Não é de hoje que Filipe Ret é um dos nomes mais respeitados do Rap nacional. Esse respeito é mútuo com diversos dos companheiros de cena do cara e vem à tona no ambicioso LUME, novo projeto do rapper que chegou recentemente ao Spotify com muita pompa.
Isso porque, pela segunda vez na história da música brasileira, um artista do nosso país foi escolhido para disponibilizar um Enhanced Album na plataforma de streaming, oferecendo uma experiência inédita de imersão ao longo da audição com vídeos exclusivos, comentários e curiosidades sobre as faixas. Além de Ret, o único outro nome do Brasil a ter essa honra foi Luísa Sonza, e internacionalmente estão artistas como The Beatles e Lady Gaga.
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Com o tema “no escuro, toda luz afronta”, Filipe tenta unir mundos que soam tão diferentes mas, ao mesmo tempo, são tão próximos musicalmente ao trazer a sonoridade do Trap ressignificada, incorporando elementos do Funk com maestria tanto na produção quanto nas participações, que vão de MC Maneirinho a MC Poze do Rodo, passando, claro, por Anitta.
Batemos um papo com o artista para entender de onde veio a inspiração para esse trabalho e, em meio a análises e ótimas histórias, a conversa serve para acompanhar a obra e dar mais sentido a ela. Confira na íntegra abaixo!
TMDQA! Entrevista Filipe Ret
TMDQA!: Oi, Ret! Obrigado pelo tempo para falar conosco mais uma vez. Queria começar com uma percepção que tive. Senti que esse disco é o seu trabalho mais gringo e mais nacional ao mesmo tempo, porque tem muita coisa gringa — do Trap e tudo mais — mas também muita coisa do Brasil, como o Funk e todos esses elementos que você traz. Como foi para você unir esses mundos tão diferentes e mostrar que eles são mais próximos do que muita gente pensa?
Filipe Ret: Excelente análise, irmão. É isso mesmo. Eu acho que ele é o mais internacional e o mais brasileiro. Eu busquei muito isso na musicalidade, de botar o nacional e ao mesmo tempo ser o Trap. A gente [aqui no Brasil] tem feito um Trap muito honesto, sem dever nada por aí. A cena carioca está gigante e com muitos selos. É um movimento de crescimento que a gente nunca teve, muito fomentador.
O Funk do Rio tem algo na sonoridade que combina muito com o Trap. Eu confesso, modéstia à parte, que eu enxerguei isso há muitos anos, que essa junção tinha tudo a ver. Quando o Trap surgiu, eu já senti que isso ia tomar uma proporção, ia pegar as favelas e tal. Eu sentia isso no Boombap, então eu pensei, “Agora que esses mundos vão conversar muito porque as melodias são muito parecidas”. Quando ouço Young Thug e Drake, eu sinto que as melodias têm o DNA do nosso Funk antigo. Então, é isso. Sua leitura foi excelente. [O álbum] é brasileiro demais e é Trap demais.
TMDQA!: Outro ponto que definitivamente dá essa cara gringa para o trabalho é o fato de você ter essa parceria com o Spotify agora. Você, inclusive, é o segundo artista a receber essa moral. Como foi esse processo de idealizar e realizar essa parte do projeto?
Filipe Ret: Eu recebi esse convite deles e fiquei amarradão porque eu só tinha visto a Luísa Sonza fazer. Porra, me senti a Luísa Sonza do rap [risos]. Falei, “Porra, que ótimo, vamos pra cima”, provavelmente isso vai fazer a distribuição ser maior nas playlists. [O trabalho] vai chegar em mais gente e vai ser incrível, extraordinário. Então, só vi com bons olhos e espero que todo mundo goste. E senti isso também, né, essa coisa… esse abraço internacional, vamos dizer assim, do nosso Trap.
TMDQA!: Você diz que o título, LUME, vem da luz interior dos crias e isso fica evidente quando a gente pega os feats do disco. Como você mesmo falou, tem muita gente boa fazendo música pelo país. Como foi escolher essas pessoas porque claramente todos os convidados foram escolhidos a dedo e trazer ao mesmo tempo o Caio Luccas que é uma revelação e pessoas gigantes, como a Anitta e o Hariel?
Filipe Ret: Incrível. A gente vive um momento muito incrível. A música tem momentos baixos e altos, e na nossa cultura hoje a gente vive a mais alta de todas. Então, a gente tem que aproveitar isso, tem que fazer isso ser fomentado. Eu acho o Caio Luccas um moleque incrível melodicamente, a voz dele foi feita para o autotune. A voz dele, metalizada, é incrível como a voz dele soa gostosa no autotune. E o Kayuá também, o moleque amassou; foi um dos que mais amassou no feat.
E eu escrevi a parte da Anitta mas ela mudou algumas linhas, ela interpretou do jeito dela, agressiva. Eu queria que ela viesse mais agressiva, trazer ela pra isso também. Fez parte da estratégia da parada botar a Anitta, e botar ela cantando Trap para ela também fazer esse bolo crescer. Tem o Poze ali também dando essa chancela do funk. Todos são funkeiros, a maioria, tirando o Caio Luccas e o Kayuá, que são mais trappers… o Hariel vem do Funk, Poze, Anitta, Maneirinho, o Cabelinho… então, a maioria dos feats, 5 feats dos 7, são do Funk. Acho que isso deu essa sensação de ser mais “BR” e ser Trap.
Porque eles já são trappers se você for ver. Hariel já é, Maneirinho já é, o Cabelinho então nem se fala, o Poze, nem se fala, já é do Trap. A Anitta pode ser, ela tem 100% de porta aberta pra ser do Trap. O Trap não tem aquela coisa de “Ih, mano, o que você está fazendo aqui? Você não é da nossa…”, sabe?. Não, o Trap aceita geral, é aberto. Então, ver a Anitta também trazendo essa vibe, essa mistura toda aí, eu curti muito, cara. Acho que está sendo um empurrão na cena como um todo.
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TMDQA!: Você falou do Maneirinho e do Cabelinho e eu acho que esse foi um dos feats de destaque por eles estarem juntos, até por conta de tudo o que eles passaram recentemente. Eu imagino que tenha sido algo intencional da sua parte colocar os dois juntos depois de todas as polêmicas, deles terem sido intimados pela polícia por “apologia ao crime” quando estavam só narrando a realidade na letra de uma música. Ao mesmo tempo, você tem nessa música, “7 Meiota”, justamente uma mensagem muito forte logo nos primeiros segundos. Como foi colocar eles juntos de novo após tudo isso?
Filipe Ret: Você me lembrou agora desse episódio com a justiça, eu nem lembrava! Foi zero proposital, mas legal você ter lembrado disso, cara. Bem legal. Pra você ver: foi uma comunhão de energias, porque era uma música “proibidão”, né, que chamam, e a gente falou, “Pô, vamos pegar um cria pra entrar”. A gente pensou no Borges, aí depois falou não, — era a cara do Borges também — mas pensamos não, vamos pegar o Cabelinho.
Cabelinho lançou maior discão agora, a gente ficou amarradão na vibe e tal, e então a gente pensou, “Vamos trazer o Cabelinho”. Não foi exatamente proposital, mas interessante essa tua pontuação aí. Cara, é muito sobre isso. O Rap carioca tem proibidão desde sempre, é muito cultural. Então, esse é o “proibidão” do disco. Muitas vezes o ponto de vista tá no lugar do bandido. É o que chamam de proibidão, é o que não aceitam, mas é uma crônica, tá ligado? Eu acho fantástico por isso e, como você bem falou, já tem essa visão ali logo no início, do cara mandando o papo.
Ela tem esse impacto aí. E isso muito graças ao Maneirinho! O Maneirinho veio com a música pronta já, com os beats, essa parte e o refrão dele que é o que mais brilha. Esse disco tem vários momentos, tem várias músicas em que quem mais brilha não sou eu, são os feats mesmo. Anitta é um caso clássico, o Kayuá mandou muito bem na parte dele, o Caio Luccas, a parte do Maneirinho também… Tipo assim, o trem andou, eu nem fiquei ali de “mais importante” não, eu botei pra andar mesmo.
TMDQA!: Dá mesmo essa impressão de que você assume a função de um MC, por assim dizer, ao deixar a galera fazer o deles e depois aparece. Aproveitando esse gancho, o que aconteceu com o Cabelinho e Maneirinho mostra o preconceito que ainda existe com o Funk. A gente tem visto o Rap, de certa forma, superando essa barreira. Artistas como você e vários outros já conseguiram chegar no som radiofônico, algo que a galera aceita e ouve de boa, e hoje você dá espaço para essa galera do Funk que ainda é vista de modo muito marginalizado chegar nesse mesmo patamar. A Anitta, óbvio, é o exemplo perfeito disso, uma pessoa que conseguiu chegar nesse lugar apesar do preconceito envolvido no Funk. Como você enxerga isso, esse preconceito que ainda existe?
Filipe Ret: Eu acho que o Funk tem a natureza de uma dinâmica tão intensa, tão intensa que às vezes isso prejudica o próprio artista, porque sobe muito rápido, cai muito rápido. Já o Trap é meio que uma ilha que os funkeiros estão em busca, até mesmo para trazer uma consistência para o trabalho deles. Porque o Funk é muito do single, e o Trap não.
É como se o Trap fosse o lado mais musical, de fato, do Funk. Então, os funkeiros estão aprendendo a ter uma cultura um pouco mais de Rap mesmo com o Trap, que é o lance do disco, do conceito, da lírica, da psicologia do jogo, do Rap. É uma coisa que não é da essência do Funk, é mais da essência do Rap e que está se encontrando no Trap.
Eu sinto que eles só tem a crescer. Eu quando falei com o Cabelinho antes dele lançar o disco dele, ele estava dando os primeiros passos no Trap, eu falei, “Cabelinho, agora é Trap. É 100% Trap, irmão”. Sacou? Não tenho nada contra o Funk, pelo amor de Deus, ele continua fazendo o Funk dele, mas ele tem que ter uma obra, sacou? Do Trap. O Trap permite mais, vamos dizer assim, amarrar melhor a obra e isso valoriza mais os moleques. Como eles vêm do funk que é mais solto, que tem a melodia solta, eles podem brincar no Trap. É um lindo momento de junção disso tudo, tá ligado?
TMDQA!: Pode crer! E novamente um ótimo exemplo disso é a Anitta, né? Que tem um papel fundamental nisso, e não dá para não falar desse feat dela. Como você falou, tem um Rap, um Trap ali, algo totalmente diferente. Como foi trazer a participação dela para o disco? E a gente viu que a reação dela foi de muita empolgação e até vazou aquele trecho e você ficou tipo, ‘Meu Deus, o que eu faço?’. Como foi trabalhar com ela e mostrar esse lado diferente dela?
Filipe Ret: Foi muito bacana, cara. Ela é incrível, realmente a cabeça dela é uma cabeça que você sente que está sempre um pouco mais à frente. Ela teve todo o cuidado na hora de gravar, a gente regravou, e eu pedindo… Ela falou, né, quando a gente foi gravar o clipe… Só tem um clipe, que é o clipe com ela, e ela falou, “Você me ensinou Rap, agora eu vou te ensinar de vídeo”. E ela dá aula de vídeo. Dá aula legal! Ela conhece tudo, os ângulos, as câmeras, tudo.
Ela organizou o clipe todo, ela levantou o clipe inteiro em três dias fazendo algumas ligações. [barulho de telefonema] Eu só paguei, se ligou? E deixei rolar porque eu vi que era melhor ela produzir tudo, no tempo dela; pra não fazer ela perder tempo nem eu perder tempo e tudo acontecer da melhor forma. É o famoso ela entregou tudo, tá ligado? [risos] Ela foi a mais participativa do disco. Também porque só ela teve clipe, mas eu imagino que se tivesse clipe com o Poze, com o Maneirinho, ninguém iria produzir igual ela produziu. [risos] Entendeu?
Ela é diferenciada mesmo. E tomou para ela a parada. Foi um pouco estratégico, óbvio, desde que eu escrevi para ela, eu pensei, “Ela precisa ser a pica da faixa”. Então eu abaixei a minha bola ali, cantei levinho, cantei suave, o mais suave possível, pra ela ser a agressiva. Eu não podia ser agressivo na faixa, se não não ia dar uma química de relevância pra ela, se ligou? Então isso foi planejado e deu certo, porque pegou ela pegou pra ela mesmo a música e foi ótimo pra mim, pra nós. [risos]
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TMDQA!: Para fechar a entrevista, assim como o álbum termina, quero falar sobre “Todo Poder”, que para mim tem uma das melhores letras que eu ouvi nos últimos tempos e que me deixou muito impactado. Acho que a frase ‘O rap ainda é dedo na ferida’ foi a que mais me marcou. Eu lembro muito do exemplo do Djonga que recentemente falou ‘Se você está aqui me ouvindo e vai votar em Bolsonaro, o que você ouviu?’. Às vezes, o Rap é corrompido por muita gente. É daí que veio sua inspiração? Queria que você falasse um pouco mais sobre essa.
Filipe Ret: Essa letra é a mais antiga do disco. Ela foi criada um ou dois dias depois do João Rock [festival de música em Ribeirão Preto] que eu participei, ou seja, tem bastante tempo, pelo menos uns dois anos. Teve um momento que eu fiquei no camarim com Emicida, Mano Brown, Djonga, Rael, Rincon [Sapiência], BK’… Posso estar esquecendo de alguém, mas só daí tu já vê.
E eu fiquei naquele meio ali, trocando ideias com eles e absorvendo aquela energia. Eu saí de lá e no dia seguinte eu estava ainda com aquela energia e escrevi essa letra, muito inspirado também na forma que o Djonga escreve, mas é uma inspiração dos maiores elementos do Rap nacional. Então, eu estava realmente com aquela energia quando eu compus de fato.
TMDQA!: É uma mensagem de contestação mesmo, né? Do papel do Rap…
Filipe Ret: Sim, sim, sim, mano. Ah, mano, eu acho que assim, é entretenimento, hoje em dia muito mais do que qualquer outra coisa, acho maneiro até ser entretenimento, pra cacete. Mas cara, é maneiríssimo você colocar uma música crítica. Tem muito o seu valor. Eu valorizo muito, mas também não lançaria um disco inteiro crítico. Então, eu acho que a música ficou ali no lugar dela fechando, pra tipo, “Mano, não vamos esquecer que tem outras coisas acontecendo”, se ligou?
TMDQA!: Não vamos esquecer que o poder é do povo, né? Como você mesmo diz.
Filipe Ret: É, mano. Tem outras coisas acontecendo e a gente tem que pensar. É ano de eleição, ano de Copa do Mundo… Porra, tanta coisa acontecendo. Ainda bem que eu estou lançando o disco agora, imagina quem vai lançar disco daqui a pouco? Vai ficar em cima de Copa, eleição… Vai ser uma maluquice.
TMDQA!: Pode crer! Ret, obrigado demais pelo papo. Foi ótimo!
Filipe Ret: Muito bom, Felipe! Obrigado demais, perguntas excelentes, análises extraordinárias. Brigadão mesmo, irmão.