2020 foi um ano atípico em vários sentidos. Muitas pessoas, da noite para o dia, se viram em suas casas, presos em memórias de tempos em que não precisávamos nos preocupar com um vírus assustador.
Com a música e seu mágico poder afetivo, muitos tiveram a oportunidade de “voltar no tempo”, relembrando outras épocas e contextos. Parece que, mais do que nunca, artistas buscaram inspiração em canções já lançadas para fazer esse exercício de revisitação ou até mesmo para a tentativa de criar novos contextos para mensagens ditas há anos.
No Brasil, a estratégia das releituras musicais ajudou a nos fazer conectar tempos tão adversos com outros em que as coisas pareciam mais fáceis (ou não). Os artistas usufruíram dos mais variados recursos e estéticas para dar nova voz àquilo já ouvido antes.
Separamos as 20 melhores covers lançadas em 2020. Para a escolha das músicas, usamos as mesmas regras da lista de covers internacionais. Julgamos as versões pela criatividade na interpretação, pelo timing e pelo impacto no repertório do artista que fez a nova versão. Vale enfatizar que permitimos apenas uma entrada por artista na lista.
Confiram:
20 – “Comportamento Geral”, de Balla e os Cristais (cover de Gonzaguinha)
Chega a ser triste perceber similaridades dos tempos atuais com a letra de “Comportamento Geral“, um dos maiores sucessos de Gonzaguinha. Cada vez mais, temos visto covers dessa canção ganharem vida sob as mais diversas estéticas.
Em 2020, fomos apresentados à versão do grupo Balla e os Cristais, presente no disco de estreia Jogo do Bicho. Guiado por uma interessante guia de baixo e sob a estética “barulhenta” de rock, a releitura imprime novas possibilidades à sua atemporal letra. O fechamento da música, resultante de uma jam alucinada, também merece destaque.
19 – “Espiral de Ilusão”, de Alice Antunes (cover de Criolo)
Criolo sempre foi um artista versátil e essa percepção teve seu ápice quando o músico lançou, em 2017, o disco de samba Espiral de Ilusão.
Neste ano, a cantora Alice Antunes se arriscou em uma releitura para a faixa título. A nova versão em nada se parece com o samba que amamos, e nem tampouco relembra a estética hip hop pela qual conhecemos Criolo. O resultado é dançante e, se for para compararmos com algum trabalho do intérprete original, logo lembraremos da faixa “Etérea”, lançada no ano passado.
18 – “Me Deixas Louca”, de Illy e Baco Exu do Blues (cover de Elis Regina)
Neste ano, Illy lançou o disco-homenagem Te Adorando Pelo Avesso que conta com novas versões para canções que ficaram imortalizadas pela voz de Elis Regina.
O álbum tem sido construído desde o ano passado, mas foi apenas em 2020 que conhecemos a versão arrebatadora de “Me Deixas Louca“, lançada em parceria com Baco Exu do Blues. Conhecida por ser uma canção sensual e romântica, a obra original foi transformada em um interessante dueto no qual Illy e Baco não exageraram em termos estéticos.
Já podendo ser considerada a “rainha das releituras”, a cantora ainda lançou este ano uma releitura ótima de “Desafio”, do disco de estreia do cantor Belo.
17 – “Desentoado”, de A Outra Banda da Lua (cover de Grupo Raízes)
O projeto A Outra Banda da Lua lançou seu disco de estreia homônimo neste ano, mesclando o ancestral e o contemporâneo. Isso ficou bem claro com a única cover presente no álbum: “Desentoado“, composição de Tino Gomes e Charles Boavista originalmente gravada pelo Grupo Raízes.
Dentro da proposta do disco, a releitura se encaixa perfeitamente. Segundo a própria banda, a canção é bem representativa para quem vive no norte de Minas. Ela mostra a peculiar beleza e a força do povo que vive na região. Tudo isso, vale dizer, foi potencializado pelos novos arranjos.
16 – “Eva”, de Fresno e Far From Alaska (cover de Banda Eva)
Pode parecer uma informação chocante, mas “Eva“, grande clássico da Banda Eva (que, vale lembrar, é cover também) é uma música apocalíptica. Trata-se de uma declaração de amor durante o fim do mundo. A estética usada pelo ex-grupo de Ivete Sangalo para contar essa história, no entanto, não condiz exatamente com a trilha sonora que esperamos para o “fim dos tempos”.
Eis que as bandas Fresno e Far From Alaska, duas potências do rock nacional, se uniram para transformar uma das mais populares canções de axé da história em algo muito diferente. Com referências eletrônicas e uma estética cyberpunk, a releitura pode nos confirmar como causa do apocalipse uma invasão alienígena cheia de armas futuristas.
15 – “A Carne”, de Black Pantera (cover de Elza Soares)
Quando dizemos que 2020 não foi um ano fácil, não é só por conta da pandemia. Ao longo do ano, contemplamos diversos episódios de injustiça e crueldade com jovens pretos, que motivaram necessários movimentos como o #BlackLivesMatter.
No Dia da Consciência Negra, a banda Black Pantera disponibilizou o EP Capítulo Negro, com releituras pesadas de canções que trazem o tema do racismo à tona. Além de versões para uma música d’O Rappa e para outra de Jorge Aragão, a cover de “A Carne“, conhecida originalmente através da voz de Elza Soares, é a que melhor resume o trabalho. A mensagem nunca foi tão clara, e o peso oferecido pela banda só potencializa a necessidade dessa discussão.
14 – “Carinhoso”, de Céu (cover de Pixinguinha)
A cultura brasileira é imensamente grata à contribuição de Pixinguinha para a nossa música. Não à toa, na data de seu aniversário (23 de Abril) é comemorado o Dia do Choro. Dentre todas as canções, no entando, “Carinhoso” se tornou seu maior sucesso.
Em 2020, a cantora Céu imprimiu arranjos modernos e sua voz impecável à música, dando vida a uma releitura prazerosa. A cover faz parte da trilha da série Todas as Mulheres do Mundo, disponível na GloboPlay, junto a outras versões de “Carinhoso”. Reinterpretando esse grande hit, temos também Marisa Monte, Alcione, Ana Cañas, Elis Regina, Elza Soares e mais.
13 – “Juízo Final”, de Elza Soares (cover de Nelson Cavaquinho)
Combo de menções à rainha Elza Soares? Temos! Além de ter servido de inspiração para covers, Elza dedicou boa parte de seu 2020 a trabalhar releituras.
Ela lançou homenagens a Gal Costa (com uma cover de “Divino Maravilhoso”, em parceria com Flávio Renegado) e a Titãs (“Comida”, com participação dos próprios). No entanto, o destaque ficar para a bela versão da cantora para “Juízo Final“, clássico de Nelson Cavaquinho.
Com uma letra positivista que pode ser inserida com clareza nos dias de hoje, a cover traz o “toque Elza”, que, em termos estéticos, abraça as camadas de sua MPB recheada de elementos eletrônicos. O simbolismo também se faz presente quando notamos que a versão foi lançada às vésperas de seu aniversário de 90 anos.
12 – “Sua Estupidez”, de FLORA (cover de Roberto Carlos)
Em seu disco de estreia A Emocionante Fraqueza dos Fortes, a cantora FLORA homenageia a vulnerabilidade humana e disserta sobre as relações humanas. É interessante ver que, dentro dessa narrativa delicada e pessoal, ela encontrou espaço para uma canção que não é de sua autoria.
“Sua Estupidez“, composta pela dupla Erasmo e Roberto Carlos), traz versos que poderiam facilmente ter sido escritos por FLORA para dar continuidade a seu disco. A versão, por sinal, foi elogiada pelo próprio Roberto, conforme a cantora nos disse em entrevista exclusiva.
11 – “Meu Escudo”, de Luana Carvalho (cover de Beth Carvalho)
O talento de Luana Carvalho nunca foi novidade, mas nunca a vimos antes de forma tão entregue à arte assim. O disco Baile de Máscara, lançado no início deste ano, é, em um primeiro momento, uma bela homenagem da cantora à sua mãe, Beth Carvalho. No entanto, a quarentena provocada pela pandemia do coronavírus logo após o Carnaval adicionou ainda mais camadas ao trabalho.
Com produção de Kassin, a releitura de “Meu Escudo” (Décio Carvalho/Noca da Portela) é particularmente interessante ao trazer arranjos nada puristas em uma atmosfera completamente nova. E não precisamos esperar muito para concluir isso, já que os primeiros segundos da cover já contam com um belo dedilhado em harpa.
10 – “Vem Quente Que Eu Estou Fervendo”, de Duda Beat (cover de Erasmo Carlos)
No início do ano, em tempos em que a pandemia ainda não era realidade, Duda Beat lançou como single uma versão atualizada para um dos maiores hinos de flerte do Brasil. Estamos falando de “Vem Quente Que Eu Estou Fervendo“, composta por Erasmo Carlos.
A cover surgiu a partir de uma campanha para uma marca de protetor solar e foi gravada em três estilos com clipes em cores diferentes. Conforme a variação da temperatura de determinada cidade, o vídeo veiculado nas redes sociais poderia variar entre o soul (versão “Esquentando”), o reggaeton (versão “Quente”) e, nosso favorito, o bregafunk (versão “Fervendo”).
9 – “Soluços”, de Emanuelle Araújo (cover de Jards Macalé)
“Soluços” é uma das canções de maior destaque no rico repertório do cantor e compositor Jards Macalé. Conta com uma atmosfera fria e misteriosa, em que um angustiado eu-lírico se liberta no refrão em uma espécie de desabafo em alto e bom som.
Macalé, por sinal, foi o foco do disco mais recente da cantora Emanuelle Araújo, intitulado Quero Viver Sem Grilo – Uma Viagem a Jards Macalé. A jornada, que conta com releituras para 10 canções, tem um de seus melhores momentos em uma versão mais contida – e tão misteriosa quanto a original – de “Soluços”. Em sua originalidade, Emanuelle se permitiu manter a calma no refrão conhecido pela explosão de Jards e, sincronizada com o instrumental, usa os versos como se estivesse citando uma poesia. O arriscado movimento nos permite um novo olhar sobre a composição.
8 – “Homem com H”, de Nação Zumbi e Samantha Schmütz (cover de Ney Matogrosso)
Conhecemos a veia artística de Samantha Schmütz mais por conta de suas atuações em filmes e séries, mas não há como negar que existe um talento para a música ali no meio.
A prova definitiva disso é a versão de “Homem com H” (Antônio Barros) que ela lançou em parceria com a Nação Zumbi. À estética original com a qual nos acostumamos a ver Ney Matogrosso cantar, foram adicionados mais presença vocal e mais peso e swing por conta do instrumental da Nação.
7 – “Não Sei Viver Sem Ter Você”, de MAR ABERTO (cover de CPM22)
O duo MAR ABERTO, formado por Gabriela Luz e Thiago Mart, teve um grande ano em 2020. Além do criativo EP Baseado em Amores Reais, o projeto se dedicou ao lançamento de algumas releituras acústicas de altíssima qualidade.
O escopo de artistas homenageados foi amplo, indo da bossa de Tom Jobim ao pagode do Jeito Moleque. Mas, apesar de ser ter sido difícil selecionar apenas uma cover, escolhemos a que mais se destoa da original. A dupla conseguiu fazer de “Não Sei Viver Sem Ter Você“, do CPM22, uma romântica balada.
Tudo na versão impressiona, desde a química vocal entre Gabriela e Thiago até a nostalgia em ouvir versos potencializados anteriormente por uma banda de rock. No mais, vemos como uma mesma mensagem pode assumir diferentes facetas sem perder seu brilho.
6 – “A Ordem É Samba”, de Machete Bomb, Janine Mathias e Fred 04 (cover de Jackson do Pandeiro)
“É samba que eles querem? Lá vai!”
“A Ordem É Samba“, clássico de Jackson do Pandeiro, ganhou uma versão 2020 nas mãos do samba envenenado do grupo Machete Bomb. É a única cover presente em seu mais recente disco MXT, e se faz presente como se fosse uma autoral da própria banda.
Com as contribuições de Janine Mathias e Fred 04 nos vocais, a versão cativa por conseguir manter a atmosfera original enquanto explora com maestria o peso pelo qual a banda é conhecida. A adição de alguns versos adicionais torna tudo ainda mais original.
5 – “Sorriso Aberto”, de Malía, MC Zaac, Mumuzinho e Ruby (cover de Jovelina Pérola Negra)
Cá temos uma releitura “pra nivelar a vida em alto astral”. “Sorriso Aberto” é um dos maiores sucessos da carreira de Jovelina Pérola Negra, e sua mensagem ganhou novos ares através da interpretação conjunta de Malía, Ruby, Mumuzinho e MC Zaac.
Sob a produção e a direção artística de Mahmundi, a releitura integra o projeto Sorriso Rei, que contou também com uma nova versão de “Tempo Rei”, de Gilberto Gil. No entanto, o destaque fica para “Sorriso Aberto” e a potente química entre seus novos intérpretes. Ao samba original, foram adicionados elementos do pop e do funk que nos dão a certeza de que essa letra permanecerá viva no imaginário da música brasileira por mais e mais anos.
4 – “Deixa Eu Dizer”, de Xênia França (cover de Cláudia)
Se você não conhece “Deixa Eu Dizer” da própria voz de Cláudia, talvez lembre de alguns versos por conta do refrão de “Desabafo”, hit de Marcelo D2. Mas Xênia França, em pleno 2020, ajudou a relembrar a totalidade do discurso da intérprete original em uma ótima releitura.
Nessa nova versão, mais explosiva e intimidadora, o “Deixa eu dizer o que eu penso dessa vida”, de uma solicitação, passa a soar como uma ordem. O coro, bem representado por Letrux, Maria Gadú, Luedji Luna e Liniker, potencializa ainda mais isso.
A canção integra o projeto Acorda Amor, lançado no início do ano. A tracklist do disco também apresenta versões inéditas para canções de nomes como Rita Lee, Belchior e Francisco, el Hombre.
3 – “Frevo Mulher”, de Orquestra Frevo do Mundo e Tulipa Ruiz (cover de Zé Ramalho)
Nossa medalha de bronze vai para uma homenagem ao frevo, gênero musical originalmente brasileiro. No início do ano, a Orquestra Frevo do Mundo lançou um disco homônimo, produzido por Pupilo (ex-Nação Zumbi) e Marcelo Soares, que conta com homenagens a clássicos deste estilo sob uma roupagem mais pop.
O time de intérpretes convidados vai de Caetano Veloso a Duda Beat, passando por Otto, Siba, Arnaldo Antunes e mais. Nosso destaque, no entanto, vai para a criativa versão de “Frevo Mulher” protagonizada por Tulipa Ruiz. Com um peso inédito, a cover aproxima o clássico de Zé Ramalho de uma canção de rock potencializada por guitarras e arranjos de metais.
2 – “Voz Ativa”, de Dexter, Coruja BC1, Djonga, DJ Will e KL Jay (cover de Racionais MC’s)
Historicamente, o hip hop reforçou a função da música como instrumento de crítica social. Um ótimo exemplo disso é “Voz Ativa“, clássico dos Racionais MC’s originalmente lançado em 1992 com uma letra poderosa que denuncia o racismo no Brasil. A faixa serviu de inspiração para Djonga e Coruja BC1, atuais expoentes do rap nacional. Juntos a Dexter, DJ Will e o racional KL Jay, eles gravaram uma das mais melhores e mais necessárias releituras do ano.
É triste, de certa forma, ver que foram necessárias poucas alterações na letra original. “30 anos depois, a mesma merda”, é dito em um dos poucos versos inéditos. No mais, vemos Djonga listando uma nova leva de inspiradores artistas pretos, incluindo Elza Soares, Dona Ivone Lara, Lazzo Matumbi e os próprios Racionais MC’s.
Também é emocionante, ao final da música, ouvirmos o depoimento dos intérpretes sobre a importância que a obra dos Racionais possui em suas vidas. Da mesma forma, é certo que ouviremos, no futuro, novos artistas mencionarem Dexter, Coruja e Djonga como inspirações.
1 – “Swing de Campo Grande”, de Gilsons (cover de Novos Baianos)
O topo da nossa lista parte de mais um disco de homenagens, desta vez aos Novos Baianos e ao legado do querido Moraes Moreira, que nos deixou em abril deste ano. Um conjunto de releituras das canções de Acabou Chorare, um dos discos mais emblemáticos da nossa música, foi feito pelo Projeto Replay, uma parceria entre a Som Livre e a Barry Company.
O disco conta com nomes fortes da cena atual: Céu, Onze:20, Maria Gadú, Xênia França, Marcelo Jeneci e mais. Apesar de várias outras covers deste projeto merecerem um espaço aqui, vamos ficar com a solar versão de “Swing de Campo Grande” interpretada pelos Gilsons.
O trio absorveu a mensagem da dançante faixa original e a colocou em um contexto que mescla MPB com pop. É uma emocionante homenagem, com arrepiantes sessões de metais e arranjos modernos. Se o objetivo era traduzir a potência desta música para uma nova geração, os Gilsons conseguiram entregar bem mais do que prometeram!
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Menções honrosas
“Ando Meio Desligado”, de BRAZA (cover de Os Mutantes)
“Índios”, de Letrux, Dado Villa-Lobos e Roberto Schilling (cover de Legião Urbana)
“Piloto Automático”, de Sandy (cover de Supercombo)