Com MOTOMAMI, ROSALÍA se põe como uma das mais criativas artistas da atualidade

Novo álbum de ROSALÍA traz mistura incrível entre sonoridades que habitam o mainstream com outras que nós nem sabíamos que queríamos ouvir.

ROSALÍA
Divulgação

ROSALÍA é daquelas artistas que é raro encontrar alguém que não ame. Saída de Barcelona, Espanha, a cantora encontrou notoriedade global ao trazer o flamenco de volta à musica com uma roupagem pop sem fugir do clássico, sendo seu segundo disco, EL MAL QUERER (2018), uma obra de arte sem nada parecido no mainstream.

Após adquirir essa notoriedade e algumas participações de peso com artistas como The Weeknd, Travis Scott e J Balvin, seu novo álbum é outra mistura incrível entre sonoridades que habitam o mainstream com outras que nós nem sabíamos que queríamos ouvir, quebrando a divisão entre música clássica e contemporânea.

O título, MOTOMAMI, vem para mostrar dois lados de Rosalia: “moto” seria o lado da liberdade e poder, enquanto “mami” seria o lado mais feminino e “suave”. O álbum funciona assim, tendo a todo tempo uma alternância entre uma faixa mais suave e outra mais agitada.

Este, aliás, é possivelmente o único real problema do disco, pois as frequentes mudanças e alguns finais bruscos impedem a criação de um momentum, havendo sempre uma justaposição das faixas mais divertidas com as mais deprimentes (no bom sentido). Talvez o esquema Lado A/Lado B servisse melhor ao propósito.

Ainda assim, este seria o único problema porque simplesmente não há canção que deixa a desejar quando analisada individualmente. O flamenco que deu notoriedade à cantora dá lugar ao reggaeton como fio condutor da maior parte do trabalho, ao mesmo tempo passando longe de ser comparável às batidas formulaicas que se repetiram à exaustão nos últimos 5 anos, com ROSALÍA (que foi a produtora executiva do disco e leva créditos de produção em todas as faixas) misturando o gênero latino-americano a diversas outras sonoridades, do trap ao pop experimental. 

MOTOMAMI

“SAOKO”, faixa que abre o disco, já é uma amostra disso: entre passagens que lembram um free jazz, temos baterias de reggaeton com sintetizadores mais graves para entregar um banger de 2 minutos, com ROSALÍA trazendo flows repletos de presença.

“CHICKEN TERIYAKI” talvez seja o único reggaeton mais próximo do padrão, e ainda assim é uma das tracks mais divertidas de todo o disco, com ROSALÍA misturando referências japonesas a um rolê em NY repleto de name drops (de Naomi Campbell ao produtor Mike Dean) além de, mais uma vez, flows muito carismáticos e bom humor na escrita. Surpreendentemente, ela se mostra uma rapper bem capaz no disco.

“LA FAMA” traz The Weeknd, um dos raros feats do álbum, para cantar ao lado da anfitriã sobre um beat criado em torno de uma bachata. Embora o espanhol de Abel esteja incrivelmente bem pronunciado, ele não se encaixa tão bem na boa canção onde ele e ROSALÍA cantam sobre a fama, um tema recorrente do disco, como se fosse um amor pouco confiável.

“BIZCOCHITO” e “CUUUUUuuute” são outros grandes destaques do lado mais agitado; a primeira, simplesmente pela diversão e mais uma vez pelos flows minimalistas que ROSALÍA traz sempre que se aventura (com sucesso) no rap, e a segunda pela absurda mistura de uma bateria escola de samba com influências de Arca, onde a faixa varia do samba para o piano e volta para o samba. 

Tudo isso, aliás, funciona muito melhor do que se pode imaginar, ainda mais por Arca ser uma clara influência no disco pela mistura de sonoridades dissonantes. 

Do reggaeton ao clássico

Outra influência que é vista, agora no lado mais emocional do disco, é James Blake, que participa na produção de duas faixas do miolo do disco. “COMO UN G” tem apenas um piano e sintetizadores de fundo, dando o ambiente para que ROSALÍA entregue a emoção em seu vocal para uma triste canção de amor. A outra, “DIABLO”, é uma faixa que traz mais uma bela mistura de ideias e sonoridades, usando a modulação de vocal para entregar as diferentes fases da track, além de contar com uma participação do próprio Blake.

“HENTAI” faz referência ao gênero de pornografia japonesa, com ROSALÍA, que frequentemente expressa sensualidade pelo tom de voz, trazendo isso explicitamente na letra (“quero montar em você como minha bicicleta”). Num total oposto temático está “G3 N15”, faixa dedicada a seu sobrinho e a mais bonita do trabalho, onde ela abusa do alcance mais alto de seu tom soprano sobre esparsas notas de sintetizador. A faixa emociona pela performance, pela letra e pelo áudio da avó da cantora que vem no fim.

Há muito carisma, mas o mundo se apaixonou pela voz incrível de ROSALÍA e por sorte recebemos muito disso em MOTOMAMI, com destaques para isso no início e no fim. A segunda faixa do disco, “CANDY”, é um uso das baterias do reggaeton de forma mais sutil, com o foco do instrumental sendo um piano mais clássico sobre o qual a catalã usa o falsete para entregar a emoção que deseja. Enquanto isso, “BULERÍAS” é uma volta ao básico, sendo a única faixa de flamenco mais puro e também uma das melhores do disco. 

Do outro lado, “SAKURA” encerra o álbum com uma linda performance clássica, soando como se tivesse sido gravada em uma ópera. A escrita é muito bela, fazendo referência à flor que dá o nome à faixa — que é bela mas morre em pouco tempo, assim como a vida de popstar. A voz da cantora é fenomenal em toda a canção e emociona por si só, mas há também a letra que ajuda a atingir isso:

Solo hay riesgo si hay algo que perder

Las llamas son bonitas porque no tienen orden

Y el fuego es bonito porque todo lo rompe

O disco é fenomenal do início ao fim, e todas as canções merecem um destaque individual. Mesmo no primeiro trimestre, é um concorrente, desde já, ao posto de melhor álbum do ano, e certamente será um dos mais originais, ecléticos e ousados. Considerando toda essa voz, todo esse talento e a criatividade artística, é seguro dizer que a vida de fama de ROSALÍA não será tão passageira assim.