Entrevista: Nelson D e uma história de quando as origens do Brasil se conectam à música eletrônica

Abandonado nas ruas de Manaus ainda muito pequeno, Nelson D foi adotado e viveu na Itália, mas está em São Paulo para fazer música sobre o mundo.

Nelson D
Foto por Nina Satie

Por Salomão Augusto

Como o Brasil nasceu?

O que foi nos contado pelos livros e didáticas dos livros de história foi que, um grupo de exploradores portugueses atracaram em nossa costa litoral em meados dos anos 1500 DC e a partir de uma série de eventos contados por quem ganhou, hoje nós somos nação.

A história que vou contar hoje é sobre os primeiros olhos que receberam essa turma por aqui e desde sempre não tem mais a posição de privilégio nos anais da história: o Indígena Brasileiro.

Mas calma, não vamos voltar às lições de Tupi-Guarani, aldeias e demais assuntos que tratamos no inicio de nossa educação social. E não é de qualquer indígena brasileiro que eu estou falando.

Em 1986, assim como o Brasil (só que 386 anos depois), um bebê indígena foi encontrado nas ruas de Manaus, capital do estado do Amazonas. Sem registro ou nome ainda, ele foi mantido em um orfanato ali na cidade mesmo, até que um casal de italianos o adotasse e o levasse o Velho Continente.

Agora com CPF, Nome e até Passaporte, o bebê curumim recebe o nome de Davide de Merra e tem a cidade de Savona como sua nova casa. Naturalizado cidadão italiano, Davide estudou Artes na Faculdade de Milão e logo após uma longa trajetória de muita adaptação, resistência e luta, Davide dá vida a Nelson D, um artista incrivelmente completo.

Artista da Música Eletrônica, Indígena, Brasileiro, Europeu e cidadão do universo, hoje ele reside em São Paulo, terra de tantas nomenclaturas indígenas como Anhangabaú, Tatuapé, Ibirapuera e Butantã, e agora Nelson D traduz em tupi-português, unido a beats e arranjos surpreendentes, uma ótica nativa e transcendental sobre tudo o que encontrou desde o seu resgate até aqui.

Com uma maraca unida a horns e kicks poderosos, Nelson D surpreende a cada produção. Ele também é dono da própria voz de suas letras e dono interino do seu caminho desde sempre. Tem quase 10 singles lançados desde o início da sua carreira, um álbum e diversas participações como coprodutor e beatmaker de outros artistas.

Chamamos ele para um papo e o restante dessa história intrigante você confere abaixo:

Qual é o seu nome e a sua origem indígena?

Eu fui achado numa rua da cidade de Manaus (provavelmente num estacionamento público), não tenho indício sobre os meus pais biológicos. Escolhi como nome artístico “Nelson” pois era o nome que me deram no orfanato e a letra “D” que é a inicial de Davide, o nome que os meus pais adotivos me deram.

O pessoal do orfanato orientou meus pais adotivos sobre minha origem indígena por causa do meu fenótipo e por casos comuns de crianças abandonadas na cidade de Manaus, identidade que foi confirmada depois que fiz um teste de DNA para descobrir minha descendência mesmo sem ter conseguido achar meus pais biológicos e minha etnia.

Como essa onda musical/artística começou pra você ?

Eu fui criado na Itália, e foi mesmo lá que começou minha formação musical. Na minha adolescência trabalhava como DJ e técnico de palco numa balada da minha cidade. Costumava escutar bastante música eletrônica inglesa como Chemical Brothers, Tricky, Prodigy, Asian Dub Foundation… O rock e o hip hop eram também muito presentes no meu dia a dia. Daí comecei a ter vontade de criar minhas próprias tracks e coletar programas e máquinas para produzir.

Além de cantar e produzir seus próprios beats, você é diretor dos seus projetos e escreve suas próprias letras. Artisticamente, isso é um sonho. Como é pra você assumir todas essas frentes?

Eu dediquei toda a minha vida para me tornar um artista suficientemente completo. Me formei em Artes Plásticas em Milão exatamente com o intuito de me tornar o mais autônomo possível na hora de concretizar o meu trabalho.

E claro que tem formas de artes onde ainda preciso amadurecer bastante, porém o fato de já dominar algumas me proporciona muita agilidade no processo criativo.

Seu ritmo de produção é incrível, só no ano passado foram mais de 10 lançamentos e todos eles com uma linguagem única cheia de elementos e instrumentos indígenas naturais unidos a um R&B/Trap/Funk bem intensos. De onde são as suas inspirações musicais?

Primeiro te agradeço muito pelo elogio! Como disse, na adolescência escutava muitos artistas de música eletrônica que já misturavam vários estilos. Sempre fui atraído por música que misturava Rock com eletrônica ou no geral artistas que conseguiam criar uma própria linguagem e identidade.

Ultimamente fiquei bem impressionado com artistas novos como a banda Son Lux, Young Fathers ou com artistas como FKA Twigs e Sevdaliza. Esses artistas não me influenciam pelas sonoridades mas pelo fato de me incentivar a procurar o meu caminho artístico.

Você também é beatmaker de outros artistas. Como você trabalha nessas collabs? São
produções naturais entre amigos ou as pessoas chegam até você com a demanda?

Na verdade estou tentando parar. Sinto a necessidade de focar no meu trabalho solo e de não ser reconhecido como produtor ou Beatmaker, mas como Artista mesmo. Produzir outros artistas foi bom, talvez eu continue alguma colaboração mas o meu objetivo agora é concretizar minha arte e a minha visão.

No ano passado você finalizou um álbum chamado ‘Em Sua Própria Terra’. Você hoje se considera em sua própria terra?

(Risos) O Brasil é a minha terra natal, porém acho que continuarei vivendo a minha vida com a sensação de morar mentalmente num limbo entre diferentes mundos e culturas… E gosto assim (Risos) …

Pelo seu cantar tupi-português, percebe-se que seu sotaque é mais presente nas suas interpretações. O que é mais difícil pra você, cantar ou compor em português?

Os dois. Nem o Nheengatu (o tupi que uso) nem o Português são as minhas línguas-madre. Quando penso numa letra, a penso em Italiano. Porém essa dificuldade acaba contribuindo a criar minha identidade.

Eu sou Indígena, Brasileiro, Europeu e Italiano. Todo esse mix se traduz na minha forma de cantar e fazer música. Com a minha arte quero também mostrar que identidade é algo de mais complexo, cheio de camadas de leituras, impossível de se resolver em pouca definições especialmente quando se fala de arte.

Continua após o vídeo

https://www.youtube.com/watch?v=8_AjoKl_49s

Nós somos fruto e dividimos uma dívida com vocês acerca de como o Brasil aconteceu a alguns séculos atrás. Suas letras relatam um pouco disso com uma leveza e ao mesmo tempo uma força muito grande. Como você vê esse contexto hoje dentro da sociedade?

São dinâmicas bem delicadas e complexas para serem resolvidas. Pessoalmente, o que sinto mais urgente no momento é desenvolver uma percepção do povo brasileiro como um único povo e não como uma junção historicamente forçada de grupos diferentes (por mais que na realidade seja isso), no objetivo de desenvolver uma empatia geral que abrace todos os grupos sociais.

Ao contrário, na situação atual enxergo muita falta de empatia e distâncias entre as várias classes e bolhas sociais. Dum lado, acho que os grupos socialmente marginalizados já pontuaram várias vezes as fundamentais urgências do país.

Do outro lado, eu enxergo uma classe com muito poder de ação que se demonstra insensível e distante, não entendendo que resultados como equidade social, direto a saúde e respeito do meio ambiente são benefícios para a nação inteira, e não só para uma parte da sociedade. A necessidade de entendimento e alinhamento entre nós brasileiros é urgente.

Na letra de “Xenofunk” você traz a antítese entre o indígena e o “homem branco”, entre seus sincretismos e diferenças. Na última frase do refrão diz “A diferença me aproxima de você”. Onde nós nos encontramos nas diferenças?

Na verdade na música Xenofunk trato da xenofobia como um argumento mais amplo e universal, na medida do possível. Porém, sim, está cheio de referências à situação social brasileira. O Brasil é um país cheio de grupos sociais bem diferentes entre eles. Dependendo de como enxergamos essa característica, podemos decidir torná-la um obstáculo ou uma força em nosso favor.

Por isso, pra mim as diferenças são e devem se tornar sinônimo de riqueza, oportunidade e força. Como falei antes, tudo isso é concretizável se a interação entre grupos diferentes se atuar com respeito, alinhamento e empatia. E é nessa interação coletiva causada pelas diferenças que nós nos encontramos um com o outro (to parecendo um demagogo, risos).

Se isso for uma utopia acho que ainda temos margem de ação para conferir.

O que é a música pra você?

A música é o meu instrumento preferido para me autoquestionar se a minha percepção de vida faz sentido ou não.

https://www.youtube.com/watch?v=TJYDjr612TI