Por Izadora S. Pimenta
Eu lembro que quando o Strokes lançou “Under Cover of Darkness” a gente cantava a frase “everybody is singing the same song for 10 years” e lembrava de quando a banda novaiorquina lançou seu primeiro álbum, Is This It?, um marco para o indie rock e influência para milhões de outras coisas que nós iríamos escutar depois.
Passam-se outros 11 anos e, quando essa frase sai da voz de um debochado Julian Casablancas, ela ainda quer dizer muita coisa. Para mim, em especial, ela me conta que, por mais que tanta coisa tenha mudado desde então, as músicas que eu gosto seguem vivas, atemporais. E acredito que esse é um bom resumo da minha primeira experiência no Primavera Sound em Barcelona.
Manter a música viva tem uma importância ainda mais especial nesses últimos anos. Para muitos, como eu, esse foi um dos primeiros festivais em tempos. Ainda é estranho estar no meio de uma multidão olhando para um palco e ouvindo tudo em decibéis que não são mais de costume.
Por um momento, eu também fiquei um pouco irritada comigo mesma porque meus pés já não são mais os mesmos da época em que Angles foi lançado e percorrer distâncias parece uma tarefa muito mais complicada, bem como ter energia para ficar aguardando as bandas que eu gosto de um bom lugar. Ao mesmo tempo em que eu vejo meus ídolos evoluindo no palco, muita coisa também passou para mim. Os sonhos, no entanto, continuam.
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No passado, ir a um festival na Europa parecia um sonho distante. Eu escrevia e escrevia sobre bandas em outro site e apenas imaginava quando chegaria o dia em que eu poderia vivenciar muitas das coisas que eu falava sobre. Mais de dez anos depois e eu passei um bom tempo sem escrever sobre música, fingindo por boa parte dos meus dias que esse passado nunca aconteceu e escrevendo minha tese de doutorado em uma cidade pequena na Alemanha.
Quando um amigo me falou sobre a ideia de comprar os ingressos para o Primavera Sound no ano passado, de primeira, a ideia me pareceu um pouco utópica, mas aceitei no impulso. Entramos na fila caótica assim que a venda dos ingressos abriu e conseguimos garantir as entradas que me levaram para a edição de 2022.
Nós escolhemos a segunda semana de shows – embora tenha muitas e muitas outras bandas da primeira (The National! Pavement!) que eu gostaria de ter visto também. Porém, esse festival não é apenas sobre ver seus favoritos.
Para começar, ele acontece em uma das cidades mais bonitas e vivas da Europa. A semana de Primavera Sound teve uma Barcelona ensolarada (até demais) e, vivenciando a cidade, é possível entender o que faz ele ser tão especial para muitos. A atmosfera que faz você fazer a Lorde e cantar “I hate the winter, can‘t stand the cold” como em Solar Power é responsável por todo o contorno da experiência. Tanto que me deu um pouco de pavor ao constatar o Tyler, the Creator de capuz e casaco assim que adentrou o palco.
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Um céu de brigadeiro, praias, museus, a arquitetura de Gaudí, as ruas que você dobra por acaso e acaba desejando morar ali por toda a vida… O aquecimento para as horas de música que a gente está prestes a enfrentar começa no que Barcelona oferece.
O Parc del Fòrum, local onde o festival é realizado, em Sant Adrià de Besòs, é um pouco mais afastado do centro, então é como adentrar outro local secreto que os catalães querem mostrar pra gente. Por detrás de alguns palcos, é possível ver o mar em um tom de azul perfeito. E todas aquelas coisas que eu só escrevi sobre no passado se tornam reais diante dos meus olhos.
O festival, em resumo
Como o Julian Casablancas (que não parou de falar durante a apresentação do Strokes – fator que fez a banda deixar duas músicas de fora) disse, “esse festival tem tanta banda que se eu fosse a um festival desses eu nunca mais escutaria música na minha vida!”.
Calma, não é para tanto. Mas é fato que o sem-fim de opções de bandas do Primavera Sound e a disposição dos palcos que, tirando os principais, não são muito próximos entre si, faz com que tenhamos que fazer escolhas — muitas vezes, dolorosas — para aproveitar ao máximo. Perdi muitos dos shows que eu gostaria de ver, como o da Courtney Barnett, que tocaria mais distante e me faria perder o final da Brittany Howard e o começo da Lorde, por exemplo. Então, na maioria do tempo, fiquei entre os principais, Estrella Damm e Pull and Bear, que eram um ao lado do outro, salvo algumas exceções ao longo do dia.
A seguir, um pequeno resumo das apresentações que eu pude assistir e os destaques do festival diante do olhar que eu pude ter.
Dia 9
No primeiro dia, cheguei no meio do show do El Mató a Un Policia Motorizado, que tocava no Estrella Damm. Logo depois, Amyl and the Sniffers, que eu não conhecia antes do festival, tocou no Pull and Bear. Para o El Mató, havia um público dedicado cantando as músicas, mas o tempo ensolarado e a vibe de início de festival fez com que muita gente assistisse à apresentação sentada. No palco vizinho, entretanto, a atmosfera já era outra: a banda australiana conseguiu levantar o público, que esperava por Dua Lipa. A vocalista Amy Taylor segurou a bronca de frontgirl e usou até a passarela construída especialmente para a apresentação da diva pop.
Depois veio a apresentação fantástica do Khruangbin. Eu imaginava que essa era uma banda que eu gostaria de ver em um local fechado, mas eles tomaram conta do festival. Quando todo o público já parecia estar completamente envolvido, eles apareceram com mais uma surpresa: a participação de Mos Def, que entrou para uma versão inesquecível de “María También”. Com um sample de “Apache” incluso! Pra mim, esse foi, em disparada, um dos maiores momentos.
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Os dois palcos seguiram com Interpol e Gorillaz. Como eu já tinha visto um show dos novaiorquinos antes e também queria conferir outras coisas, assisti a um pouco do Slowdive no palco Cupra, que é um pouco mais afastado, mas tinha uma escadaria em que era possível assistir às apresentações sentada. Tentei voltar para o mesmo lugar onde estava para ver o Gorillaz, mas foi um pouco impossível — então acabei vendo tanto o Gorillaz quanto a Dua Lipa do fundo.
A estrutura quanto a isso é bem interessante. Conseguia ver o que estava acontecendo nos palcos e, além dos telões principais (três distribuídos pelos dois palcos), havia um telão mais atrás para acompanhar as apresentações. O show do Gorillaz, que também contou com o Mos Def, não fugiu muito do esperado para mim.
Dua Lipa, por sua vez, apresentou um espetáculo em palco, mas que não chegou a me emocionar (o cancelamento vem), embora as músicas sejam contagiantes (estou até hoje com “Cool” na cabeça) e as coreografias sejam dignas do estágio em que a artista está atualmente. E não vamos negar que Future Nostalgia foi a trilha sonora do lockdown pra muita gente.
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Agora, vamos falar de Tyler, the Creator, também incluso em um dos meus melhores momentos do Primavera Sound. Eu não conseguia desgrudar o olho de cada trejeito, de cada dança, de cada cenário. Foi como assistir a uma peça de teatro. O carisma e a entrega do rapper foram de arrebatar qualquer coração desavisado. E eu pude ver tudo isso de muito perto quando ele usou a passarela da Dua Lipa para chegar próximo ao público.
Dia 10
Meu dia 10 foi um pouco mais curtinho. Chegamos mais tarde, a tempo, portanto, de assistir à apresentação da Brittany Howard. Já tinha visto ela se apresentar com o Alabama Shakes, mas foi interessante observar o quanto ela se solta muito mais no palco em seu ato solo. Ela se diverte enquanto toca e essa atmosfera também é passada pelo público, que se encanta com sua voz arrebatadora.
Logo depois dela, veio a Lorde, que fez um show digno de headliner mesmo sem estar nessa posição. Toda a aura Solar Power invadiu o festival em um momento perfeito, com a chegada do verão europeu ainda permitindo um céu azul em meio às luzes que vinham do palco. Vi ela se apresentar no Popload em 2018 e a diferença do show é gritante. Dessa vez, ela estava solta, aberta… terapizada! E o bom é sentir um pouco dessa irradiação para alegrar o dia da gente.
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Então veio o Strokes. Vamos dizer que eles fizeram uma boa apresentação? Suponho que não. O Julian, que revelou ter sido ele o caso de COVID-19 na banda que fez a performance da primeira semana ser cancelada, estava falando demais entre todas as músicas, com inúmeras piadas duvidosas e informações que ninguém gostaria de saber (como ele ser 1% da Sardenha em seu teste de DNA).
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Porém, esse foi o único show que me levou às lágrimas. Foi ridículo, mas eu entendi. Há algo de catártico nas músicas deles que nunca morre. Era só sentir como a plateia estava desde as primeiras notas de “Hard to Explain” para entender isso. Essa banda pode se perder em si mesma, inúmeras vezes, mas ela nunca vai ser esquecida.
Dia 11
Comecei o último dia de festival bem cedo, entrando logo após a abertura dos portões. O motivo: iria me aventurar fora dos palcos principais para assistir ao show do Pond. A banda divide um integrante, Jay Watson, com o Tame Impala (no passado, até o Kevin Parker fez parte do Pond) e tocaria logo no início à beira-mar no palco Plenitude.
Foi bem diferente do que eu estava imaginando. O vocalista Nick Albrook (também ex-integrante de palco do Tame Impala) simplesmente não para. Ele dança, rebola, salta entre uma caixa de som e outra, se aproxima do público… Uma apresentação muito diferente das outras que havia visto no festival até então, já que nos palcos principais a distância das bandas faz parte do protocolo.
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Logo depois, nos palcos principais, a sequência começou com Jorja Smith, que estava completando 25 anos naquele sábado. As letras e a voz da Jorja me pegam muito, embora a experiência estivesse um pouco desconfortável — já me posicionava em um bom lugar para o Tame Impala e havia muita gente querendo garantir o mesmo em simultâneo.
Com isso, também não tive uma boa experiência assistindo ao Yeah Yeah Yeahs no palco vizinho — pouco vi da banda fora do telão, mas os hits principais me fizeram viajar tanto quanto em algumas músicas do Strokes para um passado distante.
Agora, o Tame Impala. Sem dúvidas, o melhor show desse festival. Minha última apresentação deles tinha sido lá em 2012, no Cine Joia. Lembro que foi uma boa apresentação, mas que não tinha me deixado uma sensação de inesquecível. Dessa vez, ter me posicionado em um bom lugar também me deixou na cara do gol para o show de luzes que acompanha o projeto, para um Kevin Parker solto e convidativo e para sentir a atmosfera de fãs da banda de diferentes gerações acompanhando as músicas a plenos pulmões.
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Sim, o Tame Impala já une fãs de diferentes gerações! E eu só fui me dar conta disso ao vivo. Eu acabei lendo posteriormente algumas críticas não muito animadas em relação ao show, dizendo que ele foi ofuscado por outros… Bom, talvez a disposição de lugares pode ter feito com que outros tenham tido uma experiência completamente diferente. No meu caso, eu me senti dentro do show.
Fechei meu dia de festival com Phoenix, que abriu sem cerimônia com “Lisztomania”. Como eu já estava mais ao fundo, meus pés cansados ainda aguentaram a dancinha com espaço. Mas vi o restante do show já sentada — não foi nenhum show de deixar alguém de boca aberta, mas foi um bom encerramento para um festival cheio de novidade e nostalgia.
Estrutura
A estrutura do festival era bem organizada mas, no primeiro dia, quando tocou Dua Lipa, tive certa dificuldade para acessar os banheiros mais próximos ao palco e comprar uma cerveja em alguns momentos. Acredito que esse era o dia mais lotado do festival — ou, ao menos, o mais concentrado no palco principal.
Dando asas ao meme, em todos os cantos eu ouvia o bom e velho português brasileiro e camisetas do Lula, o que fez com que eu me sentisse tão em casa que em alguns momentos eu me pegava chamando o festival pelo nome de um outro que vamos bastante no Brasil.
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Nos outros dois dias, tive menos dificuldade para acessar a estrutura, mas foi apenas no último, quando cheguei cedo para ver o Pond, que consegui com calma tomar uma taça de “cava”, o sparkling wine espanhol e comer uma pizza na praça de alimentação.
Para quem teve tempo e paciência para aproveitar as opções que o festival oferecia, isso não era problema nenhum: havia comidas e bebidas para todos os gostos e preferências alimentares, com um cardápio bastante internacional. Os preços das comidas e bebidas também eram bastante equiparados a comer e beber em muitos bares de Barcelona, o que é um ponto bem positivo. Os bares aceitam tanto dinheiro quanto cartão e ainda há a opção de comprar com os vendedores ambulantes, que somente aceitam dinheiro.
Coleção de copos
Uma atividade paralela que acontecia no festival: a coleção de copos!
Os copos personalizados do festival eram referentes a anos diferentes em que o festival havia sido realizado, com o line-up daquele ano. Quem conseguisse juntar todos os copos de todos os anos e mais um copo do ano atual conseguia um ingresso para a próxima edição.
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Dois copos do ano atual e os outros? O ingresso seria VIP. No primeiro dia eu até comecei a minha coleção depois do show da Dua Lipa, quando muita gente abandonou os copos pra trás, mas a tarefa era impossível, já que os copos do ano atual eram raríssimos.
Aliás: os copos custavam 1 euro e você poderia escolher devolvê-los ou guardar como recordação. O mesmo valia para a taça de vinho.
Transporte e entrada
Chegar no festival de metrô não foi problema mas, durante à noite, nos primeiros dias, o metrô não estaria funcionando por 24 horas. No primeiro dia fizemos um movimento errado e decidimos pegar um ônibus noturno que pararia perto da nossa acomodação, mas esse ônibus nunca passou no ponto esperado.
Como foi um dia em que voltamos tarde, tivemos de esperar o metrô abrir e chegamos em casa às seis da manhã. Nos outros dias, que voltei sozinha, a opção foi pegar o shuttle que o festival oferecia até a Plaza de Catalunya, um local central na cidade — o que foi bastante tranquilo. Nos dois dias consegui ir sentada e, chegando até o destino, peguei um táxi sem problemas para a minha acomodação. A combinação shuttle + táxi foi, portanto, a alternativa mais rápida e segura.
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Falando em chegada: a entrada no festival também foi bastante tranquila. Os ingressos eram validados em um app onde já era possível fazer o upload do seu documento com foto previamente.
Esse app serviria também para agilizar o controle das medidas sanitárias da COVID-19 — o que agora não é mais exigido na Espanha. Na chegada, há uma revista de bolsas e pertences e, posteriormente, um portão em que o QR code do ingresso é lido e uma pulseira é colocada. Creio que todo o processo não demorou mais de cinco minutos para ser realizado diariamente.
Pontos negativos
Para mim, o ponto mais negativo da experiência foi a distância dos palcos. Não que a gente não esteja acostumado com isso, mas acredito que a dificuldade de sair de um palco para ir a outro acaba prejudicando bastante a locomoção.
Em muitos momentos senti que teria que escolher uma área do festival (no caso, majoritariamente, os palcos principais) para aproveitar os shows de perto ou teria que escolher ver todos os shows de muito longe, com o som prejudicado e, provavelmente, do telão.
Por sorte, a maioria dos shows que eu gostaria muito de ver estavam nos principais, mas perdi com isso, além da Courtney Barnett, shows de The Smile, Mogwai e outras bandas que eu também gostaria de ter visto tocar, pelo menos um pouquinho.
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Os ingressos do festival ainda davam direito a participar de uma série de shows pela cidade, também com artistas do festival e alguns convidados especiais. Não cheguei a tentar entrar em nenhum, mas quem foi enfrentou uma fila quilométrica (literalmente!) na qual muita, mas muita gente mesmo, ficou de fora.
Eles tentaram resolver esse problema no último evento especial, Brunch on the Beach, quando lançaram uma pré-reserva para o evento que poderia ser feita pelo app de ingressos — o que esperamos que eles levem como experiência para os próximos anos, para que possamos reservar antes as apresentações pela cidade.
Num geral…
A experiência no Primavera Sound em Barcelona é algo que vale a pena aproveitar ao menos uma vez na vida, tanto pelo festival quanto pela cidade estonteante e pela atmosfera inexplicável desses momentos.
Pessoalmente, foi um ponto fora da curva na minha rotina e eu estou até agora com aquela saudade agridoce da cidade. No entanto, eu não sei se toparia uma próxima tão cedo — esse negócio de palcos distantes e de sentir que algo da experiência foi perdido não foi algo que eu consegui superar tão fácil, embora imagine que isso tem muito mais a ver com a falta de costume de festivais que eu esteja vivendo do que com a experiência de ir no Primavera Sound em si.
O que eu acho legal dessa coisa toda é que todo mundo tem uma história diferente para contar sobre aquilo que viu. E acho que isso se faz muito presente quando a gente escreve sobre música: se tem emoção envolvida, as palavras também saem meio irracionais e muita gente vai discordar.
As músicas que eu gosto continuam vivas. E outras ainda estão por vir.
A autora gostaria de agradecer ao Turisme de Barcelona (visitbarcelona.com).