"Você pode perder a cabeça e está tudo bem”: Fantastic Negrito canta sobre saúde mental em tempos de pandemia

Fantastic Negrito está lançando um novo disco de estúdio e, em entrevista exclusiva para o Tenho Mais Discos Que Amigos!, falou sobre carreira e pandemia.

Fantastic Negrito
Foto por Peter Koudstaal

Henrique Santiago, colaboração para o TMDQA!

Quando Fantastic Negrito entrou em estúdio para gravar seu terceiro álbum, no início deste ano, ele – e o mundo – não tinham a menor ideia do que aconteceria nos próximos meses. Suas composições ganharam forma antes da avalanche de caos com a pandemia de COVID-19, protestos pelo mundo contra o racismo que extermina negros e negras e a crise do meio ambiente agravada com as queimadas nas florestas do Brasil.

Mesmo sem querer, o título do seu novo trabalho traz uma pergunta que condiz com a realidade do momento: Have you Lost your Mind Yet?, o que, em tradução literal significa “Você já perdeu a cabeça?”.

O músico reuniu histórias de sua vida pessoal para musicá-las de um jeito particular, misturando blues, hip hop, funk e outros gêneros musicais negros, num som bem característico que já lhe rendeu dois prêmios Grammy. Mas ele não faz música para receber esse tipo de reconhecimento, diz.

O TMDQA! bateu um papo exclusivo com Fantastic Negrito, a persona artística de Xavier Amin Dphrepaulezz, em uma conversa sobre saúde mental, racismo, reconhecimento artístico e, claro, muita música.

Spoiler: ele promete voltar ao Brasil assim que o coronavírus passar.

TMDQA!: Devido aos acontecimentos recentes, como a pandemia de COVID-19, novos conflitos sociais marcados pelo racismo, queimadas nas florestas e nos
biomas do Brasil, quero saber primeiro: você já perdeu a cabeça? 

Fantastic Negrito: Sim, e eu acho que está tudo bem, esse é o motivo pelo qual somos artistas e como nos ajuda a ser pessoas criativas. Está tudo bem perder a cabeça porque esse é o tipo de situação que acontece por sermos seres humanos. Você pode perder a cabeça, está tudo bem, e podemos fazer algo para contornar todos os obstáculos que enfrentamos. Isso nos dá uma oportunidade de nos tornarmos mais fortes e superar as próximas coisas que podem ser obstáculos. É como eu vejo.

TMDQA!: Como suas experiências pessoais o influenciaram no processo de criação de seu novo trabalho?

Fantastic Negrito: Bem, esse é um álbum extremamente pessoal. Meus álbuns anteriores tinham sido sobre tópicos mais gerais, algo mais macro, e eu vejo que esse é mais micro. Eu escrevi sobre saúde mental e como a tecnologia a afeta. Essa foi uma grande parte do novo disco, tentei capturar esse sentimento que meus amigos e colegas estavam lidando diariamente com a proliferação de informações em 2020, com pandemia, racismo, desafios socioeconômicos globais que enfrentamos. Eu escrevi sob a perspectiva de como isso nos desgasta mentalmente enquanto seres humanos. A tecnologia tem nos entregado a tão chamada “vantagem” de ter tudo 24 horas no toque de um botão, e eu não sei se isso é bom.

TMDQA!: Como você encontra o equilíbrio entre viver com sanidade no mundo de hoje e criar sua arte a partir do que estamos vivendo ultimamente?

Fantastic Negrito: Quando eu faço um álbum, tento me manter atento ao que está acontecendo e é por isso que o título me parece oportuno: “Have you lost your mind yet?” As pessoas perguntam, “Uau, você escreveu isso durante a pandemia?”. Na verdade, eu escrevi e mixei uns meses antes da pandemia. No meu primeiro vídeo, “Chocolate Samurai”, fiz um vídeoclipe de crowdsourcing com pessoas de todo mundo. Eu estava atento até mesmo quando fiz meus primeiros álbuns, como o Last Days of Oakland. [A versão de] “In the Pines”, a propósito, a guitarra que eu usei está exposta no Rock and Roll Hall Of Fame, o que é uma grande honra por estar ao lado de N.W.A, Jimi Hendrix, Tom Morello e Aretha Franklin em uma exposição de canções de protesto. É uma ilustração de como fazemos música das nossas almas, por isso tem um alcance tão grande.

Quando escrevi “I’m so Happy I Cry”, uma colaboração com Tank, do Tank and the Bangas, reunimos ali pela primeira vez na história dois vencedores do NPR Tiny Desk Contest, e o resultado foi “I’m so Happy I Cry”. A minha parceria com [o rapper] E-40 ultrapassou os limites, e aquela canção foi sobre a minha saúde mental, o meu modo de lidar com alguns dos meus problemas, o duplo padrão com as mulheres, é o que se trata “Searching for Captain Save a Hoe”. Todas aquelas músicas, “King Frustration”, “These are my friends”, eu lido com isso ao colocar minhas mãos num órgão Hammond B3 e [o resultado é] música negra de raiz – funk, black, rhythm and blues, blues, tudo. Isso é a liberação do sofrimento humano, é um jeito de entrar nessa experiência catártica de produzir e escrever um álbum ou um livro, ou fazer bolinhos ou um bebê [risos], o que quer que seja. Essa é uma expressão humana de conceber e compartilhar.

TMDQA!: Você acredita em terapia para a saúde mental?

Fantastic Negrito: Absolutamente! Digo que a minha música é uma igreja sem religião. Para algumas pessoas se trata de um show, eu digo que é uma terapia grupal. Ei, eu sou um cara que estava tocando nas ruas há poucos anos, e é por isso que comecei a contar a história para o mundo em que vivemos. Quanto aos meus pensamentos sobre terapia, acredito que as pessoas concordam e eu criei uma conexão realmente muito forte com as pessoas nas ruas e foi assim que me tornei conhecido no mundo. Ando pelas ruas, toco a minha música e as pessoas ainda me apoiam. É assim que cheguei ao álbum número 1 da Billboard Blues. São pessoas me apoiando, não instituições. Instituições precisam ter tudo “fechadinho” para que eles possam vender o quanto quiserem para as pessoas. Não faço música por dinheiro, eu crio música para terapia, para o bem-estar espiritual. Essa é a minha motivação, cara.

TMDQA!: Have you lost your mind yet? traz ritmos mais diversificados, como referências gospel, hip hop e funk. Você ouviu alguns artistas do passado para inspirá-lo a fazer este álbum?

Fantastic Negrito: Eu sempre me inspiro nos grandes artistas. Esse álbum tem muitas influências de Stevie Wonder, Queen e James Brown. Isso tudo é uma extensão do blues, que chamo de música negra de raiz, que, como já disse, reúne funk, rock, rhythm and blues, soul, hip hop e jazz. É uma extensão da vivência afro-americana na América do Norte. É uma extensão da música, é a nossa riqueza. Eu não sou “fantástico”, mas ao me chamar de Fantastic Negrito estou me referindo a todas essas pessoas que vieram antes de mim, não sou eu.

Quando escrevo músicas como “King Frustration”, estou batendo nessa tecla. Escrevi aquelas linhas de baixo após pensar em uma prima viciada em drogas andando pela rua, a mesma rua que ela caminhou provavelmente por 30 anos. O modo dela de falar, de andar, os movimentos me inspiraram a escrever aquelas linhas de baixo. E os dois solos de órgão, por quê? Porque somos livres. Ninguém vai dizer a Fantastic Negrito que ele não pode fazer nada. Somos livros e temos que abraçar isso para manter nossa saúde mental, a liberdade que temos, a liberdade de escolha.

TMDQA!: Seu novo álbum foi escrito antes dos assassinatos de George Floyd e Breonna Taylor. Suas canções parecem ser ideais para o contexto político atual. Você vê dessa
forma?

Fantastic Negrito: Ouça, você tem que olhar desta forma: é uma situação que acontece desde sempre na nossa comunidade, desde que sou criança. Não é novidade para mim ou para qualquer outra pessoa que vive ali, mas pode ser para quem passou a conhecer essa realidade agora. Eles viram George Floyd e para mim não foi nada porque sabemos que isso acontece desde sempre na nossa comunidade. A polícia, o braço forte do Estado, arbitrariamente executou essas pessoas. Então, você já perdeu a cabeça? Isso acontece o todo tempo e estamos sempre escrevendo coisas do tipo. Comentários sociais são o que eu faço.

 

TMDQA!: Na semana passada, a revista Rolling Stone atualizou sua lista de 500 melhores álbuns de todos os tempos e What’s Going On (1971), de Marvin Gaye, está no topo…

Fantastic Negrito: [Interrompe para dizer] Claro! É a mesma coisa. Nós, os negros, temos escrito sobre isso há tempos. E não muda…

TMDQA!: Curiosamente, a canção-título tem sido usada em protestos contra o racismo nos Estados Unidos nos últimos tempos. Quero saber qual é a importância desse álbum quase 50 anos depois?

Fantastic Negrito: A coisa mais importante da vida, que é a verdade. Isso é o que importa. A verdade é sempre importante, cara, não importa se foi há cinco mil anos ou cinco minutos. É um componente extremamente importante da arte, é o que há de mais comovente. E me dá uma grande sensação de inspiração saber sempre disso, a verdade!

TMDQA!: Marvin Gaye cantou sobre problemas sociais há cinco décadas e Fantastic Negrito canta sobre isso hoje.

Fantastic Negrito: Eu sou uma extensão dessas pessoas. Sou uma extensão de Marvin Gaye, Stevie Wonder, Robert Johnson, Prince, James Brown, Skip James. Sou apenas uma extensão. Eles tornaram muito fácil para mim porque produziram tantas riquezas na música.

 

TMDQA!: Você já disse antes que não faz música para ganhar prêmios, mas está preparado para ganhar seu terceiro Grammy [venceu a categoria de Melhor Álbum Contemporâneo] com Have you lost your mind yet?

Fantastic Negrito: Eu nunca penso nisso. Para ser honesto com você, se eu pensar, acredito que não consigo fazer grandes álbuns. Um dia, quando for um homem velho, espero, vou olhar para tudo e dizer que o mundo precisa de verdade, o mundo precisa de voz, e é nisso que estou interessado toda vez que faço um álbum. Não estou tentando impressionar ninguém, quero ir além e fazer o que melhor que posso, o mais honesto e sincero.

Eu chamo a minha música de “música para crianças” porque escrevo para criancinhas, para as minhas crianças. A mensagem é para elas. Você perguntou por que o álbum de Marvin Gaye ainda é relevante depois de 50 anos, certo, e eu estou atrás disso. Não estou atrás de prêmios, estou atrás de Marvin Gaye, de David Bowie. Isso é o que me importa, fazer grandes álbuns, cara.

TMDQA!: E alguns dos grandes jamais foram premiados enquanto eram vivos.

Fantastic Negrito: Nunca, nunca! O que foi dado para Robert Johnson? O que foi dado para Skip James? Lightning Hopkins? A lista continua. E o que eles deram para o mundo? É por isso que digo que Fantastic Negrito não sou eu, são as minhas origens. Não sou eu que sou fantástico, são essas pessoas. E eu honro isso.

TMDQA!: Com todos os problemas que estamos enfrentando no mundo, quais são seus pensamentos sobre o futuro para a humanidade?

Fantastic Negrito: Cara, eu sempre sou otimista em relação a tudo, porque eu vejo desta forma: vamos fazer o que temos que fazer e as pessoas podem tomar as boas decisões. A humanidade vai fazer o que tem feito [risos], é um sobe e desce… Um presidente negro [Barack Obama], um presidente racista [Donald Trump]… Holocausto e os movimentos de liberdade. O homem é muito previsível, não é preciso que eu diga nada. O que me importa é o que posso fazer. Como homem, esse é o poder que tenho: o que eu posso fazer? Não posso controlar ninguém, posso contribuir com músicas belas e torcer pelo melhor.

TMDQA!: E você acredita que no ano que vem as coisas vão estar por cima?

Fantastic Negrito: Eu espero que sim, estou sempre torcendo, mas sei que a ameaça está por perto.

TMDQA!: A situação política dos Estados Unidos está um tanto parecida com a do Brasil.

Fantastic Negrito: Sim, cara! Eu leio bastante sobre isso, a violência policial, o louco do presidente de direita [Jair Bolsonaro]. Eu leio sobre isso. Mas temos que ser resilientes, fortes e lutar contra esse mau que foi instaurado, que é o ódio.

TMDQA!: O nome do nosso site é Tenho Mais Discos Que Amigos! E para terminar esta entrevista, qual é o disco que você chama de seu maior amigo hoje em dia?

Fantastic Negrito: Antes de mais nada, quero dizer que esse é um nome bonito e incrível. É muito inteligente, cara, muito, muito inteligente. O que tenho ouvido? Eu digo, cara, que tenho ouvido muito Toots and the Maytals, ele [Toots Hibbert] acabou de morrer. Tenho ouvindo “Redemption Song” [de Bob Marley], essa música ainda mexe bastante comigo. Eu estava ouvindo Patti Smith outro dia, gosto bastante dela. Alguém disse uma vez que sou a versão masculina da Patti Smith e foi o melhor elogio de todos. E também quando me chamaram de o “Al Green punk rock”. Eu amo esses dois.

TMDQA!: Obrigado pelo tempo e pela conversa, Fantastic Negrito.

Fantastic Negrito: Obrigado, nos vemos ano que vem no Brasil!