, o termo “urbano” tem implicações sociais, políticas e antropólogas. E é nesse papel, de cidadão, que boa parte do movimento do rock brasileiro dos anos 80 vai se apoiar.
Não à toa, é também o tema principal por trás das músicas “Música Urbana” e “Música Urbana 2“, ambas composições de Renato Russo, que teria completado 60 anos de idade este ano. Analisamos essas músicas abaixo, levando em consideração curiosidades sobre o contexto de suas composições.
(continua após o vídeo)
Aborto Elétrico
Poucos tiveram efetivamente a chance de ir a shows do Aborto Elétrico, mas o Brasil inteiro conhece seus frutos. Ativa entre os anos de 1978 e 1982, a banda ficou marcada por tecnicamente originar dois dos grupos mais importantes da história do rock brasileiro: Legião Urbana e Capital Inicial. Foi formada originalmente por André Pretorius (guitarra), Fê Lemos (bateria) e Renato Russo (baixo e vocal).
“Música Urbana” foi composta no início dos anos 80 durante um ensaio no Lago Norte, em Brasília. Surgiu de forma bem rápida, como conta Fê Lemos em um episódio do programa “Por Trás da Canção”, do Canal BIS. Para o baterista, esta é a música mais importante de sua vida, pois o lembra de dois amigos queridos que já se foram (André e Renato).
Eu comecei um ritmo chamado ‘shuffle’ e aí o André Pretorius, na hora, fez a guitarra. Flávio fez uma linha de baixo pulsando junto com o bumbo e o Renato fez uma letra na hora.
A música rapidamente ganha notoriedade pela “Turma da Colina” (movimento de bandas de Brasília que também conta com bandas como Os Paralamas do Sucesso e Plebe Rude).
https://www.youtube.com/watch?v=p3y3It99mi4
O primeiro hit do Capital Inicial
“Música Urbana”, mais conhecida pela interpretação do Capital Inicial no disco homônimo de 86, nasceu nesse contexto. A composição é assinada por toda a Aborto, mas ficou “de presente” para a interpretação da banda de Dinho Ouro Preto. O mesmo aconteceu com clássicos como “Fátima” e “Veraneio Vacaína“.
Já o Legião, graças à presença de Renato Russo, herdou “Que País É Este“, “Geração Coca-Cola” e mais. Tudo foi feito sem uma divisão certa para as composições, de forma quase que “instintiva”.
O retrato da cidade de Brasília nos anos 80
“As ruas têm cheiro de gasolina e óleo diesel por toda a plataforma”, diz um dos trechos da faixa.
De acordo com o jornalista Olímpio Cruz Neto, a “Música Urbana” original é um retrato de Brasília nos anos 80, sendo reflexo de tempos enfurecidos. Ele fala mais sobre isso em seu livro “Playlist — Crônicas sentimentais de canções inesquecíveis“, lançado em 2018. Em sua visão:
A visão da Rodoviária, da Torre de TV, os carros, o cheiro de gasolina, a sensação de abandono da cidade… Aqueles vazios desesperadores de Oscar Niemeyer na urbe que pareciam refletir os descampados existenciais de toda uma geração asfixiada pelos tecnocratas e milicos.
Fê e Flávio Lemos, em vídeo pulicado no canal do Capital no Youtube, relembram que a inspiração de Renato para criar a letra veio justamente da noite anterior ao ensaio no qual nasceu a música. Os membros da banda foram para uma festa e tiveram que andar boa parte do trajeto a pé, diante da falta de transporte público local. Flávio relembrou:
Chegou a madrugada. A festa acabou. Voltamos a pé. Éramos um grupo de 6 ou 8 pessoas. (…) Essa caminhada demorou umas duas horas pelo menos. Estava ventando frio. Chegamos na plataforma e esperamos amanhecer porque os primeiros ônibus começavam a circular às 6 da manhã. Ficamos sentados ali esperando o cheiro de gasolina e óleo diesel. (…) Era inverno e baixou uma neblina antes de amanhecer. De onde a gente estava sentado, normalmente você vê a torre que fica logo à frente.
Demo de 83
Uma demo, gravada em 1983 pela formação inicial do Capital Inicial, mostra uma versão embrionária da canção que conhecemos hoje.
Para formar o Capital, os irmãos Lemos convocaram o guitarrista Loro Jones e a guitarrista e vocalista Heloisa Helena, que deixou a banda em pouquíssimo tempo. Ainda sem Dinho Ouro Preto nos vocais, a voz da gravação ficou por conta de Loro.
Com algumas mudanças no instrumental (incluindo a adição de piano e de metais), a contribuição vocal de Dinho e consolidação do disco de estreia (que viria três anos depois), “Música Urbana” se tornou o primeiro grande sucesso do Capital.
Orelhão
Dinho, grande fã do Aborto, foi quem “relembrou” o Capital de tocar “Música Urbana”. No “Por Trás da Música”, ele se recorda de ter ligado para Renato Russo, de um orelhão, para anotar a letra da música, já na época da gravação do primeiro disco.
Um dia liguei para ele do orelhão de um conjunto comercial que tinha em Brasília. Ele falou ‘Beleza, Dinho’. (…) Me passou isso por telefone, e eu estava em um orelhão. Eu nem lembro direito como que eu fiz. Acho que peguei uma caneta emprestada de algum transeunte.
“As antenas de TV tocam música urbana”
Esteticamente destoante da original, “Música Urbana 2” soa como um blues de desabafo. Ao ouvir, você percebe angústia, protesto, força e resistência na voz de Renato Russo, em evidência diante de um instrumental mais simplificado.
A poesia descreve a paisagem caótica e mecanizada de Brasília, mas também permite a associação com qualquer metrópole. A “música urbana” está em todo lugar: nas motocicletas carentes, nas televisões, nos cartazes, nos cinemas…
Os PMs armados e as tropas de choque vomitam música urbana. E nas escolas as crianças aprendem a repetir a música urbana. Nos bares os viciados sempre tentam conseguir a música urbana.
A canção faz parte da emblemática fase “Trovador Solitário” de Renato Russo, que se deu no início da década de 80, após o fim do Aborto e antes do início da Legião Urbana. Foi também a época de composição de canções como “Eduardo e Mônica“, “Faroeste Caboclo” e “Anúncio de Refrigerante” (mais conhecida pela versão do Capital), com registros originais em fitas cassete.
Novo momento para o Legião Urbana
O primeiro disco da Legião Urbana, homônimo, foi lançado no início de 1985. Foi ali que o mundo conheceu de fato o talento de Renato Russo enquanto compositor. Mas a consolidação do grupo a nível nacional só veio a acontecer, de fato, com o disco seguinte, o aclamado Dois.
As 12 faixas (ou 13, se considerarmos “Química”) incluem “Música Urbana 2”, que ilustra o então novo momento do grupo. Temas mais introspectivos, neste disco, se fundem a arranjos mais acústicos que se equilibram com o som elétrico das guitarras. O som, no geral, se desprende parcialmente do antecessor, marcado por canções como “Ainda É Cedo” e “Geração Coca-Cola“. É um momento, na história da banda, a partir do qual Renato mostra sua maior veia artística, mesclando seu lado punk com o lado “Trovador Solitário”.
Os ruídos cotidianos
As “Música Urbanas” têm em comum, apesar das diferenças estéticas, a ideia de mesclar críticas sociais ao contexto da cidade. Não é meramente a questão política que marcou as décadas interiores. Trata-se da análise do espaço, através da evocação de elementos ilustrativos nas letras (das antenas de TV aos postos de gasolina). São os ruídos cotidianos que atrapalham a percepção social e espacial.
Dito isso, você consegue imaginar como seria uma hipotética “Música Urbana 2020”? O quanto as novas tecnologias interferem nas nossas percepções sociais e políticas? Deixe sua opinião nos comentários!