Lovecraft Country, um dos grandes lançamentos da HBO em 2020, chegou ao final da sua primeira temporada deixando excelentes impressões. Inspirada no livro homônimo escrito por Matt Ruff, a obra se utiliza do imaginário das tramas de terror cósmico para contar uma história que se passa nos anos 1950, nos Estados Unidos.
Apesar de contar com credenciais pesadíssimas por causa da produção-executiva de Jordan Peele (Corra!, Nós) e J.J. Abrams (Lost, Fringe, Star Trek), a série deve dedicar todos os méritos possíveis a Misha Green, showrunner, roteirista de todos os episódios e até diretora de um deles.
Ela conseguiu alcançar a linha ideal entre a adaptação de um livro e a criação de meios para que a série se tornasse um produto único. Sua condição como mulher negra a colocou, de fato, em melhor posição para retratar o contexto racial da trama, aproveitando a ironia de contar uma história de personagens pretos a partir de uma forte inspiração em obras de um autor racista (H.P. Lovecraft é conhecido pelo seu legado literário e referências para diversas mídias, mas também pelo retrato extremamente preconceituoso de populações não-brancas).
Todos os tipos de terror em um só
O que mais chama a atenção em Lovecraft Country é a forma como a série condensou tantos gêneros diferentes dentro de apenas uma temporada.
Apesar de escorados no background de terror, os episódios apresentam subgêneros como body horror, possessão, casa mal-assombrada, seitas e até referências a filmes de aventura, como em um episódio de caça ao tesouro ao melhor estilo Indiana Jones, e ficção científica espacial. O terror cósmico é apresentado no início, mas rapidamente vai abraçando essas outras formas
Não à toa, existe uma infinidade de referências literárias, também nessa tentativa de transformar tudo em uma coisa só. É uma grande homenagem à literatura pulp e, com isso, a série se torna imprevisível.
No entanto, esse amálgama de estilos gera uma certa confusão no desenvolvimento. Apesar de bem-sucedida em quase todas as propostas, Green não escapou de algumas “barrigas” no meio da temporada, até engatar novamente e recuperar o ritmo. Algumas facilitações de roteiro, coincidências muito exageradas e o uso pouco cuidadoso de deus ex machina no final são alguns dos problemas facilmente identificados.
Em contrapartida, também nesse quesito técnico, as atuações são elogiáveis inclusive no elenco coadjuvante. Além do carisma dos protagonistas Jonathan Majors (Atticus) e Jurnee Smollett (Letitia), merecem destaque principalmente Michael Kenneth Williams (Montrose) e Wunmi Mosaku (Ruby). A fotografia também é impecável, com a ótima reprodução dos EUA dos anos 1950 e lidando bem com as transições abruptas para outros estilos completamente diferentes em alguns episódios.
O valor do contexto
É aí que entra a grande qualidade de Lovecraft Country. Não é a formalidade, a técnica como produto audiovisual que faz com que ela seja muito boa ou muito ruim.
O contexto no qual ela está inserida e a coragem com a qual aborda os temas delicados é que elevam a série a um patamar tão alto. O roteiro se utiliza de aspectos históricos para construir uma narrativa fantástica na mesma medida que usa aspectos fantásticos para criar uma verdadeira aula de história.
O subtexto racial, aqui, não é apenas uma ferramenta utilizada para fazer a história andar. Ele é a História em si. Sim, com H maiúsculo, para representar fatos reais como a elaboração do Green Book (guia criado para que negros viajassem com segurança pelos EUA), o assassinato do garoto Emmett Till, em 1955, e o crescente movimento pelos direitos civis no país.
Além das questões relacionadas ao racismo, o roteiro faz uso de outras formas de preconceito para expor o absurdo que eles representam por si só. A homofobia é uma delas, que reprime a sexualidade de homens e mulheres e pode gerar comportamentos violentos, transformações de personalidade devido a conflitos internos e uma pressão psicológica desumana.
Também existe uma característica sutil e pouco citada pela crítica e pelo público, que é a normalização dos corpos femininos “reais”. Existe uma sexualização de personagens que fogem do padrão hollywoodiano de magreza, inclusive com cenas de nudez que evitam esse arquétipo, o que é bastante raro mesmo em produções consideradas mais modernas.
Mas e o terror cósmico?
Em Lovecraft Country, a Magia é algo que faz parte do mundo real. Ela pode até não ser amplamente conhecida pelos cidadãos comuns, mas quando se mostra, não causa o choque e a repercussão que naturalmente se esperaria.
Então, se poções de transformação, feitiços de proteção e monstros assassinos são visíveis e ameaças críveis, onde está o terror cósmico que a série tanto prometeu?
Ora, a ameaça invisível, aquela que jamais se torna tangível e assombra os protagonistas constantemente, é o racismo. Especialmente ele, mas também o machismo e a homofobia, que atingem de formas únicas cada um dos seus alvos.
Eles não têm forma, não têm endereço, não agem conforme uma receita de bolo ou prescrição médica. Eles apenas existem e traumatizam suas vítimas para sempre, assim como as criaturas mitológicas lovecraftianas no contos do autor.
O horror de viver com medo é algo que apenas esses grupos podem sentir. Talvez eles jamais possam descrever a sensação, mas utilizar uma história de terror para criar essa alegoria é algo que Lovecraft Country faz com maestria.