Texto e Entrevista por Felipe Ernani / Transcrição por Gabriel von Borell
Depois de anos com os Caramelows, a incrível Liniker dá um passo gigante ao estrear em sua carreira solo com o ótimo Índigo Borboleta Anil.
O disco, disponibilizado nesta quinta-feira (9), traz uma verdadeira viagem interna pelos reencontros da artista com suas grandes referências e com sua ancestralidade. E isso acontece não apenas de forma figurada: a presença de Milton Nascimento, por exemplo, é a realização de um sonho e a consolidação de uma dessas referências.
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Em Índigo Borboleta Anil, Liniker também se mostra versátil. Indo desde uma sonoridade próxima à MPB até o Samba Rock, a obra funciona uma trilha sonora para qualquer um se entregar e viver uma experiência — do começo ao fim, o trabalho soa como uma jornada pelas características tão únicas da música brasileira (mesmo quando canta em inglês).
Tivemos a sorte de bater um papo pra lá de especial com a cantora, que nos atendeu de sua casa e esbanjou simpatia. Confira essa conversa na íntegra logo abaixo!
TMDQA! Entrevista Liniker
TMDQA!: Eu imagino que tenha sido um passo muito grande para você, uma mudança muito brusca já que você agora está com o trabalho solo. E eu quero saber justamente isso, como foi e qual foi a diferença no processo? O que foi mais fácil e o que foi mais desafiador?
Liniker: O mais desafiador eu acho que foi lançar um trabalho sozinha após dois discos lançados, principalmente por comunicar para o meu público meu novo momento. As pessoas às vezes criam muitas expectativas e esperam que a gente siga exatamente o que a gente estava fazendo antes, mas eu precisava dar esse passo por mim mesma.
Eu precisava me colocar em primeiro plano e entender que pra mim era importante fazer esse disco da forma que eu queria e do jeito que eu acreditava. Eu sou muito grata por tudo que eu vivi com o Liniker e os Caramelows, mas também senti a necessidade de viver um novo momento na minha carreira, e me permitir isso foi uma das coisas mais prazerosas e desafiadoras desse processo.
E, ao mesmo tempo, concluir essa primeira parte que é a gravação do álbum e ver que é um disco que, mesmo depois de pronto, eu sinto que ainda tem tanta coisa para ser feita me dá a sensação de estar muito viva nesse processo, de me permitir um tempo que o mercado não costuma permitir para lançamentos — seja o tempo de produzir, seja o tempo de entender o que eu queria falar, seja lidar com a expectativa que colocam em cima do meu trabalho (quando eu vou lançar, quando vai sair, como vai ser).
Esse processo foi tão esperado por mim que eu não posso vivê-lo catarticamente e efemeramente. Eu quero ter o tempo de cada coisa nesse processo. E isso tem sido uma forma muito generosa de cuidar do meu trabalho.
TMDQA!: De certa forma, dá para dizer que esse passo é como uma consequência ou uma “evolução”, vamos dizer assim, do Liniker e os Caramelows. Foi um passo natural, não foi?
Liniker: Total. E eu só fiz esse disco hoje porque eu tive uma experiência de trabalho e de vida na estrada com o Liniker e os Caramelows muito rica e muito inesperada. Eu não sei se você me acompanha desde o início, lá no lançamento de “Zero”, “Caêu”, aqueles primeiros vídeos já foram demais.
O meu trabalho continua em uma crescente. Eu entender que era importante para mim mesma seguir em direção a outro caminho é entrar em um beco sem saber se vai sair no mar ou sair no final da ponte. Eu preciso ir. Eu preciso me colocar no movimento de estar presente e viva no meu processo.
TMDQA!: Eu não só te acompanho como eu tive o “azar”, vamos dizer assim, de ver o show do Lollapalooza [que foi encerrado abruptamente por problemas técnicos]. Aquilo não foi culpa de vocês, eu entendo…
Liniker: Eu lembro desse show. Lembro com um misto, assim, de compreender a beleza que foi as pessoas estarem ali cantando mas também do pesar de ter preparado um show tão especial e ter dado o ruim que deu.
Mas é isso, as portas dos festivais não estão fechadas, eu espero. Eu posso fazer festivais ainda mais bonitos e estruturados nesse sentido.
TMDQA!: Com certeza. E, dessa vez, você não teve o Liniker e os Caramelows mas teve muitas participações especiais. Eu quero saber, no geral, como foi para você trabalhar dessa forma? Como foi a escolha de cada um?
Liniker: Para mim, esse é um disco que nasce muito por um lugar de querer me conectar com todas as minhas referências, de fato, e poder fazer um disco com isso. Então, muito vem da banda que eu escolhi para tocar, de músicos e musicistas que eu sempre admirei, e que fizeram minha “cozinha” nesse sentido.
As orquestras — temos duas orquestras nesse disco, então eu acho que ele é um disco de outro patamar, de outro lugar de experiência artística. Eu me sinto muito disponível a tudo o que foi colocado nesse trabalho e, sem isso, o disco não teria a sonoridade que ele carrega, não teria a pluralidade de sons e ritmos que ele tem, não teria essa magia como se fosse quase um disco onírico, esse lugares com tantas texturas que ele tem. Eu estou muito feliz com cada uma das participações e muito animada.
As participações especiais
TMDQA!: E, falando justamente das orquestras, quando você começou como artista — assim como é para a maioria dos artistas do Brasil —, era uma vida com poucos recursos. Como você se sente podendo chamar duas orquestras para participar de um disco seu e ver esses arranjos grandiosos que fazem jus, na minha opinião, à arte que você faz?
Liniker: Eu fico muito feliz de poder acessar essa qualidade do meu trabalho hoje. [É importante] entender minha trajetória e também entender o quanto a comunicação [foi importante] nesse sentido, porque os convites das orquestras vieram de forma muito orgânica, por ter sonhado com isso. Eu fui até essas pessoas e elas gostaram do meu trabalho.
Isso me deixa muito feliz e me dá essa sensação de como é importante se conectar com as coisas ao longo da estrada e o quão importante é também ter uma rede afetiva nesse sentido, não só pela grandeza das orquestras mas também por sentir que cada pessoa que tocou ali tocou querendo somar. Isso dá uma sensação de abundância e riqueza para um trabalho como esse para muito além do júbilo ou dinheiro. E que bom que a música faz essa ponte.
TMDQA!: Eu imagino que tenha sido um sonho realizadíssimo trabalhar com o Milton Nascimento. Como foi falar com ele sobre isso, vê-lo abraçando sua ideia e participando da sua música?
Liniker: Foi um sonho. É o Milton participar do meu disco, botar a voz no meu disco, cantar um letra que eu escrevi. Então, são muitos gozos bons. É uma conexão que aconteceu pela live que a gente fez em 2020 e, se não tivesse rolado essa conexão, talvez eu não tivesse acesso ao Milton. E ali eu já senti algo maior entre o nosso elo. E quando o Augusto Nascimento [empresário e filho do Milton] recebeu meu convite, ouviu a música e mostrou para o Bituca e ele quis gravar, foi surreal.
A primeira vez que a gente recebeu a guia do Milton a gente ficou tipo, “Meu Deus, isso tá acontecendo de verdade?”. O disco parte de um lugar tão doido que parece surreal, mas é tudo verdade, tudo orgânico. Isso dá uma alegria ao processo de entender que tudo aconteceu no tempo que tinha que acontecer e porque tinha que acontecer.
TMDQA!: Como você mesma falou, esse disco é muito plural, tanto na questão sonora como no sentido das participações. Uma das que eu queria falar é a do DJ Nyack, uma pessoa que não necessariamente está naquela caixinha da MPB. Ele não está na mesma caixa do Milton, por exemplo…
Liniker: Eu acho que não só o Nyack, mas o feat da Tássia Reis, ter o coro da Tulipa Ruiz nessa música, me dá a sensação de estar brincando no meu quintal. Essas pessoas são pessoas do meu convívio, das minhas relações. Então, poder trazer isso em um momento que a gente está tão distante das pessoas e poder eternizar isso — porque é um disco que nasce na pandemia e que faz um brinde aos encontros e às coisas construídas — me deixa com a sensação de muita alegria.
E o DJ Nyack é um cara que eu admiro demais pelas referências e principalmente por ele também amar discos e a gente ter uma troca muito amorosa dos trabalhos que a gente gosta. Nós dois temos algo em comum que é a paixão pela obra do Djavan. Tem essa proximidade legal desse elo.
Índigo Borboleta Anil
TMDQA!: Eu quero falar sobre a canção “Antes de Tudo” que, pelo que eu li, foi a sua primeira composição. Como foi revisitar essa música? Para mim foi um dos destaques do disco. Me chamou muita atenção mesmo, pois ficou com um arranjo muito bonito. Era algo que você já visualizava? Como foi voltar para essa música? Você ainda se identifica com tudo que a letra fala?
Liniker: Eu me identifico com essa música hoje justamente por ter topado fazer uma reforma nela. Ela não é uma música conhecida e foi a minha primeira composição, então, achei legal pegar algo que eu já tinha escrito lá no começo e pensar, “Nossa, Liniker, você disse isso mas você pode reformar”. Você pode falar sobre o ponto de vista de como está hoje. Ela continua sendo de verdade, justamente por sentir que a música é um processo vivo. A música é algo que acontece na presença. A música é algo que acontece a partir do momento em que você se comunica com aquilo e e se conecta.
Então, poder ter essa música me conecta também com a minha ancestralidade porque, por exemplo, na pandemia eu descobri que o pai do meu pai é de Casa Nova, na Bahia, e a Bahia é um dos lugares que eu mais amo no mundo e que eu vou sempre que eu posso. Entender essa conexão com meu avô e ter uma orquestra baiana no disco me fez perceber uma conexão entre o passado, presente, futuro e além. Poder surfar em uma onda desse tipo dá um tesão muito grande.
TMDQA!: Eu senti que isso que você falou sobre a ancestralidade, talvez até a parte de maternidade, tanto “Clau” quanto outras como “Lalange”, por exemplo, têm uma coisa do instinto materno, ou fraternal, por assim dizer, e a gente observa uma conexão muito grande nisso tudo no sentido da ancestralidade. Isso foi algo que você revisitou bastante, tanto sobre a ancestralidade quanto sobre a maternidade. Essa coisa mais fraternal foi algo que te apoiou muito, né? Porque realmente permeia o disco todo.
Liniker: O disco parte do fato de que eu preciso olhar para minha criança interior e saber olhar para alguns traumas e cuidar disso. Acho que o disco passa por esse filtro em que dentro dos processos traumáticos eu precisava reacender algumas certezas e reacender algumas coragens. Acho que olhar para esse ponto fraterno foi um lugar onde eu consegui me dar colo em um momento em que a falta física está tão distante e tão necessária.
TMDQA!: É engraçado porque vi você falar que “Diz Quanto Custa” é um “Samba Rock para sua mãe dançar”. Eu ri muito disso porque outro dia eu estava mostrando o seu Tiny Desk (série de shows ao vivo) para a minha mãe e ela falou, “Nossa, que coisa linda”. E eu fiquei me perguntando se é uma coisa que você tem em mente quando você escreve, de olhar tanto para o público jovem, que busca essa representatividade que você tem musicalmente e como pessoa, quanto para os mais velhos, como às vezes um pai e uma mãe que só querem ouvir uma música para dançar ou algo do tipo.
Liniker: Eu sinto que a minha música, diferentemente do que o mercado tenta colocar, não é só para um tipo de público. Eu não sou só uma cantora LGBTQIA+ ou uma cantora preta, eu sou uma cantora, sou uma musicista e sou uma artista. Então, eu fico muito feliz quando eu vejo que a minha música estourou essas bolhas que tentam manter a gente e chega em pessoas mais velhas e chega também em crianças, e também em públicos fora do Brasil.
Quando a minha música é consumida só por ser música, isso me dá uma alegria gigante. A minha vontade com esse disco é que ele também acesse esse lugar de ser música e ser o que é, e qualquer pessoa pode acessar essa história. Qualquer pessoa pode mergulhar comigo para dentro desse oceano e ter gosto no nadar, assim como eu tive para criar cada letra.
“Lalange” e a experiência visual do disco
TMDQA!: “Lalange”, para mim, é o ponto alto do disco. Foi a canção que eu ouvi repetidas vezes e eu achei muito curioso essa coisa do sonho. Quando eu li o paralelo dessa história com a do Miguel [Otávio Santana da Silva, garoto de 5 anos que caiu do 9º andar], foi algo que me pegou muito forte. Eu fiquei me perguntando — e claro que pode não ser o caso — mas fiquei me perguntando se você encontrou nessa música um paralelo entre a sua história, ou a história da sua mãe, de pessoas que estão tão ocupadas ou consumidas por outras coisas que não conseguem olhar para o seu filho. Como foi a história por trás dessa música? Houve esse paralelo entre a sua história e a do Miguel?
Liniker: Essa música, na verdade, parte de um lugar… da gente estar cansado de chorar tantas mortes. A gente está cansado de ver tanta crueldade, maldades, violências apontadas diretamente para os nossos corpos. Não tem como não pensar na criança que eu fui, de precisar ir para o trabalho da minha mãe com ela quando minha mãe foi doméstica e sentir que aquela criança poderia ser eu, poderia ser minhas primas, até mesmo as crianças que estudavam comigo, poderia ser uma criança vizinha minha.
Ainda mais agora com tantos retrocessos como a gente tem visto e vivido… Como é triste e cansativo esse lugar da resistência pela dor, disso não ter justiça. Então, de alguma forma, eu queria muito me conectar com a Mirtes (mãe do Miguel) nesse sentido, para que ela não se sentisse sozinha. E não só com ela, mas também com outras pessoas, outras famílias que estão cansadas de choras pelos seus entes mortos.
TMDQA!: Infelizmente, a gente acabou de ver mais um caso desses, o da babá que apanhava da patroa. E é muito triste porque dá essa sensação de que é realmente mais um caso que vai sair impune. Enfim, eu queria dizer que esse disco, não sei se foi a intenção ou não, mas eu o senti como uma experiência quase audiovisual, como se fosse uma grande narrativa e eu estivesse mergulhando nela. Eu sei que você já lançou alguns clipes, mas queria perguntar se vai ter mais. Você tem essa ideia de transformar o disco em uma experiência mais visual, com algumas outras músicas que podem trazer esse estímulo?
Liniker: Esse disco tem tantas camadas, e é isso que eu estava falando. Ele não acaba no lançamento. Eu quero aproveitar cada detalhe, seja como clipe, seja como show. Muitas coisas ainda vão sair que nem eu sei o que é, mas que eu sei que tem espaço para isso. E eu estou aqui entendendo como fazer, mas, com certeza, o disco vai para esse lugar visual e para esse lugar imagético. Depois de pronto, eu entendi que eu fiz quase um disco de trilha sonora. Então, eu acho que é algo muito interessante desse trabalho, de conseguir ter dado imagem para o que eu estava sentindo.
TMDQA!: Eu estou muito ansioso para ver tudo o que vai surgir depois e concordo plenamente no sentido de ser um disco com tanto para ser explorada. Liniker, muito obrigado pelo papo e até a próxima! Espero que nosso próximo encontro seja em um show, de preferência sem interrupções.
Liniker: Nossa, eu também não vejo a hora de fazer um show. Claro que as lives têm sido muito importantes, mas [aguardo] um show com gente, olhando olho no olho. Esperemos o melhor momento!