Definitivamente nada sobrevive sem adaptação. Isso vale desde seres vivos até marcas famosas como Netflix e Burger King. Desenvolvimentos na sociedade e na tecnologia, cada vez mais frequentes, nos põem para pensar e deixam claro que é preciso estar sintonizado com as mudanças.
Isso também é verdade no mundo da música já que, sem mudanças, gêneros musicais tendem a se perder no tempo. O rock, por exemplo, ainda existe por conta de artistas que ajudaram a evoluí-lo com novas propostas que dialogam com interesses sociais e tecnológicos. Trazendo a discussão para o território nacional, vemos o mesmo acontecendo com o sertanejo.
Ao longo das décadas, o gênero se adaptou de diversas formas. Enquanto o sertanejo universitário, ao longo dos anos 2000, aproximou essa sonoridade de um público mais jovem, o feminejo dos anos 2010 encorajou mais mulheres a assumirem a voz em canções emblemáticas. A evolução é constante e deságua nos dias de hoje, em que o queernejo toma cada vez mais forma e espaço no universo desse estilo musical.
Com o objetivo principal de aproximar o sertanejo do público LGBTQIA+ e vice-versa, esse recente subgênero acompanha a evolução de um pensamento social menos limitador e preconceituoso. Alguns nomes em específico têm sido responsáveis por essa ascensão, dentre os quais temos Reddy Allor, também conhecida como “a drag queen do sertanejo”.
Reddy Allor e o queernejo
Reddy Allor, nome artístico de Guilherme Bernardes Duarte, já pertencia ao universo ainda preconceituoso do sertanejo e viu em nomes como Pabllo Vittar a oportunidade de propor uma reflexão social através da música. Após ter trabalhado em dupla com seu irmão Gah Bernardes, Reddy Allor surgiu e libertou Guilherme de muitas amarras do mundo artístico.
A partir daí, foram lançados um EP (Ascensão, de 2021) e alguns singles que também propõem inovações estéticas para o sertanejo. Atualmente, ela trabalha o lançamento de “Álcool Estima”, composta por Gah e que conta uma história sobre sedução e confiança.
Além dos flertes com pisadinha e forró, a canção também contempla um clipe com pegada bem pop. Sobre esse novo single e mais, conversamos com Reddy, que nos explicou um pouco sobre a importância desse emergente estilo musical.
Confira abaixo!
Continua após o vídeo
“Sou tudo isso e acredito que serei muito mais”
TMDQA!: Em poucas palavras, como você definiria Reddy Allor? Quem é ela e qual é a sua proposta para a música nacional?
Reddy Allor: Reddy é uma drag queen do sertanejo, mas que não está presa ao sertanejo. Ela entende que há possibilidades que devem também ser exploradas. Minha vida sempre foi isso: buscar coisas novas para me conhecer cada vez mais. Então, eu nunca me coloco em um lugar fixo para sempre. A Reddy também tem um sonho muito grande de poder mudar a história do sertanejo e o pensamento das pessoas em relação a artistas LGBTQIA+, e não apenas dentro do sertanejo. A Reddy quer fazer com que a força de uma drag no sertanejo passe para qualquer outro estilo musical. Existe esse lugar de vontade, de querer conquistar mundos. Sou tudo isso e acredito que serei muito mais. Falo isso até para frisar para mim mesma
TMDQA!: No clipe, “Álcool Estima” é também uma bebida verde, que remete um pouco ao absinto. O que exatamente essa bebida, de importância central para a narrativa do vídeo, simboliza?
Reddy Allor: A bebida é, na verdade, a protagonista do clipe. A música fala de uma pessoa que está se embebedando de “Álcool Estima” e que está se achando o maioral, mesmo não sendo. A bebida mostra isso durante todo o clipe e fica claro que ela é o foco principal de tudo isto. É uma dose de autoestima, só que não positiva. Muita autoestima pode fazer mal para uma pessoa. A gente não pode se embriagar disso.
TMDQA!: Seus clipes são muito bem produzidos, contam histórias e acabam fugindo um pouco do estereótipo de clipes sertanejos gravados ao vivo. Como você vê a importância da imagem para o seu trabalho?
Reddy Allor: Eu sempre fui muito criativa, desde a infância. É algo que faz parte de mim e poder fazer isso dentro do meu trabalho artístico é um ponto positivo. Trazer toda essa estética visual é uma coisa nova dentro do sertanejo e eu posso explorar isso com minha equipe. Trazemos muitas referências do pop e trazemos essa identidade para dentro dos projetos, porque é algo diferente que gostamos muito de fazer, por mais que seja uma música sertaneja. Gostamos de explorar isso e de apresentar para as pessoas como oportunidades.
“Eu me sinto com uma responsabilidade muito grande de não errar”
TMDQA!: A letra da música teve inspiração em algum momento pessoal da sua vida? E quanto à sonoridade, que artistas ou tendências musicais guiaram a estética da canção?
Reddy Allor: A música não tem a ver com algum momento específico, mas acredito que, por ser muito literal, todo mundo já viveu algo parecido. Por isso, me identifiquei muito. Você pode dar para qualquer pessoa ouvir e ela vai se identificar de alguma forma, porque todo mundo já passou por um momento parecido com esse.
A sonoridade dela é guiada pela bachata, mas senti que era algo muito lento. Eu queria algo mais animado e, a partir daí, criei uma pasta com referências musicais que eu queria para a música. Comecei a pensar em referências que gosto. Pensei na Ivete, que, apesar de não ser uma cantora sertaneja, é uma artista que eu admiro muito em termos de presença e voz. Gosto muito dessa brasilidade dela. Trago também referências de artistas do sertanejo atual e do fenômeno da pisadinha. É uma mistura de muitas coisas.
TMDQA!: É muito legal acompanharmos a evolução da música sertaneja ao longo dos anos. Só nas duas últimas décadas tivemos a explosão de movimentos importantes como o sertanejo universitário e o movimento do feminejo. Vejo na proposta do queernejo um novo marco para o gênero e em você uma importante figura para o desenvolvimento dessa vertente recente. Como você se sente enquanto parte da história da música sertaneja?
Reddy Allor: É uma responsabilidade, viu? Eu entendo que meu trabalho vai em um lugar de evolução, que é um lugar muito grandioso. Eu me sinto com uma responsabilidade muito grande de não errar. Sei que todo mundo erra, mas sinto que preciso mostrar para as pessoas essa força de estar mudando um movimento, assim como o feminejo fez há uns anos. No entanto, eu vivo essa responsabilidade de forma muito leve e com muita clareza. Tudo que faço é muito real para mim.
Eu não consigo forçar algo dentro do meu lado artístico. Esse espaço é algo que me deixa muito feliz, para mostrar às pessoas que elas podem estar nesse espaço também. O sertanejo pode evoluir mais ainda. Não só o sertanejo, mas tudo. Tenho essa gratidão em ter essa oportunidade de propor uma reflexão, uma mudança, ao gênero.
” (…) essa militância, ainda ausente no sertanejo, de discutir mérito e identificação”
TMDQA!: Como você enxerga as consequências sociais desse novo subgênero? O feminejo, por exemplo, incentivou muitas mulheres não apenas a participar do mundo do sertanejo, mas também a consumir mais esse tipo de música. Você já tem visto o queernejo conquistar mais a comunidade LGBTQIA+?
TMDQA!: Com certeza! Quando eu lancei minha primeira música, acho que era algo completamente novo, tanto que recebi muitos questionamentos do público LGBTQIA+. Eu super entendo as dúvidas, porque o sertanejo é um lugar que não acolheu a gente durante todo esse tempo. Ainda é difícil a gente se sentir acolhido. Eu entendo essa resistência, mas isso certamente já mudou muito de três anos para cá. A comunidade está muito mais aberta.
A gente está em um momento de evolução da sociedade em que esses questionamentos já não são tão relevantes. É um processo de desconstrução. Acredito que demore um pouco para a comunidade em peso se sentir confortável em estar no sertanejo, mas eu sinto que muita gente já se abriu para esse lugar, para essa memória afetiva. As pessoas, na maioria das vezes, se conectam com a infância ouvindo sertanejo. É um relato que ouço muito e isso é muito legal, porque significa que estamos em um lugar bom e verdadeiro. As pessoas estão se abrindo muito, tanto dentro do público LGBTQIA+ quanto dentro do público sertanejo. É algo simultâneo.
TMDQA!: Na sua opinião, o que define o queernejo em termos musicais e líricos? O que faz com que esse movimento esteja crescendo gradativamente?
Reddy Allor: Acredito que o queernejo seja uma evolução do sertanejo que se destaca por não se moldar em um único lugar. Ele vai muito além: mistura sertanejo com pop, com funk, indie e qualquer outro estilo musical. Não é só por serem pessoas LGBTQIA+ fazendo, mas por propor algo que vai além. O sertanejo, em termos sonoros, já está muito evoluído, mas o queernejo vai a um lugar acima disso. Outra coisa que certamente destaca esse subgênero é a importância do movimento. É ter essa militância, ainda ausente no sertanejo, de discutir mérito e identificação.
“Eu passei a me entender como eu realmente quero”
TMDQA!: Antes da carreira solo, você teve experiências musicais em dupla com seu irmão Gabriel. Desde essa época até hoje, como você avalia sua evolução como pessoa e a evolução da sua musicalidade?
Reddy Allor: Eu evoluí muito depois que me assumi e passei por tudo isso. Foi um processo duro e até doloroso, mas foi necessário que eu entendo cada vez mais e que nunca termina. Eu sinto que, na época da dupla, eu não tinha essa ganância em querer evoluir e aprender coisas novas. Depois de sair da dupla e começar do zero, eu passei a me entender como eu realmente quero. Sinto que, ao longo da minha vida, acabei sendo muito guiada pela opinião de pessoas. Esse processo em que estou agora é um fruto do meu autoconhecimento. Sinto que evoluo cada vez mais como pessoa e em minha bagagem musical. É uma evolução que vem de todos os lados.
TMDQA!: Que outros nomes do queernejo você recomendaria para alguém que deseja se aprofundar mais nesse mundo?
Reddy Allor: Todos! Todos os artistas do queernejo são muito incríveis. Existem artistas que eu acabo consumindo um pouco mais, porque me identifico mais em termos sonoros, mas todos são muito bons no que fazem. Vou indicar para vocês Gabeu e Mel & Caleb.
TMDQA!: Quais são os próximos passos da sua carreira? Além dos singles, você tem o EP “ASCENSÃO” lançado, que teve uma recepção muito boa. Tem mais algum álbum ou EP vindo aí? Você pode nos adiantar algo?
Reddy Allor: Eu não posso adiantar muitas coisas, mas tenho trabalhado bastante em novos projetos. Vou lançar muita coisa esse ano. Estou trabalhando coisas diferentes, com estéticas diferentes. Vão ser muitos lançamentos legais e eu tenho certeza que todo mundo vai se surpreender com essa nova fase. Vai ser uma nova evolução para mim e quero me conectar ainda mais com meu público.
TMDQA!: Alguma consideração final? Alguma outra informação que queira compartilhar com a gente?
Reddy Allor: Fico muito feliz! É muito legal poder compartilhar com pessoas que querem somar com o meu trabalho.