Reality shows fazem parte inquestionável da cultura televisiva mundial e, obviamente, a música também faz parte dessa história. Afinal, desde o início da televisão existem programas com o intuito de exaltar talentos musicais e apresentar novos nomes para o público.
Se conhecemos e consumimos hoje nomes como Kelly Clarkson, One Direction, Fifth Harmony e Adam Lambert, certamente devemos muito aos reality shows musicais. Foram e são, até hoje, uma importante janela para a divulgação de um artista, facilitando seu contato com público e com nomes da indústria. Para muitos, acaba sendo a definitiva porta de entrada para o sucesso.
No Brasil, país com forte cultura musical, a moda não demorou a pegar. Apresentadores como Sílvio Santos e Raul Gil ajudaram a promover programas de calouros e, conforme o tempo passava, mais elaborados, bem produzidos, populares e importantes para a indústria se tornavam esses shows.
As grandes produções nacionais que conhecemos hoje ganharam visibilidade a partir dos anos 2000, pescando influências de programas internacionais. Daí, ganhamos nomes como Rouge, Bro’z, Thiaguinho, Roberta Sá e mais. Ainda mais consolidado na década seguinte, de 2010, o formato continuou nos apresentando a nomes promissores.
Exemplos recentes desse sucesso são a cantora DAY, a dupla OutroEu e o trio Katz. DAY foi finalista do The Voice Brasil de 2017. A OutroEu, formada pelos músicos Mike Tulio e Guto Oliveira, ganhou destaque da terceira temporada do programa Superstar. Já as Katz, grupo formado por Bella, Flavinha e Mayra, se conheceram nos bastidores do Jovens Talentos do programa do Raul Gil, deram “match” e montaram o projeto.
Em uma divertida conversa com os seis, o TMDQA! mediou um interessante papo sobre participação em realities, incluindo histórias divertidas, dicas e previsões sobre o futuro do formato em um mundo cada vez mais digital. Confira:
A sensação de estar em um reality
Naturalmente, o primeiro assunto que surgiu foi sobre a sensação de participar de programas de grande alcance. Afinal, participar de algo tão ambicioso assim em prol de reconhecimento é uma decisão difícil. Para Bella, das Katz, foi a realização de um sonho:
Eu sempre quis participar de reality. Eu achava que era a maior exposição que um artista poderia ter, principalmente por ser o Raul Gil. Sempre foi o sonho da maioria dos cantores participar um dia do programa dele. Foi um marco para mim, tanto que decidi que queria ser cantora a partir dali.
DAY também cultivava esse desejo, muito mais após assistir ao grupo Fifth Harmony em uma das edições do X Factor norte-americano. Quando o programa ganhou uma edição brasileira, em 2016, a cantora se inscreveu, mas não conseguiu seguir no programa. Naquele momento, mal sabia ela que a chance de se destacar no The Voice, sob mentoria de Lulu Santos, estava cada vez mais próxima. Ela conta:
Eu me inscrevi, cheguei a fazer audição e não passei nem do primeiro dia. O cara disse para mim que minha voz é ‘ok’, mas que não era o que procuravam. Eu falei que jamais tentaria isso de novo na minha vida. Para mim, o The Voice seria ainda mais fora de cogitação por causa da questão das cadeiras, da agonia e da pressão de a cadeira não virar para mim e eu ser rejeitada. Eu sempre tive essas piras, então nunca me imaginei lá, até que um dia a minha mãe e a galera em volta me incentivaram bastante a tentar. Acabou que deu super certo.
Mike e Guto, da OutroEu, não tinham grandes flertes com a ideia de um reality show, até que surgiu a chance de participarem do Superstar. O resto é história, já que programa mudou a vida da dupla para sempre. “É como se a música fosse um chamado. Para mim, foi inevitável”, comenta Mike.
Contato com os ídolos
Estar em um reality é um pulo da água para o vinho em um piscar de olhos. Em um momento, você está cantando no chuveiro. Em outro, está diante de jurados famosos e de um público que avaliam o seu desempenho. Isso sem falar nas constantes comparações com os colegas (para não dizer concorrentes), e na repentina fama do “Te vi na TV”.
Lidar com seu ídolo pode ser um sonho na teoria, mas na prática pode ser assustador. DAY teve como mentor Lulu Santos, um ícone da música brasileira que ela tanto admira e com quem conseguiu construir uma certa relação com o tempo.
Eu lembro que tinha certeza absoluta de que iria sair, porque eu estava no The Voice e é óbvio que todo mundo canta bem. Estávamos em um ‘ringue’ em que quatro pessoas iriam cantar e, na minha visão, todos cantaram melhor que eu. Lembro-me de uma pessoa super afinada que fez vários melismas e não errou nada. Eu pensava que ele ia ganhar o programa. Na hora, ficou entre nós dois, e o Lulu me escolheu. Eu pensei que ia ser odiada pela internet inteira. Algo fez o Lulu me escolher.
Os meninos da OutroEu tiveram a oportunidade de trocar figurinhas com a jurada Sandy, outra artista de renome no pop nacional. Durante o programa, Mike “viralizou” com um acidental tombo no meio de uma apresentação, certamente distraído pela presença da cantora no júri. Mas a relação acabou indo bem além disso, com direito até a uma parceria gravada no disco de estreia. Ele conta a história:
A gente trocou ideia com a Sandy nos bastidores do programa. Falamos que tínhamos uma música que queríamos mostrar. A gente nem sabia se podia ou não falar com ela, mas ela foi super solícita e pediu que levássemos um pen drive. E eu acabei esquecendo o pen drive no dia [risos]. Era o último programa, mas uma amiga nossa deu um jeito de entregar na Globo. Acabou que ela devolveu a música com a voz gravada depois. A gente não imaginava isso.
Raul Gil é outro nome que com uma boa carreira musical, apesar do maior reconhecimento como apresentador de televisão. O início data lá dos anos 50, quando venceu um programa de calouros apresentado pela saudosa Hebe Camargo. Para as meninas do Katz, que participaram bem novas de seu programa, a figura de Raul Gil é tão admirável quanto Sandy ou Lulu. Mayra lembra já ter sido consolada pelo apresentador, que a viu chorando com medo de não prosseguir na competição. “Foi até engraçado, porque foram anos assistindo a ele pela TV e naquele momento, em 2013, o ‘seu Raul’ estava me abraçando dizendo que ia dar tudo certo”, lembra a cantora.
Aparentemente o carinho de Raul com seus calouros sempre foi muito grande. Flavinha recorda de ter recebido uma inusitada ligação:
Acho que uma situação meio parecida com isso foi quando o Raul Gil me ligou no Natal. Minha mãe disse que meu celular estava tocando, atendeu e me passou, espantada porque era o Raul Gil. Até hoje eu não entendi direito o que aconteceu [risos].
Repertório, liberdade e direcionamento artístico
Se falássemos para vocês agora o nome do participante vencedor de um reality X, pode ser que você não se lembre ou sequer tenha ouvido falar. Tudo bem, isso acaba sendo mais comum do que parece. Nem sempre o artista de maior sucesso é aquele que leva o primeiro lugar do programa. Tome como exemplo nossos entrevistados, que não saíram campeões em suas respectivas participações, mas que certamente ganharam uma visibilidade muito maior do que outros competidores.
O que aconteceu foi que as Katz, DAY e a OutroEu levaram seu trabalho adiante de forma a manter e crescer seu público e, consequentemente, o alcance de sua obra. É óbvio que muito disso tem relação com os contratos das gravadoras que foram atrás desses talentos, mas não é apenas isso. A ideia de chegar ciente de seus objetivos é super importante para um artista em um programa como esses.
A voz é importante, é claro, como lembra DAY, que participou justamente de um programa em que os jurados viram suas cadeiras com base na voz do músico:
O público consumidor sempre vai esperar alguém que vai cantar o que eles definem como cantar bem, ou seja, cantar super agudo e fazer vários melismas, que amo e adoraria saber fazer, porque não consigo [risos]. Quem não faz muita coisa assim em reality show normalmente sofre muito. Foi o meu caso.
Mas não é só isso! O pós-programa é mais importante do que o programa em si, e aí uma estratégia se faz necessária. No mínimo, pensando em padrões de mercado, é preciso ter alguma maturidade e um norte definido, o que é difícil de se cobrar de um artista muito jovem, por exemplo. Bella, bem antes da Katz, se apresentou sozinha no programa do Raul Gil e é um bom exemplo disso:
Quando eu me apresentei no Raul Gil, eu tinha 18/19 anos. Você ainda não tem a noção. Muitas pessoas entram para mostrar a voz, que têm um sonho, que têm vontade ou porque “caíram” lá, porque mandaram se inscrever ou porque chamaram. Às vezes, nesse momento, você ainda não sabe qual é a sua identidade. Você ainda não sabe o que você quer. Não existe essa maturidade ainda.
Flavinha consegue enxergar o ponto positivo em participar com pouca idade de programas assim: coragem. Os riscos acabam sendo menores quando se é uma criança. “Se eu fosse me inscrever hoje…”, brinca a cantora. Afinal, sabiam que Beyoncé e Justin Timberlake participaram de realities (e perderam) ainda crianças? O tempo fez com que eles amadurecessem e, anos depois, se consagrassem na cena musical mundial.
A escolha do repertório também se faz importante, porque é a principal forma de mostrar para o público quem você verdadeiramente é. É claro que, dependendo do programa, existe menor ou maior interferência por parte da produção do programa, mas é preciso ter em mente de que determinadas músicas ajudam a aproximar o artista do público. Mayra, por exemplo, queria cantar Bon Jovi, mas foi aconselhada pela produção a cantar algo um pouco mais leve, porque o programa já contava com uma participante “roqueira”. Isso a levou a cantar nomes como Alanis Morissette e Christina Aguilera (nada mal também, né?).
Flavinha se sentiu confortável interpretando músicas de divas pop internacionais. A OutroEu, enquanto isso, foi por um lado mais arriscado e resolveu focar na apresentação de músicas autorais (todas, por sinal, presentes no disco de estreia homônimo da dupla, lançado no ano seguinte à participação no Superstar). Deu certo e, assim como o público, os jurados ficaram impressionados com as composições. Isso contribuiu para diferenciar a dupla de outros competidores no sentido da originalidade. Guto explica melhor a estratégia:
A gente entrou muito no programa com o objetivo de mostrar nossas próprias músicas. O lance é que rolou um papo de eles quererem colocar uma música que não era autoral, só que a gente queria muito que fosse uma autoral porque a gente imaginava que aquela seria nossa única chance [risos].
DAY aproveitou a liberdade que teve no The Voice para planejar e estudar bem as músicas que cantaria ao longo do programa. Assim, conseguiu se aproximar do público que já tinha e que queria conquistar ainda mais: a internet, que também foi um tópico de discussão na entrevista.
TV e internet
Se o objetivo inicial dos participantes de reality shows musicais era conquistar executivos de gravadora e afins, o cenário hoje é um pouco mais complexo. Além da necessidade de se desenvolver uma identidade própria que gere identificação com o público, é preciso saber fazer uso das ferramentas que estão ao seu redor.
Quando o grupo Rouge se consagrou no reality Popstars, em 2002, as integrantes não precisavam se preocupar em nutrir seus fãs sempre com postagens em redes sociais. Hoje, no entanto, as músicas por si só não bastam, e este é um desafio enfrentado não apenas por DAY, OutroEu e Katz, mas também por todos que querem viver de música hoje.
Isso vale especialmente para o pós-programa, mas também é interessante o artista já ter algo direcionado em suas redes antes mesmo do início do reality. Assim, seus potenciais fãs podem saber um pouco mais sobre sua história, e encontram um canal para ter mais contato. Instagram, Twitter, Youtube e até mesmo o TikTok (que, segundo nossos entrevistados, é um desafio) estão disponíveis para esse planejamento.
DAY e as meninas do Katz, por exemplo, já estavam no Youtube, gravando incríveis covers enquanto conquistavam suas bases de fãs. A internet, por sinal, ajudou elas a construir uma conexão pessoal com o público dos programas. No entanto, ao mesmo tempo em que aproxima, ela pode distanciar ou distrair o expectador do programa.
Mike, cirurgicamente, explica essa problemática:
O público está em casa sentado como controle na mão e sem fazer nada, sabe [risos]? A gente tem que motivar real o espectador, porque ele está ali com o telefone do lado. É difícil e, com várias ofertas maneiras como Netflix e afins, é preciso escolher o que é melhor ali naquele momento. Mas acho que também é um papel nosso ter noção dessas dificuldades e encará-las.
Dias de luta
Se existe o glamour do reality, certamente existem, ao mesmo tempo, os perrengues e contratempos. Guto, da OutroEu, levou um choque em um dos dias de audição (mas ficou tudo bem):
Era apenas eu e Mike em um estúdio. O resto estava trancado em outra sala. Acho que o rapaz da técnica acabou invertendo a fase e eu acabei levando um choque bizarro. O Mike ficou rindo de mim na hora. Enquanto isso, eu achava que iria morrer [risos]. Veio todo mundo ver se eu estava bem, inclusive o diretor.
As meninas do Katz também tiveram seus momentos. Flavinha, por exemplo, já se apresentou com um corte de cabelo peculiar (virando meme, inclusive). Mas, talvez, o momento mais humilhante foi quando, nos bastidores do Superstar, Mayra e Bella tiveram um pequeno acidente em suas respectivas bolsas após coletarem seus exames de urina, um requisito de saúde para participar do programa. Mayra lembra com clareza:
Eu acho que eu comecei a sentir a minha bolsa molhada. Fui ver o e mijo estava todo espalhado na minha bolsa. A Bella super me julgou. Quando fui ao banheiro, ela bateu na porta e me contou que aconteceu a mesma coisa com ela [risos]. A gente teve que lavar no chuveiro. Tudo que tinha dentro das bolsas molhou e ficou fedendo de xixi. Naquele dia, a gente fez um corre com a produção.
Dias de glória
Não tem como negar que a participação nos realities foi benéfica para todos os entrevistados. DAY, Katz e OutroEu conseguiram contratos com gravadoras grandes e alavancaram seus sucessos.
DAY, desde então, já lançou dois EPs (um homônimo e o mais recente A Culpa É Do Meu Signo) e prepara atualmente seu aguardado disco de estreia. As Katz, nova aposta do teen pop brasileiro, lançaram um dançante e envolvente EP homônimo em 2020. Já os meninos da OutroEu disponibilizaram há pouco seu segundo disco de estúdio, intitulado O Outro É Você, com participações de Ana Gabriela e Melim. Incrível, né?
Encerrando o papo, eles ainda deram dicas para artistas que eventualmente queiram mergulhar nesse universo de reality shows. Essas dicas, inclusive, podem vale para a vida como um todo.
Além do necessário direcionamento (sobre o qual já falamos aqui), é preciso estar com a autoconfiança e a saúde mental em dia. “Se você está aqui, é porque você é merecedor”, enfatiza Mayra. As pessoas se identificam com vulnerabilidades, então não precisa ter medo de ser você mesmo. Também não precisa se comparar aos outros, até porque, no final, o prêmio vai apenas para um.
“Curta muito, mas não pire. A gente quase pirou”, relembra Mike, nostálgico.