Entrevistas

Com coragem para amar, Brisa Flow lança "Janequeo", seu terceiro disco

Em entrevista ao TMDQA!, a artista Brisa Flow falou sobre motivações, origens e canções do novo disco de estúdio, "Janequeo".

Brisa Flow
Foto por Camila Sánchez

Abya Yala, da língua do povo Kuna, significa “Terra Madura” ou “Terra Viva”. Esta expressão é usada por povos originários para se referir ao nosso continente, sem dar moral para as fronteiras estabelecidas pelos colonizadores.

Com este sentimento, Brisa Flow traz Janequeo, seu terceiro álbum repleto de sentimento, que ela também mostrou em conversa com o TMDQA!

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Janequeo, que dá nome ao disco, foi uma guerreira mapuche que liderou seu povo numa guerra para retomar seu território, que estava sendo invadido pelos espanhóis e também para vingar seu marido, Huepotaén, assassinado pelos mesmos. E isso foi a inspiração para Brisa: “Meu disco é sobre amor e coragem. Pra amar e pra fazer arte em Abya Yala é preciso coragem.”

Ainda sobre o disco, a intenção dele é bem clara: contar histórias dos povos originários sem precisar falar sempre sobre dor.

Esse disco é sobre narrativas que não sejam só violência e empobrecimento que, infelizmente, é o que nos rodeia. É uma obra para que consigamos ter um pouco de esperança no afeto e na força que nós temos. Acredito que as narrativas das guerreiras não foram contadas justamente para nos enfraquecer, para que nós não tivéssemos referências. Então é um álbum para que tenhamos referência de amor, de coragem e de autonomia, também dentro da indústria musical.

Em Janequeo, me atrevi a buscar sonoridades que muitas vezes foram consideradas complexas de se misturar. Eu sou conhecida por fazer música  tecendo meus versos com outras musicalidades e sempre vou trazendo outras vertentes da música eletrônica. Esse disco traz rap com reggaeton, drill, trap, r&b, e house e feats com pessoas que venho desenvolvendo trabalhos e compartilhando vivências.

As vivências compartilhadas por Brisa Flow são, de fato, a melhor coisa que a artista traz para seus sons da sua formação musical. Um caso raro de rapper com graduação formal em música, a artista diz que passou “muita raiva e tristeza a cada semestre” no tempo que passou na faculdade, por mais que valorize o ingresso via ProUni.

“Eu entrei na faculdade pra colocar na partitura as minhas ideias de produção e aprender mais coisas que facilitassem o processo de composição,” lembra a MC. O que realmente facilitou seu processo, no entanto, não foi ensino, e sim suas parcerias.

Uma coisa legal que veio desses tempos de faculdade é a amizade linda que criei com Victor Prado, trompista de jazz que curte improvisação como eu. Já tocamos muito juntos e ele toca trompa na faixa ‘Camburi’. Alvin, que fez o beat de ‘Cerquita’ e outras faixas, também foi uma amizade que começou também na faculdade de música. Acho que o que mais reverbera nesse disco são as conexões que fiz durante o curso.

As amizades a ajudaram a se manter no foco, já que o aprendizado entregue ali não era realmente satisfatório:

O ensino de música no Brasil é muito eurocêntrico e muitas vezes não considera Rap como música, muito menos estuda ou pesquisa música de povos originários deste continente. Tive que organizar a minha raiva para seguir no propósito inicial de continuar compondo música e me tornar uma pesquisadora e educadora musical. Um pouco dessa raiva está na faixa ‘Sol de Outono’.

Apesar disso, além das experiências negativas, Brisa Flow vê seus últimos anos com contribuição importante para chegar até aqui.

Quando gravei meu primeiro disco, Newen, eu não tinha ideia de como a indústria musical funcionava. Eu já sentia a falta de abertura pra minha música, mas eu também não tinha planos de estourar com uma faixa e ser esquecida no dia seguinte. Eu queria ter uma obra massa, como as pessoas que eu admiro. O machismo e o racismo, assim como as faltas de grana, muitas vezes vão desestimulando a gente, ainda mais se tratando de artistes empobrecidos.

Todos sabemos que shows são parte fundamental para a música, e com a MC não é diferente: na verdade ela tira dos shows a energia: “eu acho que show tem
muita energia envolvida. Eu amo as apresentações do Naná Vasconcelos, aí fui ver a
discografia e vi que uma caminhada longa na música exige amor e dedicação, tantos nos
shows quanto nos discos. Eu sempre produzi disco enquanto a agenda de show segue. São
aquecimentos. Meu segundo disco, Selvagem Como O Vento, me trouxe a experiência de
cantar em vários lugares do Brasil e me possibilitou cantar melhor a cada show e nas faixas. Nesse terceiro disco, eu sinto que estou cantando muito melhor com letras, são mais maduras e tem muitos sonhos que ao meu ver são contatos com outras dimensões e com a espiritualidade. Minha conexão com os sonhos se intensificou na pandemia e mudou
também a minha forma de fazer música.”

A criação de Brisa Flow traz as conexões

 

Logo de cara você percebe que este não é um álbum comum. As duas primeiras faixas, “Cerquita” e “Besitos” trazem o espanhol como língua de destaque, e na sequência “Making Luv” traz o inglês no refrão, além de espaço frequente para o mapudungun, o que não é apenas uma escolha comercial, e sim reflexo da criação da artista.

Eu cresci com meus pais falando espanhol em casa. Entrei na escola pra aprender português. E o espanhol, assim como o português, falados aqui em Abya Yala tem muitas palavras de idiomas originários juntas. Meu disco reflete essa transculturalidade em que cresci: espanhol com mapudungun e português e um pouco do inglês. A Mariana, produtora executiva do selo Pantera Cartel, se juntou com a distribuidora Ingrooves pra que o mapudungun fosse incluído como língua dentro das plataformas. É um respeito e uma continuidade ao caminho de meus ancestrais. Estamos caminhando para uma retomada das línguas originárias em nosso continente. Para um povo a língua é a continuidade de sua cultura e conhecimento.

Essa criação da artista, inclusive, reflete na sonoridade: este disco passa por diversas, do R&b ao house, sempre tendo o rap como lar. A primeira e a última, segundo a artista, ainda podem ser tidas como as canções mais criativas do trabalho.

Como eu disse na pergunta anterior, os sonhos me levam a experimentar letras e imaginar mundos. E meu mundo interno e externo se relacionam o tempo todo quando faço música. Eu amo música eletrônica, tenho muitas amigas profissionais na área, troco muito sobre produção com elas e ao mesmo tempo tenho muito de música originária dos andes dentro de mim, que fazem parte da minha infância. Eu sou uma mistura desses sons com rap. Acho que a primeira faixa, ‘Cerquita’, e a última, ‘Originária’, são as mais criativas por relacionarem esses mundos que transitam e me fazerem ser quem sou.

De bônus, indicações

Brisa Flow sabe que são raros os artistas indígenas que ganham algum espaço no rap e na música atual. Portanto, ela aproveita para deixar alguns nomes que o leitor pode procurar sem se decepcionar:

Gosto do trabalho do Mirindju Glowers Guarani Mbya do Jaraguá. A MC Anaranda Guarani Kayowa tbm é braba presença de palco foda. Respeito e gosto muito da caminhada do Bro MCs, do Txepo Suruí e da Aby Llanque do coletivo Kantupac que inclusive está no meu disco e estou muito feliz com nosso feat. ‘Marrona Libre’

A Aby Llanque é multiartista também assim como o Ian Wapichana que também tenho a felicidade de ter feat no disco e clipes e tocar juntos. A maioria desses artistas que citei tocam, cantam, fazem beats e gravam seus próprios clipes. Precisam ser mais valorizados.

Assim como Brisa de la Cordillera, que também merece toda a valorização possível. Ouça Janequeo em todas as plataformas de streaming.

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