Genial: The Mars Volta usa retorno à música para protestar contra o imperialismo dos EUA em Porto Rico

Com dois singles lançados após sua improvável reunião, o The Mars Volta está usando seu retorno à música para uma causa importantíssima. Entenda.

The Mars Volta aborda questões colonialistas em Porto Rico nos seus novos clipes
Reprodução/YouTube

Uma das melhores surpresas de 2022 até agora é o retorno do The Mars Volta, projeto dos sempre incríveis Omar Rodríguez-López e Cedric Bixler-Zavala que estava em hiato há mais de uma década.

Desde que lançou a ótima “Blacklight Shine” há algumas semanas, o grupo chamou atenção por estar trazendo com força a cultura de Porto Rico em seu trabalho, especialmente no clipe para a faixa. Mas, se naquele vídeo era possível perceber uma abordagem mais de celebração, a recém-chegada “Graveyard Love” traz outra perspectiva.

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Instrumentalmente mais técnica e experimental, a nova canção oferece uma visão crítica sobre o imperialismo dos EUA que persegue o povo porto-riquenho há tanto tempo, desde a sua letra até o clipe, que é finalizado com uma citação da revolucionária local Lolita Lebrón, falecida em 2010:

¡Yo no vine a matar a nadie; yo vine a morir por Puerto Rico! [‘Eu não vim matar nada, eu vim morrer por Porto Rico’]

Antes de mergulharmos nesse assunto, entretanto, é importante entender o contexto por trás do The Mars Volta e, principalmente, de Omar Rodríguez-López.

The Mars Volta, Omar Rodríguez-López e Porto Rico

Nascido em 1975 em Bayamón, Porto Rico, Omar Rodríguez-López é bastante famoso por seu trabalho tanto com o The Mars Volta quanto com outras bandas como o influente At the Drive-In, além de outros projetos menores como o Antemasque. As parcerias surgiram depois de sua mudança para os EUA, já que cresceu em El Paso, no Texas, além de ter passado um momento breve da vida na Carolina do Sul.

Sempre ligado, portanto, às questões latinas — já que a comunidade de El Paso é conhecida pela forte presença de imigrantes mexicanos —, não é de hoje que Omar traz em suas composições a influência desse ritmo e questões ligadas a esse povo de forma geral. No entanto, as novas músicas mostram pela primeira vez um resgate de suas origens porto-riquenhas, como apontou um usuário do YouTube nos comentários de “Graveyard Love”:

Meu amigo! Fico muito feliz que Omar Rodríguez-López tenha voltado a ver o seu povo, sua gente, seu espelho [de forma a] prestar homenagem, dar voz, apoio e condolências a um povo que se junta a uma luta centenária pela emancipação dos povos escravizados nativos e migrantes, contra o imperialismo ianque e a obsolescência colonial espanhola para buscar a liberdade da América enquanto continente e nos reidentificar como um povo belo, honesto, trabalhador e unido.

É exatamente isso, aliás, que faz o belíssimo clipe dirigido pelo próprio Omar para a faixa. Aqui, vale também destacar o excelente trabalho feito no vídeo de “Blacklight Shine” (também comandado por ele), que se estende para além da música original e inclui um grande e incrível trecho exibindo um tipo de dança chamado Bomba, típico de Porto Rico, no qual as dançarinas ditam o ritmo dos percussionistas através de seus movimentos, ao invés do contrário que é feito geralmente.

Continua após o vídeo

Já em “Graveyard Love”, a mensagem parece ir mais na direção do que o comentário diz — uma exaltação do povo porto-riquenho como “belo, honesto, trabalhador e unido” através da retratação de cenas cotidianas, desde idosos jogando dominó na praça até trabalhadores locais em seus mais diversos empregos.

“Graveyard Love” e o protesto contra o imperialismo dos EUA

Após termos falado tanto sobre Omar, é importante também destacar o incrível trabalho de Cedric em todo o projeto. Apesar de não ter laços com Porto Rico — ele é filho de pais mexicanos —, Bixler-Zavala parece ter abraçado completamente a causa e até falou sobre o tema em um comunicado à imprensa, explicando como a letra de “Graveyard Love” se relaciona com o colonialismo ianque:

Eles vão procurar a sua ruína e queimar as suas terras porque, se eles não puderem lhe ter, ninguém mais pode.

Essa questão tem sido trazida cada vez mais à tona, como aconteceu durante um comitê especial da ONU pela descolonização em 2018 (via Britannica) que descreveu a relação entre EUA e Porto Rico como “uma [baseada no] genocídio e ‘terrorismo econômico’, caracterizada [pelo fato de] corporações multinacionais — sob facilitação dos Estados Unidos — explorarem os recursos de Porto Rico mesmo com o Governo [de Porto Rico] tendo implementado medidas de austeridade [financeira] que forçaram o fechamento de escolas”.

Na descrição do novo clipe, o Mars Volta dá uma verdadeira aula e resume, em uma linha do tempo de mais de 100 anos, os diversos episódios que marcam a história de Porto Rico enquanto colônia dos EUA. Até hoje, no entanto, não há um consenso sobre o melhor caminho para a independência do território.

A independência de Porto Rico

Um referendo feito em 2012, por exemplo, apontou que 61,2% dos cidadãos locais gostariam de ver Porto Rico se tornar o 51º estado dos EUA, ainda que isso significasse abrir mão de uma Constituição própria — que foi conquistada após muita luta — e a total absorção do local ao território norte-americano. Pesquisas feitas em 2017 e 2020 voltaram a confirmar esta como a vontade da maioria, apesar do número ter diminuído consideravelmente (para 53%) nos dados mais recentes.

O que vem crescendo é justamente o número de pessoas que propõem uma independência completa dos EUA, mesmo que as implicações imediatas da separação, especialmente no quesito econômico, sejam bastante complicadas. Esses cidadãos representaram os 47% restantes da pesquisa de 2020 e, pelo visto, é aqui que Omar e Cedric se posicionam.

Isso fica bem claro pela inclusão de um discurso feito novamente por Lolita Lebrón, dessa vez durante o período em que esteve presa, em um trecho do vídeo. Por lá, ela diz (via Rolling Stone):

Nós porto-riquenhos e todos os oprimidos pelo terror e pela violência temos tido que recorrer — e não hesitaremos se necessário — a esse último recurso das nacionalidades, que é o uso de armas para conseguir sua emancipação. O Império Norte-Americano é obstinado em sua ocupação do nosso país e nos provoca, dia após dia e noite após noite, a defender nossa dignidade nacional. Somos vítimas de sua violência e seu terror. Tentamos todos os meios pacíficos e, neste processo, o inimigo norte-americano se fortaleceu.

Este processo parece ser referenciado pelo grupo na linha do tempo, que cita diversos movimentos de ataques e contra-ataques nesse conflito que acontece há tanto tempo e é muitas vezes deixado de lado pela sociedade, visto como uma situação marginal que não requer importância e, naturalmente, tratado com obscurantismo pelos norte-americanos.

Alguns dos argumentos principais deste lado envolvem a falta de representatividade do povo porto-riquenho, tão diferente dos estadunidenses, em questões políticas. Mesmo se fosse incorporado como estado, o território teria que aderir a regras muito diferentes de seus costumes e nada garante que as constantes explorações seriam finalizadas.

The Mars Volta recomenda leituras sobre o tema

É claro que, apesar de tudo isso, resumir o posicionamento desses dois de uma forma tão simplista assim seria completamente injusto. Da mesma forma, não cabe a este que escreve — que admite sem problema nenhum que apenas agora, graças à música, passou a se importar com este tema — dar uma aula sobre o tema.

Justamente por isso, fazemos aqui o mesmo que a dupla fez em seu novo lançamento: recomendamos a leitura de dois livros, além de mantermos os ouvidos atentos para os próximos lançamentos do The Mars Volta e toda a carga sociopolítica que certamente virá com eles.

As obras em questão são Fantasy Island: Colonialism, Exploitation and the Betrayal of Puerto Rico, de Ed Morales, e War Against All Puerto Ricans: Revolution and Terror in America’s Colony, de Nelson A. Denis. Infelizmente, nenhuma das duas possui edições em português, mas podem ser encontradas em sites especializados para importação.

Abaixo, você confere o clipe de “Graveyard Love” e a linha do tempo traduzida montada pela dupla.

The Mars Volta – “Graveyard Love”

1897 – ENFIM LIVRE
1898 – OITO DIAS DE INDEPENDÊNCIA
1899 – FURACÃO SAN CIRIACO
1910 – BANCOS DOS EUA TOMAM TERRAS PORTO-RIQUENHAS
1917 – CIDADANIA ESTADUNIDENSE
1921 – MONCHO REYES, O GOVERNADOR IDIOTA
1920 – 1930 – EUA ROUBA TERRAS
1930 – PEDRO ALBIZU CAMPOS
1931 – PORQUINHOS-DA-ÍNDIA EM PORTO RICO
1930 – 1970 – ESTERILIZAÇÃO EM MASSA
1934 – GREVE DOS LOS MACHETEROS
1934 – VIGILÂNCIA 24H DO FBI EM ALBIZU CAMPOS
1935 – MASSACRE DE RIO PIEDRAS
1936 – ASSASSINATO DO CHEFE DE POLÍCIA RIGGS
1937 – MASSACRE DE PONCE
1939 – BOMBARDEIO DE CULEBRA
1941 – OCUPAÇÃO DE VIEQUES
1948 – LEI 53 (LEI DA MORDAÇA)
1950 – INSURREIÇÕES POR TODA PORTO RICO
1950 – INSURREIÇÃO DE JAYUYA
1950 – INSURREIÇÃO DE UTUADO
1950 – ATAQUE AO GOVERNADOR DE PORTO RICO
1950 – LUTA ARMADA NO SALÓN BORICUA
1950 – ATAQUE AO PRESIDENTE HARRY S. TRUMAN
1954 – ATAQUE NO CONGRESSO DOS EUA
1965 – MORTE DE PEDRO ALBIZU CAMPOS
1971 – TOMADA DA ILHA DE CULEBRA
1976 – SEÇÃO 936 DA RECEITA FEDERAL
1978 – CERRO MARAVILLA
1980 – 2000 – BOOM FARMACÊUTICO
2003 – SE ENCERRAM OS BOMBARDEIOS DE VIEQUES
2006 – FIM DA SEÇÃO 936
2017 – FURACÃO MARIA
2022 – AINDA UMA COLÔNIA

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