Por Arthur Deucher Figueiredo
Quando as receitas do mercado fonográfico afundaram no começo do século XXI até 2010, muito se atribuiu à pirataria. O streaming surgiu como um facilitador no aquecimento do mercado e levou a receita do mercado fonográfico nos EUA de volta a mais de 10 bilhões de dólares por ano, o que não acontecia desde 1999.
Em um mundo onde o streaming é celebrado por ter reaquecido o mercado, apontado como um facilitador na redução da pirataria e questionado pela baixa remuneração aos artistas, alguns especialistas já pensam em outras crises que a indústria musical poderá enfrentar no futuro.
Em artigo interessantíssimo escrito para a Variety, Mark Gillerspie, CEO da Three Six Zero, uma das empresas mais relevantes no mercado da música, propôs o seguinte questionamento: o 5G e a Web 3.0 inaugurarão uma nova crise de direitos autorais para a indústria musical? Os argumentos são válidos e merecem atenção global, por mais que o 5G ainda demore algum tempo a chegar a alguns países. No Brasil, a estimativa é de 2 a 4 anos.
Nova crise de direitos autorais na indústria musical?
Gillerspie aponta que tais desenvolvimentos tecnológicos tornarão redundantes as estruturas atuais de poder e a legislação de direitos autorais.
O motivo, segundo ele, é muito claro: a história mostra que não importa o quão avançada seja a tecnologia, ou quão seguras sejam as proteções contra a pirataria, sempre haverá um caminho alternativo para burlar os sistemas vigentes. Seja através do Napster no passado, dos sites de Torrent em um momento um pouco mais recente ou dos sites de stream-ripping na atualidade (que permitem aos usuários extrair e baixar conteúdo diretamente de serviços de streaming gratuitamente), uma criança conectada com a internet sempre encontrará um caminho de escutar música em seus próprios termos.
Ainda de acordo com Gillerspie, a internet como conhecemos atualmente (conhecida como Web 2.0) gira em torno de um punhado de grandes empresas que controlam a vasta maioria das interações online e os dados que essas interações produzem. A Web 3.0, habilitada pela conectividade 5G de altíssima velocidade, já promove um retorno aos ideais descentralizados da internet primitiva.
O Ethereum, criado por um programador de 19 anos e principal ambiente das NFTs, é o fundamental exemplo de uma rede descentralizada em funcionamento. Com sua própria moeda, mercados de comércio, e inclusive serviço de streaming (Audius), é possível ouvir e comprar música, jogar games e colecionar arte.
Redes descentralizadas e o futuro do mercado da música
Na plataforma de streaming Audius, os usuários são livres para agir, compartilhar e criar sem a supervisão de um poder centralizado. A plataforma vem criticando a baixa remuneração aos artistas por parte das grandes plataformas de streaming e já planeja um sistema de arbitragem que permitirá à rede resolver de forma aberta e transparente disputas de natureza autoral.
Tais redes descentralizadas, que já despertam o interesse dos entusiastas interessados em blockchain, irão muito mais longe na medida em que a usabilidade e a acessibilidade dessas redes forem melhorando, o que representa um grande desafio para as leis de direitos autorais existentes e, consequentemente, para os detentores de direitos autorais.
Até então, as tentativas legais de responsabilizar desenvolvedores de software P2P, provedores de serviços de internet (ISPs) ou indivíduos responsáveis por violações de direitos autorais tiveram sucesso limitado, fazendo pouco para impedir a distribuição ilegal de materiais protegidos por direitos autorais. Com poder limitado, os detentores de direitos autorais são capazes de identificar indivíduos que baixaram material pirata por seu endereço de IP e entrar com processos judiciais ou extrajudiciais.
As redes descentralizadas, entretanto, que são autossustentáveis e protegem as identidades e transações de seus usuários com criptografia, conseguem eliminar essa já pequena possibilidade de identificação. Diversos problemas jurisdicionais nas controvérsias autorais também devem surgir na medida em que tais redes descentralizadas se estabelecem em diferentes países.
Portanto, qual a solução? Segundo Gillerspie, a solução não passa por impedir o crescimento de redes descentralizadas ou aplicar regras antigas a novas tecnologias. Na realidade, a indústria precisa ponderar como usar essas tecnologias para oferecer um novo valor ao mercado, como contratos inteligentes em blockchain, que já possuem um enorme potencial tanto para aqueles que trabalham no âmbito comercial como também para aqueles que consomem música.
“Sistema legal desatualizado”
Mas será mesmo que a descentralização da rede tornará as estruturas atuais de poder e a legislação de direitos autorais “redundantes”? Talvez não. Talvez a melhor forma para definir a presente situação seja um “sistema legal desatualizado”. Vale lembrar que a lei de direito autoral no Brasil, por exemplo, é de 1998 e já há um tempo é passível de críticas no sentido de falta de modernização e abertura para o ambiente digital em um mercado global.
De todo modo, a música sempre foi uma área difícil para a tecnologia, mas a internet continua tentando. A proliferação de redes descentralizadas e as velocidades oferecidas pelo 5G proporcionarão suas próprias oportunidades de empoderar os artistas e melhorar as experiências para os fãs de música.
Se é razoável assumir que a disrupção tecnológica da distribuição de direitos autorais pode estar a caminho, é preciso pensar no futuro do mercado e quais as estruturas legais que irão servir de alicerce para as mudanças impostas por esses avanços.
Arthur Deucher Figueiredo é advogado com base em Los Angeles e São Paulo, e entusiasta dos impactos da tecnologia no mercado da música. Mestre em Direito e Política da Mídia, Entretenimento e Tecnologia pela Universidade da Califórnia, Los Angeles (UCLA) e em Direito Constitucional pela PUC-SP. Membro da diretoria da Câmara de Comércio Brasil Califórnia.