Por Nathália Pandeló Corrêa
Quando começou a compor seu novo álbum, o duo colombiano Bomba Estéreo parecia já saber que o mundo mergulharia no caos. Partindo do conceito de um armagedom da natureza, um fim para um recomeço, eles construíram as novas canções como um convite de reconexão com o que nos torna humanos.
Deja partiu da ideia de fim do mundo para oferecer músicas sobre uma volta às nossas raízes, a ouvir a nós mesmos e à natureza. Lançado como quatro EPs temáticos, cada um batizado com o nome de um elemento — Agua, Tierra, Aire e Fuego —, o álbum ganhou forma ao unir as 13 canções em uma coleção coesa que dialoga com muitos dos desafios que enfrentamos hoje enquanto seres humanos.
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Mas a música de Bomba Estéreo não é apocalíptica ou sombria. Sua mescla de ritmos tradicionais, como a cúmbia e a salsa, com elementos eletrônicos sempre colocou o público para dançar, seja no Brasil, nos EUA, na Europa ou no Japão, onde se tornaram sinônimo da música tropical ou caribbeat. Com um pé entre o tradicional e o moderno, o duo formado pelo beatmaster e compositor Simón Mejía e a vocalista e compositora Li Saumet ganhou força em 2010, com seu sucesso “Fuego” ecoando para muito além da América do Sul.
Com ares de vanguarda, eles amadureceram essa estética até chegar ao ousado Deja. Autoproduzido, o trabalho foi resultado de um retiro na casa de Li, em Santa Marta, onde Bomba Estéreo criou livremente em um estúdio improvisado e acabou por reunir convidados de peso no produto final — incluindo o renomado cantor mexicano Leonel García; o recente fenômeno do art pop colombiano, Lido Pimienta; e a cantora Yemi Alade, novo fenômeno do afro-pop nigeriano.
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Se reconexão é o que buscavam, Deja entrega. As faixas dialogam entre si e chegam acompanhadas de clipes que expandem sua narrativa colorida. Para muito além dos sons, Bomba Estéreo explora símbolos e tons da sua Colômbia natal na capa do álbum, dos singles e EPs, nas fotos de divulgação. E para muito além do caos, Li chega ao fim do álbum convidando a viver o momento (em “Ahora”) e repete: “estoy bien”. Não se trata do nosso inevitável fim, mas sim da jornada até lá.
Agora, Bomba Estéreo quer levar aos palcos o show que inspirou toda essa obra. Conversamos com Simón Mejía via Zoom sobre o atual momento da banda, a conexão com o Brasil e a Amazônia e o encontro da tradição com a modernidade.
Confira abaixo!
TMDQA! Entrevista Simón Mejía (Bomba Estéreo)
TMDQA!: Oi, Simón! Primeiramente, queria dizer que amei o novo disco. Adoro como vocês conseguem fazer a gente dançar e pensar ao mesmo tempo. E claro que quero falar sobre ele. Quero voltar a quando vocês começaram, porque li que vocês começaram a compor o álbum em um mundo pré-pandêmico — que parece uma vida atrás —, mas já era um mundo em que lidávamos com tanta coisa. Estávamos desconectados da nossa essência, porém conectados demais aos nossos aparelhos eletrônicos. Claro que vocês não poderiam imaginar que o disco sairia num mundo ainda mais caótico. Queria saber como você vê o álbum se relacionando com as questões que enfrentamos atualmente.
Simón Mejía: Obrigado, valorizo sua opinião sobre o disco, e o que você falou está correto. Começamos a pensar no disco antes da pandemia, tínhamos um conceito sobre o fim do mundo, especialmente ideias para um show — não tanto a parte musical, porque se você pensa em música para o fim do mundo, parece meio sombrio, e o Bomba Estéreo não é sombrio.
TMDQA!: Não, nem um pouco.
Simón: Mas tínhamos o conceito que queríamos fazer algo no show em que a Terra tivesse queimado até o fim e surgia uma nova forma de vida. Então era o fim do mundo que conhecíamos e a natureza iria renascer disso. Acabamos o disco e as músicas, e a pandemia veio. Parecia um sinal: “Ok, o mundo está acabando”. Mas pensamos em termos mais positivos, sabe? Qual é a essência do problema que vivemos hoje?
Para nós, era a desconexão da natureza. Em algum momento da história, nós humanos nos desconectamos da natureza, e aí veio tudo que estamos vendo hoje; o aquecimento global é um exemplo disso. E é lindo que você é do Brasil, porque tenho uma relação muito profunda com a Amazônia, suas comunidades, os povos indígenas que vivem lá. E acho que hoje, mais que nunca, temos que ouvir o que essas pessoas têm a dizer sobre como devemos nos relacionar com a natureza. Não sobre como devemos viver, porque não vamos viver como eles, já temos nossas civilizações, nossas cidades, carros, aviões, o que seja. Mas esses povos, há séculos, desenvolveram um estilo de vida em harmonia com a natureza. É isso que a nossa sociedade precisa hoje: como viver nessa sociedade que construímos, mas ao lado da natureza. Não somos donos dela.
A natureza é como se fosse nossa mãe, somos um só e não somos melhores que ela. Essas comunidades entendem isso porque é seu modo de vida. E é assim que eles preservam a Amazônia há séculos e séculos, do modo que conseguem. A floresta amazônica ainda está sob ameaça, mas não se limita à Amazônia. Todos os povos indígenas ou originários do mundo têm uma mensagem para nós sobre como devemos mudar um pouco nosso modo de perceber e nos conectarmos com a natureza, que não seja só tomar, tomar, tomar e não devolver nada. É uma relação mais harmônica.
Então o disco é sobre isso, sobre se reconectar com a natureza e a Mãe Terra e fazer as pessoas dançarem e pensarem, como você disse. Porque não queremos só fazer as pessoas dançarem, dançarem e dançarem. A música dançante é muito forte, mas precisa estar conectada ao lado espiritual das coisas, com o cérebro. É sobre dançar e se divertir, mas também refletir, pensar sobre o que acontece nesse mundo maluco em que vivemos.
TMDQA!: É uma boa forma de resumir. E na verdade você antecipou bastante coisa do que eu ia perguntar, então vou pinçando aqui alguns tópicos. Você falou de terem o conceito pra um show e que acabou virando o disco. E ficou tudo bem amarrado, mesmo sendo quatro EPs lançados separadamente. Mas ter um conceito tão forte também pode te limitar criativamente. Então queria saber como vocês lidaram com isso. Tipo, “ok, temos um conceito, temos um caminho inteiro a percorrer” ou era mais algo como “temos várias ideias que não se encaixariam aqui”? Como foi escolher o que queriam incluir e o que deixar de fora do conceito?
Simón: Entendo o que você quer dizer. Tínhamos esse conceito, mas a música não é conceitual. Ela é muito mais sobre energia, sobre fluxo. É uma arte muito viva. Tínhamos o conceito, mas quando começamos a fazer as músicas, colocamos o conceito de lado um pouco e focamos só nas músicas. Pensamos nele, mas deixamos fluir. Tínhamos muitas pessoas colaborando nesse álbum. Então deixamos fluir, aí quando tínhamos as canções, aí dissemos: “ok, tínhamos um conceito anterior. Como essas músicas que surgiram de um fluxo natural podem ser adaptadas para esse conceito?”
Porque não fizemos apenas músicas sobre terra, ar, fogo e água. Tem uma música que se chama “Agua”, mas as demais não são sobre os elementos, não são tão literais. Trouxemos o conceito do disco para as músicas e pensamos, se quisermos lançar esse álbum dentro dessa ideia, sobre a conexão com os elementos, começamos a pensar quais músicas se relacionavam liricamente com água ou com ar ou com fogo ou com a terra. Então começamos a botar cada grupo de músicas dentro de cada elemento, para acomodar cada canção dentro de uma narrativa.
Muitas não se encaixaram, então guardamos para algum momento posterior ao disco. Na música, é estranho de se conceituar tudo, mas fizemos esse exercício, foi muito interessante. “Essa música não fala sobre ar, mas tem uma sensação ‘aérea’, ou a letra é sobre se desprender” e começamos a criar essas ligações ao conceito, que era conexão e desconexão.
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TMDQA!: E como eu disse, ficou perfeito no disco. E falando nas letras, acho que vocês soam esperançosos ou positivos, apesar de dizerem que vamos caminhar para o nosso fim caso continuemos nesse caminho. Você estava falando de ainda manter o elemento dançante mesmo se propondo a fazer as pessoas pensarem. Como vocês equilibram esses lados de falarem as verdades duras, mas sem deixar de encontrar a luz, de não desistirem? A Li literalmente termina o disco cantando “estoy bien ahora”, então isso me soa esperançoso.
Simón: Sim! Como colombianos, e em geral latinoamericanos, isso faz parte da nossa personalidade. E especialmente como colombianos, porque vivemos em um país muito difícil e violento, a Colômbia pode ser um dos lugares mais perigosos do mundo, nós acordamos todos os dias com a morte respirando aqui [aponta para a nuca].
Violência, tráfico de drogas, guerra, corrupção, danos ecológicos… tudo junto nesse país pequeno. Mas ao mesmo tempo, somos festivos e felizes. Gostamos de dançar, de música tropical, salsa, merengue, reggaeton, todos os ritmos dançantes do Caribe, fazemos carnavais. As pessoas passam por situações muito difíceis, em que toda uma família foi morta por grupos paramilitares ou traficantes, e ainda têm um sorriso no rosto. E se alguém toca um tambor, alguém coloca uma música pra tocar, elas já estão dançando.
Então é algo cultural, em que você lida com o lado sombrio, mas ao mesmo tempo com a luz. É aquela coisa yin/yang, e a vida é sobre equilibrar os dois. Aqui na Colômbia, vivemos entre a vida e a morte e isso entra na sua personalidade. Tem a ver com isso. A música que fazemos há 15 anos tem esse elemento dançante, mas é aquele tipo de coisa que te leva pra um outro lugar, você fica meio desligado daquilo, e depois volta à batida. É o tipo de balanço colombiano que faz parte do nosso DNA (risos).
TMDQA!: Isso que você acabou de descrever, nós brasileiros nos identificamos muito. Sei exatamente do que você está falando. E você estava descrevendo algo bonito sobre a Colômbia, então queria aproveitar pra perguntar sobre esse lance geracional. Você mesmo disse que começaram há 15 anos, e sinto que o Bomba Estéreo veio muito de um lugar de entender onde a sua geração se encaixava ao misturar os sons antigos com os novos, o tradicional e o mais urbano. Você acha que as gerações atuais têm mais conhecimento dessa bagagem musical? Sei que o reggaeton ainda tá no topo das paradas, mas você acha que as pessoas estão mais a par das cúmbias da vida?
Simón: Espero que sim! Essa é um pouco a nossa missão aqui na Colômbia, culturalmente falando. Porque, por exemplo, as pessoas mais antigas, que têm as tradições musicais, estão morrendo. A minha geração também vai morrer. Então tem que haver algo que sobreviva. Bomba Estéreo vem de algo moderno, de olhar para a Europa e os Estados Unidos e a música eletrônica, mas os jovens olham hoje para o reggaeton como nós olhávamos a música eletrônica. É perfeito, normal.
Mas o que marca a sua diferença, a sua originalidade, é que você tem algo que é global, mas ao mesmo tempo, você tem algo que é particular apenas para você, para o lugar de onde você vem, suas raízes, o que liga ao lugar onde nasceu, as tradições, sua bagagem cultural. E se isso se perde, você fica tipo um balão sem corda, só flutuando pelo ar, sem chão. Mas isso é como eu vejo a arte. Não sei das novas gerações, mas pra mim seria uma pena ver isso se perder.
Porque é música incrível que vem da África, do mundo indígena, dos rituais, de lugares muito profundos na terra. Perder isso para a modernidade, o reggaeton, as máquinas e os computadores seria uma pena. Como Bomba Estéreo, tentamos dizer isso para os jovens: vejam só, fizemos uma carreira dessa forma e não é pela música eletrônica, e sim porque viemos dessas raízes culturais, é isso que o mundo viu na gente, não porque somos DJs, eletrônicos, bons com as máquinas. Assim espero, vamos ver.
Bomba Estéreo e a relação entre Brasil e Colômbia
TMDQA!: Então pra terminar, vou combinar aqui duas perguntas, pensando mais regionalmente e globalmente. O Brasil sempre ficou separado do resto da América Latina, e o fato de estarmos falando Inglês agora prova isso.
Simón: Sim, é o lance da língua.
TMDQA!: É… Não falamos Espanhol, mas também não falamos Inglês, né? A gente aprende uma e não a outra (risos).
Simón: É… (risos)
TMDQA!: Acaba sendo uma escolha, e bem antiga. Agora estamos tentando correr atrás do tempo perdido, acho. E vocês estiveram no Brasil algumas vezes, colaboraram com brasileiros. Queria saber o que você acha sobre essa convivência fronteiriça, o que nos diferencia e o que nos une. E também queria saber como a sua música é percebida internacionalmente. Quando começaram, talvez as pessoas pudessem enxergar vocês como algo “exótico”. E agora parece haver um novo interesse e respeito pela arte feita na América Latina. Como vocês são vistos quando vão para a América e a Europa?
Simón: Acho que somos vistos como música eletrônica alternativa da América Latina, ou mesmo música pop eletrônica, música tropical eletrônica da América Latina. Isso pode ser algo global — eletrônico —, mas tropical. E as pessoas tendem a entender mais, porque quando você fala de cúmbia ou outros gêneros locais, as pessoas não têm relação com isso e não sabem do que estamos falando. Mas eletropical eles entendem. É algo global, as coisas que falamos e o que a Liliana está cantando, é algo que todos enfrentam em todo o mundo e não só na Colômbia. Estamos juntos nesse mundo e especialmente hoje, com tudo que está acontecendo, estamos ainda mais unidos nessa missão de fazer do mundo um lugar melhor.
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E sobre a Colômbia e o Brasil, é divertido. Porque todas as vezes que vamos tocar aí, as pessoas se ligam em algumas músicas da tracklist que são estranhas, não são as mesmas que outros países da América Latina gostam.
É muito interessante, sempre fico observando o público e é incrível, eles sempre vão à loucura com uma música que não é conhecida. E isso é lindo, porque como latinoamericanos, compartilhamos tanta coisa historicamente, com o colonialismo, com as diásporas africanas, e a música é tão forte na Colômbia, no Brasil, no México. Nos conectamos através disso. E temos a floresta amazônica, um dos lugares mais incríveis do mundo em termos de natureza, e compartilhamos isso com o Brasil.
O Brasil tem uma parte muito maior, mas a Amazônia colombiana é quase metade da Colômbia. Então somos um país amazônico, compartilhamos isso, e é algo incrível de compartilhar, porque é uma das coisas mais importantes a serem protegidas hoje. Acho que a música e a Amazônia já nos tornam irmãos.
TMDQA!: Sim! Isso é mais do que o suficiente. Quem sabe quando vocês conseguirem montar aquele show, vamos conseguir ver vocês aqui no Brasil.
Simón: Espero que sim, toda vez que vamos é sempre uma surpresa. Temos amigos aí, colaboramos com artistas daí em São Paulo. Toda vez que vamos aí é uma surpresa. É um país tão lindo e conflituoso ao mesmo tempo.
TMDQA!: Sim, somos exatamente assim! Mas teremos muito para comemorar quando esse momento chegar. Boa sorte com o disco e nos vemos.
Simón: Espero que sim! Se cuide.