Há quem acredite que sons têm cores. De fato, a música (talvez mais até do que as demais manifestações artísticas) possui uma capacidade singular de remeter o ouvinte a momentos, paisagens, pessoas e ao que mais a imaginação der corda. Nisso, se encaixa a fluidez da interpretação pessoal de cada um, o que torna o processo musical ainda mais rico.
Com isso, Tudo Vibra, projeto que marca a estreia solo de Mariana Cavanellas, ex-integrante dos grupos Rosa Neon e Lamparina e a Primavera, merece destaque. Apesar de ser fruto das experiências da cantora com a maternidade (em 2020, nasceu sua primeira filha, Mayu), o trabalho abre margem para diversas interpretações.
As letras atmosféricas (talvez até abstratas) se unem a uma estética musical inclassificável, o que adiciona um ar misterioso e criativo à mistura. O conceito ainda é potencializado pela divisão das 11 faixas do projeto nos EPs Noite e Dia, que se complementam e se reforçam. É um mergulho, que traz base também na literatura indígena e na nossa relação com a terra. E tudo isso, vale dizer, é fruto de um processo de libertação da própria cantora, em busca dos prazeres da vida.
“Essas facetas têm algo a dizer uma para a outra”
Dentre os vários pontos a se notar durante a audição do material, percebemos um intenso mergulho na intimidade de Mariana. Essa intimidade se transforma na intimidade do próprio ouvinte, que pode absorver as músicas de múltiplas formas.
Enquanto isso, o tapete instrumental mescla eletrônico e orgânico, com as contribuições de Nara Torres, André Mimiza, Rafael Fantini e mais. O fato de ser um trabalho não conclusivo torna a percepção do público ainda mais intrigante, e amplia o universo apresentado pelos EPs que, assim como a maternidade, instiga o infinito.
Sobre todo o processo, referências, contextos, origens e arbitrariedades, tivemos a oportunidade de conversar com Mariana. Confira abaixo, ouça Tudo Vibra e não deixe de nos contar o que absorveu de sua experiência com as músicas.
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TMDQA!: De onde surgiu o plano de trabalhar esse conceito de noite/dia? Como foi desenvolvê-lo na esfera da música, traduzindo esse conceito em sons?
Mariana Cavanellas: Trabalhar em cima dos conceitos de noite e dia é uma construção subjetiva. Tem a ver com as imagens e emoções que me acometem com essas sonoridades. Esse trabalho tem minha alma estampada. Não é um trabalho chiclete, que fica na cabeça. Pelo contrário, ele precisa que você vá ao encontro dele, com calma e fone.
TMDQA!: Achei muito interessante o que li sobre o nascimento de sua primeira filha (parabéns, inclusive!) e toda essa potência que a maternidade traz. Como isso contribuiu, mais especificamente, na sua relação com a carreira artística?
Mariana Cavanellas: A maternidade me trouxe muitas questões novas: inspirações, indagações e emoções. Há um tempo, desde que a música virou profissão, tenho me doado ao que ela quer me ensinar e aos caminhos que ela pretende me levar. Tenho em mim diversas manifestações artísticas e a música é uma delas. Com certeza, ela é a mais visceral e direta.
TMDQA! Os dois EPs se complementam, assim como o dia e a noite o fazem. É um contraste necessário e natural. Em “Tudo Vibra” você estabelece uma relação entre a sua criança contemplativa e a sua mulher-mãe. Como esses dois “personagens” se complementam na sua história?
Mariana Cavanellas: Uma criança contemplativa é uma mulher que se tornou mãe. Esses personagens, ou melhor, essas facetas, fazem parte do que estou sou agora. Estou aprendendo a lutar com ternura. Consigo enxergar minha criança abraçando a mulher que me tornei e vejo que essas facetas têm algo a dizer uma para a outra.
“Estou percebendo o que quero comunicar”
TMDQA!: Qual é a principal diferença entre a Mariana do Rosa Neon e a Mariana em carreira solo? De que valores, conceitos ou ideias você abriu mão ou incorporou para abraçar esse novo eu-artístico?
Mariana Cavanellas: A diferença é que agora estou livre, experimentando e experienciando outros estilos. Estou pensando em mim, na minha família… Muita coisa mudou. Muita coisa muda quando se tem um filho.
TMDQA!: Esteticamente, é um trabalho bem curioso. Diferente do trabalho do Rosa Neon, este novo projeto não pode ser “rotulado” em algum gênero musical. Quais foram as suas inspirações para se chegar nesse som? Como foi desenvolver essa identidade sonora?
Mariana Cavanellas: Estou incorporando ainda mais a música. Voltei para o meu campo vasto de pesquisa de timbres. Estou percebendo o que quero comunicar e onde me encaixo, sem abrir mão do meu prazer em cantar. Cantar é uma das formas que tenho de sentir muito prazer. Prazer em viver, prazer em estar feliz, prazer em sofrer, prazer em colocar para fora o que estou sentindo.
Esse trabalho foi desenvolvido de uma forma muito honesta ao que eu queria colocar para fora. Acho que a música precisa dialogar não só na composição, mas também nas camadas sonoras. Precisa existir uma amarra entre elas. Se a pessoa não entender a letra, a faço sentir o que quero da mesma forma. Às vezes uso a música como um processo alquímico. Não é mental, nem planejado. Foi no “flow” do momento. A gente também estava sendo instrumento.
TMDQA: Ele traz referências da literatura indígena também, certo? O quanto a obra de Ailton Krenak, criador do livro “Ideias para Adiar o Fim do Mundo” (por sinal, uma das faixas do disco), contribuiu para o que vemos em “Tudo Vibra” em termos narrativos?
Mariana Cavanellas: Essa imersão teve muito a presença dos ensinamentos dele. Quando li Ailton, senti a voz do planeta se comunicando com a humanidade. Senti o tom de voz dele enquanto lia. Aprendo muito lendo “Ideias para Adiar o Fim do Mundo”. Já li mais de uma vez. Para mim, é um livro de bolso que te reconecta com o Brasil e que tira a viseira que o capitalismo não lhe permite tirar em momento algum.
“Temos muito o que crescer”
TMDQA!: Estamos muito afastados socialmente, não apenas da cultura indígena, mas também da nossa relação com a terra, com a natureza. O que você recomendaria, seja um livro, músicas, pinturas ou qualquer manifestação artística, para termos a possibilidade de nos conectar mais com essas questões?
Mariana Cavanellas: Eu recomendo que a gente se conecte com as pessoas que têm a nos ensinar a ver a vida e os hábitos por um outro espectro. O Brasil é um país continental que tem muita história para contar, temos muito o que crescer. Somos o oitavo país com maior número de desigualdade social. Se não buscarmos a filosofia e a história e a arte, o buraco só vai crescer.
Indico que leiam “Ensinando a Transgredir – A educação como prática da liberdade“, da Bell Hooks e “A Vida Não é Útil“, outro livro do Krenak, que foi escrito durante a pandemia. O trabalho do pintor Susano Correia também mexe bastante em um lugar existencialista que acho importante chamar atenção. É genial e sensível, um grande nome que temos aqui.
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TMDQA!: Uma coisa me deixou intrigado. Os dois EPs foram lançados juntos, mas, pensando nessa ideia do contraste entre o dia e a noite, me surgiu uma questão: existe alguma ordem correta para ouvi-los? Começamos a jornada no “Dia” ou na “Noite”? Para mim, foi uma questão semelhante ao clássico do “Que veio primeiro: o ovo ou a galinha?”. Da primeira vez, comecei pela noite, mas depois fiz o contrário e também fez bastante sentido.
Mariana Cavanellas: Falando sobre dia e noite, noite e dia…eles complementam e não importa quem veio primeiro ou a ordem de audição. Eles sempre vão se complementar.
“Me interessa ver melhor as pessoas”
TMDQA!: O projeto traz, quase de maneira transcendental, reflexões sobre milagres, coragem, destino, dúvidas e sobre a vida no geral. Qual é a principal conclusão que o ouvinte deve ter a respeito de “Tudo Vibra” após terminar de ouvir ambos os EPs?
Mariana Cavanellas: É complicado dizer qual a conclusão o ouvinte terá após a audição, porque é exatamente não conclusivo. É um convite para não concluir, sabe? Um convite para ouvir, ouvir de novo. Não terá conclusões. Talvez, o que vai haver são pessoas com imagens em suas cabeças, imagens particulares, de lugares particulares, acessando sua própria existência.
TMDQA!: E para você? Quais foram as conclusões que os dois EPs finalizados trouxeram para a sua vida e para a sua percepção sobre o mundo? Você se surpreendeu com o resultado de alguma das faixas ou com a recepção do público?
Mariana Cavanellas: O que eu mais gosto disso são os processos. Sentir o que consigo alcançar em cada trabalho, criar novas percepções e trabalhar com outras pessoas. Conectar com pessoas e ideias é bom demais. Abrir caminhos é um trabalho difícil que demanda tempo e, quando se sonha muito alto, a investigação tem que vir à altura.
Está sendo muito interessante receber relatos de pessoas que não conheço falando sobre suas percepções pessoais do EP, geralmente sempre de uma forma profunda, sensível e sempre trazendo o tema de superação e desafios. Eu gosto de trabalhar nesse lugar. Me interessa ver melhor as pessoas, acessar mais camadas de compressão desse país continental. Ter um trabalho sólido e não comum exige muita construção, muito suor, tijolinho por tijolinho…
https://open.spotify.com/album/4O00H1Znhl8Y0QWuV680Xt?si=Ya45w26kTkiPaGGOp1tY5Q