Em tempos de pandemia, a música salva. E Rafael Bittencourt, mais conhecido por seu trabalho como guitarrista e membro fundador do Angra, sabe muito bem disso.
O icônico músico brasileiro resolveu usar esse poder para criar o Exército da Esperança, um projeto que reúne diversos talentos da música nacional em prol de uma mensagem de união, fé, resiliência e confiança à população durante a maior crise sanitária que já se viu.
O resultado disso é a canção “Dar as Mãos”, que foi composta por Bittencourt ao lado do improvável parceiro MC Guimê. Esse cruzamento entre gêneros tão distintos é proposital e aparece em diversas formas — afinal de contas, participam da faixa nomes como Carlinhos Brown, Toni Garrido, Luana Camarah, Família Lima e até um coral de vozes do The Voice Kids, entre outros grandes artistas.
Você pode conferir a música ao final da matéria e, abaixo, leia uma conversa exclusiva do TMDQA! com Rafael sobre esse projeto e muito mais.
TMDQA! Entrevista Rafael Bittencourt
TMDQA!: Oi, Rafael! Tudo certo por aí?
Rafael Bittencourt: Tudo certo sim, e aí? Eu gostei do nome do site, Tenho Mais Discos Que Amigos. [risos]
TMDQA!: Tudo certo! [risos] Você tem mais discos que amigos?
Rafael: Olha, eu doei os meus discos e fiquei com muitos amigos. Dava muito trabalho para tocar e manter os discos. Na verdade eu não doei, eu emprestei para um amigo que tem mais o hábito de ouvir discos, vinil e etc, então deixei toda a minha coleção com ele porque ele faz melhor uso do que eu. Não estava nem ouvindo. [risos]
TMDQA!: [risos] Justo! Bom, primeiramente obrigado pelo seu tempo e parabéns pelo projeto, que virou uma coisa bem “We Are the World” do Brasil, né. Foi uma inspiração pra você, ver o resultado que movimentos como esse e tantos outros no caminho tiveram — afinal de contas, são lembrados até hoje?
Rafael: Eu sempre tive isso em mim, essa coisa do “We Are the World”. Mesmo nas músicas que eu faço no Heavy Metal eu tenho aquela coisa de que elas sejam hinos, para serem cantadas com várias pessoas juntas, unidas — não de mãos dadas, necessariamente, mas unidas. E o show de Heavy Metal é um pouco isso, são hinos épicos e todos cantam juntos, com mensagens de esperança, otimismo, etc., é bem típico do estilo que eu faço.
Agora, nessa época da pandemia, isso não foi uma inspiração direta tipo, “Ah, vou fazer uma coisa meio ‘We Are the World'” pela música, mas pela ação em si. Eu quis juntar os artistas pra trazer uma mensagem bonita pra sociedade, e eu queria… O meu sonho é que essa música tivesse entrado logo no começo para que as pessoas fossem acolhidas.
Mas, quando eu quis envolver muitos artistas, a coisa ficou mais complicada, mais complexa de se resolver. Acabou demorando, e o produtor ainda teve um infarto no meio do caminho, ficou 45 dias no hospital, eu tenho um outro parceiro que estava ajudando no projeto que tá tratando um câncer, passou a tratar duas vezes por semana com quimioterapia… Isso tudo foi complicando.
Então eu tive que dar tempo para isso ser finalizado dentro do tempo necessário, vamos dizer assim.
TMDQA!: É legal você falar isso porque tem um tempo que falamos no site sobre uma ocasião em que o John Lennon brigou com uma repórter porque ela questionava o motivo dele fazer música como forma de protesto, de união e tudo mais, e ele frisava o quanto isso era importante. Você concorda com essa ideia de que a música tem esse poder mesmo, então?
Rafael: Muito! Tanto que se as palavras do John Lennon não estivessem incomodando ele não teria sido assassinado, né? O próprio fim da história comprova que ele estava certo, que ele tinha uma importância social e estava incomodando um grupo de pessoas, porque ele impactava.
Eu acho que a pandemia provou logo de cara a importância social dos artistas. Porque os artistas eles passaram a acolher as pessoas que estavam sozinhas em casa; eles passaram a ser tão importantes quanto o pessoal da saúde, que estava na frente, no hospital, cuidando de quem estava doente, mas quem estava em casa, sozinho, com medo, ou sofrendo uma perda, foi acolhido pelas séries de TV, pelos filmes, pelos livros, pela música, pela arte em geral, às vezes um vídeo que você recebe no WhatsApp de um balé. Essas coisas vão dando um pouco mais de leveza pra gente.
O artista tem uma função social de trazer uma perspectiva. As pessoas ficam angustiadas, sem saber muitas vezes colocar em palavras o que elas estão sentindo, e o tom do artista é justamente dar forma para esses sentimentos que são meio abstratos e que não são muito objetivos, concretos. Através da arte, da abstração, de cores, da sinestesia, o artista consegue dar forma para coisas que as pessoas sentem.
E isso é muito importante! Ela alivia de duas maneiras: as pessoas se conectam com os artistas ou com a arte, e elas não só não se sentem sozinhas — porque elas sabem que outras pessoas sentem como ela — como elas se sentem aliviadas, como se também tivessem colocado pra fora aquilo que estava no peito. Quando elas ouvem alguém cantando algo que é exatamente o que ela queria dizer, ela se sente aliviada, como se ela estivesse cantando.
E ela pode cantar junto aquilo, no banheiro, no carro, onde quiser. Aquilo é bradado terapeuticamente, como um desabafo.
TMDQA!: E com uma variedade tão grande, pessoas tão diferentes da música nessa faixa, como foi a recepção dos convites pra participar e como você decidiu quem estaria por lá?
Rafael: Olha só, eu pensei primeiro por afinidade musical e pessoal. Na maioria dos casos é amizade e admiração mútua. O Carlinhos foi o primeiro em quem eu pensei e ele de cara endossou o projeto, falou, “Cara, esse projeto é maravilhoso, que bonita essa música, conte comigo”. Isso já me animou.
Aí eu comecei a procurar as vozes musicalmente, entender o que aquilo pedia: uma voz mais intensa, uma voz mais suave… Para o final, que tem um diálogo rápido do Toni com as crianças, eu imaginava exatamente aquilo. Um cara com uma voz meio paternal, uma voz carinhosa — o Toni passa muito amor na voz dele, muita ternura. Imaginei um adulto com voz de ternura e as crianças.
Então liguei para um amigo meu, o Torcuato Mariano, que é guitarrista e arranjador do The Voice Kids. Aí falei, “Torcuato, preciso de contato de algumas crianças do The Voice porque estou fazendo uma música assim e assado e eu queria colocar algumas crianças”. Aí ele falou, “Cara, você já ouviu o Israel Fernando e a Lívia Corrêa“. Aí falei, “Vou checar”. Fui na internet, chequei, e falei, “Essas crianças são maravilhosas”. Aí ele falou, “Vou te passar o telefone dos pais”. Eu peguei o telefone dos pais, comecei a conversar com eles, que foram maravilhosos comigo.
E a maioria dos artistas, talvez por conta do meu currículo e também do meu trabalho no Angra, logo se sentiram honrados de participar e eu fiquei feliz com isso, claro. É como se eu tivesse um cartão de visitas que ajudasse. Além da música, eles também tinham uma certa admiração pelo meu trabalho e isso facilitou muito. Foi bem legal.
TMDQA!: Uma coisa que definitivamente chama atenção é que tem pouquíssima gente da cena do Rock/Metal participando. Foi intencional mesmo, abrir pra que mais gente de fora disso participasse?
Rafael: Sim. Quando eu fiz essa música em português falando de esperança, a primeira coisa que eu imaginei foi que talvez o público do Heavy Metal fosse achar uma coisa muito piegas. Mas nem por isso eu acho piegas! Nem por isso deixa de ser uma vontade minha, de expressar isso. E tem um lado meu que é muito piegas, assumido! E eu não tenho vergonha dele.
E eu pensei, bom, então eu vou imaginar que eu estou cantando essa música não para um público exclusivamente de Rock mas para a sociedade em geral, para todos que estão aí. Não tem mais essa. Tá todo mundo angustiado, independente do tipo de música, se é público de Heavy Metal ou se é público de Hip Hop. Tem uma certa angústia, uma incerteza do futuro, um cenário caótico na política brasileira, um cenário caótico de como a gente lida com as estruturas básicas do país… Tá todo mundo sofrendo, angustiado, meio sem esperança.
Então eu acho que esse dever social que eu como artista tenho, de levar esperança para as pessoas, ele vai muito além de pensar se essa ideia é piegas ou não.
TMDQA!: E a parte do Guimê é sensacional, né? Não só por ser de fato uma parte super impactante e que encaixa bem demais, mas também porque atesta mais uma vez algo que vocês sempre fizeram com o Angra de misturar ritmos sem preconceito. Eu estava até pensando… Vocês há algum tempo lançaram coisa com a Sandy e claro que deve haver alguma resistência por parte do público mais tradicional, mas imagino que isso seja muito mais forte com um artista do Rap/Funk como é o Guimê, né? Como foi isso?
Rafael: Cara, foi uma surpresa incrível inclusive pra mim. A gente tem um grande amigo em comum e quando ele falou, “Cara, vamos chamar o Guimê, ele é meu amigo”, eu fiquei, “Meu Deus, como que isso vai ser?”. Porque a música estava pronta já, né.
Aí por coincidência tem um produtor amigo meu que é produtor do Guimê também, e ele me ajudou a criar esse “momento” Hip Hop na faixa, sem desrespeitar a harmonia da música mas também criando um beat que era confortável pro Guimê e tal. E o Guimê me ligou um dia e falou, “Olha, vou recitar a parte que eu escrevi pra sua música”. E quando ele recitou eu comecei a chorar. Eu fiquei emocionado.
Eu tenho muitos parceiros musicais, mas eu não tenho parceiros pra escrita. E eu me sinto um pouco sozinho na paixão por escrever. Dentro do Heavy Metal a maioria acha que a escrita, a palavra mesmo, ela tá em completo serviço da música, quando eu acho que é uma sincronia, que as duas coisas são de igual importância. Porque as grandes músicas, as músicas que mais me tocaram, elas têm fortes letras. E eu estudei a vida inteira pra compor pra alguém cantar, e se ele vai cantar, vai cantar uma letra, então tem que ter algo a dizer. Não é só melodia.
Naquela hora eu falei, “Putz, acho que acabei de encontrar um parceiro pra escrever coisas”. E ele escreve com uma fluidez, com uma profundidade e é tão coloquial, cheio de gírias, mas tão bem escrito e tão intenso. Sempre muito verdadeiro. Eu gosto de música cantada, e eu gosto de Hip Hop por isso, pelo que diz. Foi maravilhoso, um novo horizonte se abre à minha frente; um horizonte de poder trocar figurinha com pessoas que realmente gostam de escrever também como eu.
TMDQA!: Que legal. Pra fechar, preciso perguntar uma coisa que fiquei morrendo de curiosidade. Quando soube dessa parceria eu logo imaginei que finalmente seria o encontro entre o Angra e a Pabllo Vittar, depois de todas aquelas notícias, mas não foi dessa vez. Como que tá isso? Vai rolar?
Rafael: Olha só, a Pabllo afirmou publicamente que gosta do Angra, que ela admira. Os fãs logo se pronunciaram. Uma parte disse, “Nossa, que legal”, e outros já falaram, “Meu Deus, que coisa horrível”. Porque uma boa parte do público de Heavy Metal é muito tradicional e muito conservador e, por isso, preconceituoso.
A banda, mesmo, se divide no tamanho do risco que seria uma interação do Angra com a Pabllo Vittar. Então eu trouxe pra mim essa responsabilidade. Eu acho que o artista tem uma responsabilidade social, e uma delas é a quebra de preconceitos; o artista não pode endossar preconceitos, não pode endossar conflitos estúpidos, ele tem que tentar unir através da música as pessoas, tentar criar um mundo mais pacífico e menos moralista.
Porque eu acho que os maiores problemas do mundo não são as acusações sobre a moral, ou seja, quem transa com quem, quem não transa com quem, o que a pessoa faz, isso não chega a prejudicar ninguém. Exceto a pedofilia, claro, que é um problema sério que prejudica, claro, a criança. Então digo a questão moral assim, a condenação de atos que não prejudicam o outro; essa preocupação sexual deveria estar no final da preocupação das pessoas. No entanto, incomoda pessoas como uma patologia social. Porque a corrupção, a violência… Tem uma série de coisas que prejudica muito mais a sociedade e são colocadas em um grau de importância menor do que com quem que o vizinho transa. E isso me preocupa.
Então eu assumo essa bandeira. E, se algum dia… Acho difícil que o pessoal do Angra tope fazer algo com a Pabllo Vittar, mas aqui está o meu convite: eu ficaria muito feliz de fazer algo com a Pabllo. Já cheguei a falar isso pra ela, troquei mensagens com ela, ela sabe disso, que eu acho que o artista tem essa responsabilidade de quebrar preconceitos e eu tô aí pra isso.
TMDQA!: Muito bom! Rafael, muito obrigado pelo papo, foi ótimo. Espero que esse projeto venha a sair em algum momento e que a gente possa sair dessa situação horrível que vivemos hoje o mais rápido possível.
Rafael: Obrigado, Felipe! Tudo de bom!