29 de maio de 2018. Era lançado ao mundo Daytona, o primeiro de cinco álbuns produzidos por Kanye West que sairiam em um espaço de cinco semanas. Nas duas músicas finais do disco, Terrence Thornton, o Pusha-T, ataca um antigo desafeto, Drake, o rapper mais popular do planeta, por seu histórico polêmico quanto ao uso de ghostwriters.
Este dia mudaria completamente o tamanho do já icônico Pusha-T no mundo do rap e da música mundial. Avance quatro anos e temos aqui It’s Almost Dry, sucessor de Daytona onde Pusha se mostra pronto para, mesmo sendo um veterano no jogo, se manter no topo não apenas para os fãs do rap raiz, mas para o público em geral.
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O resto da história da briga de Pusha com Drake o mundo já sabe, culminando em uma grande derrota de Drake na opinião pública. Enquanto isso golpeou a visão do mundo sobre Drake, colocou Pusha na boca do povo, e certamente o ajudou a ser visto por muita gente que não o conhecia, culminando em uma indicação no Grammy para Álbum de Rap do Ano — algo mais do que justo para o público ligado ao rap.
O artista, que é talentoso o suficiente para levar a alcunha de “rapper favorito do seu rapper favorito”, sabe que boa parte de seu status e da mística em torno da sua música é a escassez, e então demorou anos para divulgar seu próximo lançamento, que finalmente está aqui e é seu primeiro trabalho a estrear como o mais ouvido da semana nos EUA.
Dois grandes produtores e dois protagonistas
Para suceder um clássico, Pusha chamou os dois produtores responsáveis por seus maiores sucessos, dividindo o protagonismo meio a meio: Kanye West, que produziu seu disco anterior, e Pharrell Williams, que produziu grande parte de seus aclamados trabalhos enquanto metade do duo Clipse, que fazia com seu irmão, Malice. Ao ter dois dos maiores produtores da história ao seu lado, T aproveita para mostrar que ainda é capaz de ser o melhor MC quando inspirado, e isso se prova em diversos momentos de It’s Almost Dry.
Pharrell traz seu pacote mais conhecido: beats poderosos que vão do boombap ao trap, com 808s batendo forte e guiando mais o rapper, que em entrevista a Jimmy Fallon disse que é “muito mais chato, muito mais difícil trabalhar com Pharrell”. Alguns dos melhores sons, no entanto, saem dessa meticulosidade, como a intro que já rouba a cena logo de cara, “Brambleton”. Nesta faixa, os bumbos estão aparecendo o tempo todo na cara do ouvinte, junto dos sintetizadores que se repetem ao longo de toda a faixa e, em cima disso, Pusha rima com um flow extremamente dinâmico e um refrão que fica na cabeça de qualquer um. Outros grandes beats de Pharrell são a mais contida “Neck & Wrist” ou “Let The Smokers Shine The Coups”, onde ele usa o espaço por trás dos instrumentos principais para adicionar detalhes que elevam o nível das tracks.
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Para não dizer que tudo são rosas, o pacote de baterias de Pharrell é o mesmo em quase todos os beats, fazendo com que às vezes seja cansativo ver os mesmos 808s ao longo de todo o disco. “Call My Bluff” também é um beat que soa pouco trabalhado, e a falta de energia do MC não ajuda, sendo essa facilmente a pior canção do disco.
O lado Kanye West
Do outro lado, Kanye trabalha da sua forma mais clássica, produzindo beats que giram em torno dos samples mais inesperados, mas que dão o espaço para que Pusha atue livremente. Um grande exemplo é “Dreamin’ Of The Past”, que traz um sample incrivelmente recortado de “Jealous Guy”, de John Lennon, mas que aqui aparece na voz de Donny Hathaway. A construção do instrumental é incrível e dinâmica, usando os elementos da própria música para substituir a bateria, com baixo e piano dando a cadência para Pusha rimar com uma potência e barras incríveis. Outro destaque é “I Pray For You”, música que fecha o álbum, na qual Kanye usa samples de vocais de Labirinth e órgãos que lembram a segunda metade de seu disco recente, Donda, para criar todo um clima de igreja para as rimas positivas e vitoriosas de Terrence.
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Na disputa entre ambos, certamente o nível dos instrumentais é alto, como foi por todas suas carreiras. É muito bom ver que Kanye deu algo diferente de Daytona a Pusha, e Pharrell continua um produtor de elite como tem sido há mais de 20 anos. Numa batalha, a vitória seria, por pouco, para Kanye, por não ter nenhum beat que deixe a desejar (apesar de “Hear Me Clearly” não ser exatamente algo muito brilhante). Também ganha por sair mais da caixinha do que Pharrell. O grande vencedor, sem dúvida, é o ouvinte, que recebe duas facetas da genialidade.
A caneta afiada de Pusha-T
Analisando o lado do dono do disco, temos barras para dias. Tendo uma vida de traficante na sua história, mais de um terço das linhas do disco falam sobre cocaína e tráfico, um tema que não é o mais fácil de se relacionar, mas a habilidade demonstrada para passar uma história, uma punchline ou apenas uma referência escondida é de cair o queixo (o homem conseguiu enfiar uma referência à cocaína até numa música para uma propaganda de fast food).
“Diet Coke”, o primeiro single do álbum, é uma amostra enorme dessa habilidade, onde o carisma e técnica surpreendem qualquer um que esteja prestando atenção às letras. Honestamente, é bem divertido ouvir o disco com o Genius aberto para sacar todas as referências.
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Missy was our only misdemeanor / Nike box hold a hundred thou’ with no insoles, uh / The crack era was such a Black era / How many still standin’ reflectin’ in that mirror? / Lucky me
“Just So You Remember”, a única faixa da primeira metade do disco ainda não citada, é outro belo momento de destaque. A faixa tem Pusha-T lembrando o jogo e o público de quem ele é: apesar de ser um pai de família, mais longe da vida perigosa, ele ainda é alguém com contatos e a mente para voltar a ser uma ameaça. O sample forma um beat mais calmo sobre o qual o Pusha rima diversas linhas de destaque, como ‘The book of blow, just know I’m the Genesis’.
A segunda metade do disco tem uma certa queda de nível, onde as coisas nem sempre se encaixam tão bem. O maior exemplo disso é “Scrape It Off”, onde Pusha traz dois jovens artistas, Lil Uzi Vert e Don Toliver, para um trap onde eles já estão completamente em casa — T é quem soa deslocado.
Os convidados oscilam
Os feats também aparecem com potencial de elevar ou reduzir o nível de uma faixa. Se Kanye faz muito bonito na produção, seus dois versos acabam sendo adições desnecessárias em tracks que já poderiam estar completas.
“Rock N Roll” ainda tem Kid Cudi em um excelente refrão, que chama atenção por sua mixagem abafada que acaba dando certo pela energia que casa bem com o beat e com Pusha. No lado positivo, Jay-Z trabalha com maestria em “Neck & Wrist”, onde ele e Pusha, cada um em seu verso, entregam ótimas linhas, usam a mesma alteração no vocal para criar um clima diferente, e Hov inclusive entrega uma frase incrível de quádruplo sentido referenciando o tráfico, a série Ozark e a venda da sua antiga empresa, Tidal, para o fundador do Twitter (“I blew bird money, y’all talkin’ Twitter feed”)
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Outro grande feat é o que fecha o álbum, do irmão de Pusha, Malice. Ele aparece com ótimas barras que casam bem com a temática do verso de Pusha, onde os dois falam sobre todo o sucesso que conseguiram juntos. A sonoridade gospel de “I Pray For You” também casa bem com Malice, que fala sobre a vida que deixou para trás com belos one-liners.
No final, It’s Almost Dry não supera Daytona, mas nem precisava. Este era um clássico feito por capturar uma tempestade momentânea e por fatores que habitavam em volta do disco.
O novo trabalho de Pusha cumpre sua principal função: assegurar que Pusha, mesmo numa idade onde a maioria dos MCs não mantém um nível tão alto, ainda está entre os melhores do jogo. É um dos poucos a seguir rimando por cima de uma variedade de beats sendo bom o suficiente para ser o favorito de qualquer pessoa no planeta. Inclusive do seu favorito.