Fabiane Pereira é uma jornalista transgeracional e proporcionadora de conexões, como ela mesma afirma. Atualmente, trabalha com três projetos simultâneos: “FARO”, seu programa que divulga novos artistas da música na Rádio Nova Brasil; sua coluna de música na Veja Rio e o canal “Papo de Música” no YouTube, que promove entrevistas com artistas da música indo muito além da arte em si.
É importante pontuar que seu canal é 100% independente, ou seja, não conta com patrocínios anuais para seguir existindo. Há pouco tempo, após conseguir o apoio de parceiros, Fabiane viabilizou a ideia de uma ponte aérea que unisse artistas da música brasileira e portuguesa. A ideia é proporcionar conexões humanas por meio dessas conversas — no total, 35 artistas passarão por ali.
O TMDQA! conversou com Fabiane para saber mais sobre a nova websérie, os desafios da profissão e muito mais. Confira abaixo!
TMDQA! Entrevista Fabiane Pereira
TMDQA: O Papo é um canal 100% independente, é uma guerrilha para se manter no ar. Como você nunca desistiu? O que te move?
Fabi Pereira: Dentro do jornalismo, o que eu mais gosto de fazer é entrevista. Eu fiz jornalismo para entrevistar gente. Ingenuamente e sensorialmente, eu faço isso desde muito pequena. Eu fui muito curiosa e perguntei muito. Então, o ato de entrevistar é algo que eu gosto muito. Eu realmente não me imagino fazendo outra coisa. O que eu acho é que eu fui me adaptando com o tempo. Muita gente já me falou “por que você não faz outra coisa no jornalismo sem ser entrevista?”. O formato do Papo de Música, especialmente, é um formato que a gente não vê quase em lugar nenhum; na TV, internet, nada.
O que eu queria com o Papo de Música e eu tento, e eu acho que eu tenho conseguido, é levar tanto o Vitão como Ney Matogrosso e Gilberto Gil e ter três entrevistas de qualidade. O fã do Vitão vai adorar saber desse lado dele que ele não vê em outros lugares. Então, a minha intenção no Papo de Música foi essa. Ocupar esse espaço que eu enquanto espectadora sentia falta.
Às vezes o que me faz querer desistir é essa parte comercial, porque eu não consigo entender um produto como o Papo de Música não ter um patrocínio anual. E não me culpo por não conseguir porque eu não sou da área comercial. O que eu posso propor e fazer eu faço com muita qualidade.
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TMDQA: E o seu programa é tão bem embalado… Realmente parece um projeto do GNT, ou da TV em geral. Tem as vinhetas de passagem de um programa, tem frases na tela que reforçam a fala do entrevistado… enfim, o formato de um programa de canal pago está ali!
Fabi Pereira: Que a diretora do GNT leia essa matéria! (risos) Mas eu demorei mais ou menos uns dois anos para colocar o canal no ar. Eu tinha certeza do que eu queria, mas eu achava que não tinha lugar para mim, para fazer o que eu queria. E até hoje, praticamente três anos (depois) do canal ter sido lançado, não tem nada parecido com o que o canal faz. E aí eu comecei a entender também (recentemente) e a maior ficha que me caiu foi: eu faço a minha verdade. Eu realmente acredito no poder do diálogo. E eu acho que a melhor maneira de fortalecer a nossa narrativa é conversando.
Eu tô fazendo agora uma websérie com artistas portugueses e é muito legal porque todos, sem exceção, falam no final “nossa, que conversa boa! Passou muito rápido”. Cada um com as suas próprias palavras, mas no fim a mensagem é a mesma. Eles dizem que já estão acostumados a dar entrevistas falando sempre das mesmas coisas. Então, o que eu busquei para não desistir, o que me motivou e me motiva, é buscar não copiar ninguém. Eu sou muito privilegiada porque eu trabalho fazendo só aquilo que eu quero.
Quando alguém me pergunta qual é o meu sonho profissional eu digo: levar o meu formato de jornalismo para a TV aberta, porque a gente não vê entrevistas em TV aberta. Como um formato tão precioso como o do bate-papo não tá em TV aberta? Principalmente de música. Principalmente num país que tem a música como o maior cartão postal. E isso acontece no rádio também.
TMDQA: Na visão de muitos artistas estrangeiros, os cantores canônicos (Chico, Caetano, Tom Jobim) se tornam aqueles nomes que essas figuras pensam quase que imediatamente, né. Mas dentro da sua curadoria, você selecionou tanto artistas que fizeram releituras de artistas clássicos, como também o Salvador Sobral, que já tocou com o Tim Bernardes.
É muito importante mostrar (tanto para o gringo, como para o brasileiro) que no exterior não há apenas o estereótipo de que a música brasileira se resume a Tom Jobim e Bossa Nova. Essa nova geração também vem entrando nos ouvidos dos gringos, né.
Fabi Pereira: Eu acho que é um pouco de tudo isso que você falou. A Marisa Monte, na entrevista recente do Bial, falou uma coisa muito legal, que ela era uma cantora transgeracional. E eu acho, pegando as palavras dela, que eu sou uma jornalista transgeracional, porque eu gosto muito e fui muito influenciada por cânones e sou muito influenciada pelos artistas da minha geração e por artistas de gerações até mais novas do que a minha.
Quando eu vejo por exemplo o Salvador Sobral, para além da música (que é muito boa), ele tem uma história de vida que é fascinante. Então, quando a gente conversa com as pessoas, a gente vê que a música é só mesmo um meio que ela se expressa. A vida dela é muito mais interessante, sabe? Vida no sentido inspiracional.
TMDQA: E como surgiu a ideia da ponte aérea?
Fabi Pereira: Como eu morei em Lisboa, eu tenho uma conexão muito grande com a música portuguesa. Quando eu fui para Lisboa fazer mestrado, eu praticamente ficava entre faculdade e bar. Nisso, eu conheci vários bares de lá e acabei fazendo amizade com muitos músicos dali. Por exemplo, Salvador Sobral eu vi cantar enquanto as pessoas ainda não conheciam tanto o seu trabalho. Eu fui fazendo essas conexões porque eu morei lá por 2 anos.
Já em março de 2019, eu passei uma temporada em Nova York, porque o meu marido (que era namorado na época) estava lá a trabalho. Mantínhamos o relacionamento nessa ponte aérea. Meu namorado trabalhava com um festival de música brasileira em NY. A Tiê era uma das artistas que estava ali. Nisso, o Vitor (diretor do canal), falou “Fabi, você não quer fazer nenhum vídeo? Um Papo de Música pelo mundo”, aí topei. E assim a gente fez. Fizemos uma conversa numa praça de NY.
Depois dessa gravação eu pensei que dava para fazer esse projeto em outros lugares do mundo. Em 2019, eu também tinha ido para o México e Colômbia para participar de dois festivais, como meu namorado tinha ido junto ele fez a câmera. Na Colômbia, gravei com Ava Rocha e Curumin. No México com Francisco El Hombre.
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TMDQA: E financeiramente? Como o projeto se viabilizou?
Fabi Pereira: Então, eu não sou só jornalista, sou produtora de conteúdo também. Nessas horas eu preciso criar uma apresentação do projeto, mandar para um milhão de pessoas, para poder pagar a minha ideia. Quando a minha ideia não é paga, eu tenho que enxugá-la para que seja viabilizada. O caso da ponte aérea foi uma conjunção de boa sorte.
Em março de 2020, eu pensei em tentar viabilizar o projeto em Lisboa. Consegui um patrocínio para fazermos 5 entrevistas lá. Como veio a pandemia, o patrocínio caiu e o projeto ficou na gaveta. Eis que o diretor da UBC (União Brasileira dos Compositores) sabe da minha proximidade com Lisboa, além de serem grandes parceiros do canal, e me liga. Nisso, ele diz que a UBC tinha fechado um convênio com a Sociedade Portuguesa dos Autores e eles queriam pensar num projeto que fosse dentro do meu canal, com compositores portugueses. No fim, fechamos 35 artistas.
Tá sendo incrível conversar com tantos artistas portugueses que têm uma conexão profunda com a música brasileira. Ao contrário de nós, eles foram impactados desde muito novos pela trilha sonora brasileira, principalmente das novelas. Lisboa hoje é o epicentro da música lusófona.
TMDQA: Pegando esse seu gancho, apesar de ser algo muito amplo, qual a leitura que você faz sobre o que acontece hoje na música portuguesa?
Fabi Pereira: Eu acho que Lisboa, por ser geograficamente um lugar que abraça tanto Brasil quanto os países colônias de Portugal, tá no coração ali. Portugal é um país com uma boa qualidade de vida. Os músicos que são de Angola, Moçambique, Açores, Cabo Verde, esses artistas veem em Lisboa uma espécie de meca. Só que eles não perdem de jeito nenhum as influências raízes, ancestrais deles. Lisboa se torna um epicentro, porque a música portuguesa é muito aberta, ela bebe de muitas fontes.
Na minha opinião, o que acontece no Brasil é que nós fazemos música muito bem. Somos imbatíveis nesse quesito. E aqui, também, nós somos 75% consumidores de música nacional. Portugal não. Em Portugal esse número se inverte, lá só 25% consome música nacional. Então, eles têm um ouvido, digamos, mais acostumado a novas sonoridades.
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TMDQA: O “Papo” é um espaço que vai além da música. É uma abertura para falar de histórias, relações político-sociais, enfim. Não à toa, em um dos programas dessa websérie, aconteceu um encontro inédito entre Russo Passapusso e Capicua. Eles ainda não se conheciam e a conversa foi incrível, justamente pelo projeto como um todo ser algo tão humano, né? Que transborda a música.
Fabi Pereira: Na verdade eu tô quase mudando o nome do Canal de “Papo de Música” para “Conexões”, porque eu acho que é sobre isso. Nessa pandemia eu tenho percebido cada vez mais isso. O meu papel ali é de ser uma proporcionadora de conexões, entre o artista e o público. Em todas as entrevistas duplas que estão nessa websérie, eu que juntei esses artistas, muitas vezes sem eles nem se conhecerem.
TMDQA: Esse era o critério na hora de esquematizar os entrevistados?
Fabi Pereira: Como eu tenho pensado cada vez mais nessa questão de conexões, foi esse o critério: “Quais são os artistas que se conectam, que juntos ficariam confortáveis?”, porque a minha intenção também não é ser provocativa com nenhum dos dois. É deixá-los confortáveis. Por exemplo, quando eu juntei o Zambuja com Ney Matogrosso, eles não se viam há quatro anos e eles só se apresentaram juntos uma única vez, no Circo Voador.
Eu estava nesse show e foi apoteótico. Quando eu pensei nessa dupla para abrir a websérie, eu queria que de alguma forma o público que assistisse experimentasse a mesma sensação que eu tive no Circo Voador. O meu critério curatorial foi conexões, quais artistas eu achava que teriam mais conexões. Eu tô muito feliz com essa websérie. Eu já sabia que ia ser muito legal, mas o resultado vem me surpreendendo muito.
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TMDQA: Na sua visão, o que estreitou a relação Brasil e Portugal musicalmente?
Fabi Pereira: Eu acho que está se estreitando muito recentemente. Musicalmente, eu ainda acho que os brasileiros têm uma certa resistência. Isso é algo que eu ouvi muito em Portugal: o que temos em comum é a língua, mas o que nos une e nos desune é a língua também. Em Portugal, eles são muito familiarizados com o nosso português, por conta das novelas e trilhas sonoras. No Brasil, por conta da abundância que temos em teledramaturgia e da música que fazemos, por consumir muita música nacional, não temos o ouvido adaptado para ouvir outros sotaques.
Olha o tamanho do Brasil… a gente já tem uma coisa horrorosa que é o “regionalismo”: se não é do RJ e SP, já é dito como regional. Imagina então se acostumar com um sotaque fora do Brasil? Eu acho que estamos estreitando e esse início de estreitamento está acontecendo muito mais por um entendimento de que, de fato, somos países irmãos. Eles falam a nossa língua, muitos dos nossos resquícios, mazelas, a escravidão veio — nossa principal mazela — muito do sistema capitalista de lá. Nós temos aqui muitas influências na comida, o fado e o samba têm muito mais coisa em comum do que a gente imagina.
A Carminho deu uma frase na entrevista, não sei dizer de quem é agora, mas era assim: “os brasileiros cantam a tristeza em ré maior e os portugueses cantam as alegrias em ré menor”, como se os brasileiros cantassem as tristezas sorrindo e os portugueses cantassem as alegrias chorando. E é um pouco isso… Estamos estreitando e a tendência é que as novas gerações fiquem cada vez mais próximas. A minha vontade é que haja cada vez mais um intercâmbio, que os festivais do Brasil programem cada vez mais artistas portugueses, do mesmo jeito que os festivais portugueses programam os artistas brasileiros.
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TMDQA: Por fim, você estreitou muito os laços da língua portuguesa nesse projeto, mas você pensa em ampliar esse projeto para outros países que também falam a língua portuguesa?
Fabi Pereira: Quero super! Nessa websérie, a gente já tem artistas que não são portugueses, mas que têm hoje em Portugal a sua maior fonte de produção musical. Então, por exemplo, a Pongo (que fez o programa junto com a Duda Beat) é angolana, rainha do kuduro, de Angola, mas ela vive em Lisboa. Eu tenho dois projetos dentro dessa temática, mas os dois precisam ser financiados.