Por Nathália Pandeló Corrêa
Jorge Drexler poderia colher os louros de seu sucesso premiado e aclamado pela crítica e público. Poderia polir seu Oscar e não se preocupar com os próximos passos de sua carreira como um dos maiores nomes da música cantada em espanhol no mundo. Porém, o uruguaio radicado na Espanha é um criador inquieto, que encontra nos desafios o gás para seguir em frente, sem olhar para trás.
A cada disco, Drexler propõe um movimento diferente do anterior. Como contraponto às cores de Bailar en la cueva, por exemplo, ele caminhou para o minimalismo de Salvavidas de hielo, um disco lançado há quase cinco anos e que rendeu seus últimos shows no Brasil, recriando ao vivo o universo onde o violão costurou todas as melodias – e também percussões.
Agora, Jorge está em nova fase. Ele fez de Tinta y Tiempo, seu mais novo álbum, um convite à expansão e à celebração. No lugar do minimalismo, entra toda uma orquestra. Nas letras, uma reflexão delicada sobre o fazer artístico, sobre a música enquanto paixão, sobre a palavra enquanto instrumento.
E nas vozes convidadas, gerações diferentes dialogam entre si. O panamenho Rubén Blades surge em “El Plan Maestro”; a rapper israelense Noga Erez canta em inglês em “¡Oh, Algoritmo!”; e C. Tangana, que recebeu Jorge em seu já icônico disco El Madrileño, devolve o favor na ousada “Tocarte”, que inclusive ecoa tons de funk carioca.
Não que essa troca geracional seja algo novo para Jorge Drexler. Nós, brasileiros, podemos recordar a delicada parceria “Lisboa-Madrid”, com o duo Anavitória, lançada em 2021. Mas a cada novo álbum, surge um compositor renovado – e um show igualmente repaginado. De volta à estrada e levando pela primeira vez o novo repertório, o músico vai criar uma experiência totalmente diferente da anterior, orgulhosamente minimalista.
E os brasileiros poderão ver de perto a turnê de “Tinta y Tiempo”, com shows em Curitiba (17/09), Rio de Janeiro (22/09), São Paulo (24/09) e Porto Alegre (25 e 27/09). O TMDQA! teve a oportunidade de conversar com Jorge Drexler via Zoom, direto de sua casa em Madrid, sobre esse novo momento. Falando um português aprendido quase perfeitamente à base de muito Caetano Veloso, ele empunha o violão, canta e reflete sobre o atual momento do mundo, os aprendizados da pandemia e o que vem pela frente.
TMDQA! Entrevista Jorge Drexler
TMDQA!: Olá, Jorge! Fiquei muito feliz de poder falar novamente com você. Quando nos falamos da última vez, você estava lançando “Salvavidas de Hielo”. Não consegui não fazer um paralelo com esse novo trabalho, porque naquele momento a gente conversou sobre como você deixou de lado a ideia da bateria tradicional, como é usada. Vi o show desse disco e foi interessante ver você desconstruir isso. Mas aí dei play no novo e os arranjos estão cheios e encorpados, ousados! E me peguei me perguntando como funciona pra você esse movimento de expansão e retração. Num momento em que estavam todos pensando em produções menores, por causa da pandemia, você foi lá e colocou logo uma orquestra!
Jorge Drexler: Acontece o seguinte… Sua observação é muito precisa e muito adequada. O disco anterior é minimalista. É um disco feito baseado em… escassez. Como se diz escassez em português? Deixa eu procurar essa palavra que eu gosto muito [pega um dicionário ao seu lado]. Quando algo é escasso, que não tem muito…
TMDQA!: É escassez mesmo. Também temos essa palavra.
Jorge Drexler: Ah, ótimo. Foi um disco centrado na escassez, no minimalismo, na economia. E depois disso, justamente, começa um período de escassez, economia, isolamento, minimalismo obrigatório. Então aproveitei para fazer um movimento de pêndulo entre os trabalhos. “Bailar en la cueva” é um disco cheio de instrumentos e percussões, gravado na Colômbia, com muitas cores. Até na capa. Passamos para “Salvavidas de Hielo”. Procurei só um instrumento, que é o violão, e a voz humana. E depois decidi, de novo um disco expansivo, cheio de coisas, com uma orquestra inteira. Eu queria que o disco soasse colorido, com uma explosão de vida, como aconteceu no começo do período proterozóico, em que a vida e a biodiversidade aumentam. Eu queria que o disco soasse caro, como se você depois de muitos meses de guardar tudo, encerrado na sua vida pequena, de escasso contato, afeto, amor, instrumentos, vida social… que seja o oposto. Muito, muito de tudo. Uma vontade de esquecer a pandemia. Por isso também que o disco não fala diretamente da pandemia. Fala do oposto. Fala do que a gente aprendeu a valorizar na pandemia. É um disco de celebração, depois desse momento… É de renascer, como falando do começo da vida em “El día que estrenaste el mundo”; de começar de novo e ser principiante em “Cinturón blanco”… tem muita coisa disso.
TMDQA!: E dá pra sentir, deu super certo.
Jorge: Ah que alegria, fico feliz que dê pra perceber isso.
TMDQA!: Agora, falando do “Tiempo”, do título… Eu finalmente notei como você data as suas composições. Você coloca dia, mês, ano, o local onde você escreveu. E eu voltei nos meus CDs e você faz isso em todos, desde sempre.
Jorge: Eu faço muito isso mesmo!
TMDQA!: Sim! E me bateu de ser algo até meio biográfico, porque você pode voltar nessas composições e saber exatamente em que momento da vida você estava, quando estava trabalhando naquela música.
Jorge: Eu acho que tem essa intenção, acho também. Na verdade, eu nem sei porque eu faço isso (risos). O que acontece é o seguinte: eu não tenho diário meu. Não escrevo diário do que faço na minha vida. Esse trabalho é feito pelas canções. E eu gosto de sempre escrever uma música e colocar uma data. E quando eu junto as letras num arquivo, deixo com essa data e o lugar, porque gosto também que se possa estabelecer uma trajetória dentro do disco. Não é uma intenção pensada ou muito consciente e não tem uma finalidade clara.
TMDQA!: É que acaba sendo algo de preservar memórias, né? Achei bonito.
Jorge: É que eu tenho uma memória muito fraca! Eu acho que tanta viagem e mudança de fuso fez isso… Pensa que antes da pandemia, eu cheguei a cruzar o Atlântico 20 vezes por ano. Uma vez a cada 3 semanas, eu cruzava o Atlântico e voltava. Depois da pandemia, diminuiu um pouco, mas acho que passei uns 15 ou 20 anos da minha vida com jet lag crônico, sempre com deslocamento horário na minha cabeça. Porque eu moro na Espanha, tenho minha equipe de trabalho aqui. Mas mais da metade do meu trabalho é na América Latina, então eu vou e volto. Minha família está no Uruguai também, então o tempo todo eu vou e volto. Eu acho que tenho uma memória muito frágil, então deixo essa ponte pra me lembrar das coisas (risos).
TMDQA!: Mas tá tudo registrado aqui!
Jorge: Alegria!
TMDQA!: Ainda falando de “tiempo”, estava notando os convidados que você escolheu pra esse disco, e existe uma diferença geracional considerável. O Rubén, o C. Tangana, a Noga. Não sei se é só impressão minha, mas sinto você dialogando com artistas um pouco mais jovens. Do Brasil, podemos citar Anavitória, por exemplo, algo recente. Queria entender como funciona pra você esse diálogo geracional, que de certa forma é algo que você sempre fez. E o que esses artistas – tanto os mais jovens quanto os mais velhos – o que eles trazem pra você?
Jorge: Uma coisa que todos os artistas com quem eu colaboro no disco têm em comum, é que eles não têm uma nostalgia, nem o Rubén Blades. Ele é uma pessoa com uma energia vital muito forte, que parece bem mais novo do que ele é, na verdade. Eu, pessoalmente, não tenho nenhuma tendência à nostalgia. Odeio a ideia de pensar que as coisas boas do mundo já passaram e que o mundo agora é pior do que o anterior. Porque na verdade, isso é um tipo de fobia às coisas novas. Uma das coisas boas de envelhecer é que você aprende a ver como certos processos se repetem de geração em geração. Eu já passei por cinco gerações que disseram “não, olha, a música de hoje é uma merda. A música boa é a que a gente ouviu” e todo esse conceito horrível de oldies, nostalgia, “só ouço música que foi feita há 30 anos”. Eu acho que é perder a batalha contra o tânatos, a morte ganha. Conhece o conceito de eros e tânatos? As duas forças – tânatos é a força da morte, eros é a força da vida. E tem essa luta. Se você considera que as coisas boas já passaram, é uma antecipação da morte. Senão, que sentido tem viver uma vida assim? É melhor dizer adeus e sair fora (risos). Mas eu adoro a vida, o eros, o presente, a sensação de me sentir vivo. Não gosto de celebrações de aniversários, por exemplo… Eu nem lembrava que fazia 30 anos que saiu meu primeiro disco. Alguém que me lembrou, não gosto de comemorar essas coisas. Não gosto de fazer disco de grandes sucessos. Sempre prefiro escrever material novo, trabalhar com novas canções, novas ideias…
TMDQA!: Olhar pra frente.
Jorge: Olhar pra frente, para o presente. Eu não olho para o passado. E aí que o trabalho com C. Tangana ou Noga Erez… é uma maneira diferente de escrever. Se você olha a estrutura dos versos que eu escrevi: “¿Valiente o gallina? / ¿La bolsa o la vida? / Picar medicina / Chupar golosina”. Ou então, “Wait, what’s that money that you spent? / What’s that sitting on your plate? Do you want what you’ve been fed? / Are you the fish or bait?”. Todos os versos rimam um com o outro. Isso é muito característico do trap, da música urbana nova, não é algo muito utilizado na minha maneira de escrever. E eu adoro encontrar uma maneira de escrever, que seja até mesmo pra me sentir incômodo no começo. Eu gosto de me sentir incômodo. Não há abertura de caminho com comodidade. Eu me senti muito incômodo nesse disco, por muito tempo, na procura, muito perdido. É muito bom estar pedido, errar é importantíssimo. Tanto no sentido de cometer um erro, quanto no sentido de andar sem uma direção certa. Errante. Se diz também em português, que deriva, sem uma direção concreta, não?
TMDQA!: Isso, sim.
Jorge: [Cantando] “O errante navegante / quem jamais te esqueceria”, que aparece em “Terra”, do Caetano. O meu português foi aprendido em canções, então eu só conheço as palavras que aparecem em canções (risos).
TMDQA!: Eu acho que você aprendeu muito bem.
Jorge: Tive bons professores e professoras.
TMDQA!: Com certeza! Puxando pra outro lado… você falou que não é um homem de nostalgia. E nós estamos vivendo um período estranho. Estamos aqui falando de show, de você voltar ao Brasil, e isso é possível pelo avanço na ciência e tecnologia, que possibilitou a vacina. Hoje se vive um período de obscurantismo, é preciso justificar coisas que eram dadas como óbvias. E você é um homem de arte, isso fica bem claro no disco, mas também é um homem de ciência, por toda a sua trajetória como médico, por exemplo. Eu queria saber se você consegue achar um caminho de luz no meio da escuridão, talvez por meio da arte. A arte é esse caminho para abrir um espaço entre as trevas, talvez.
Jorge: As…?
TMDQA!: Trevas.
Jorge: O que são trevas?
TMQDA!: Perdão, é… escuridão mesmo.
Jorge: Ah sim! Mas essa palavra, trevas, eu não conheço. Vem de onde? Eu gosto muito das palavras!
TMDQA!: Eu não sei a etimologia, mas…
Jorge: É plural?
TMDQA!: Isso, é plural.
Jorge: Que legal, já aprendi uma palavra nova hoje! Mas olha, eu encontro essa luz tanto na arte quanto na ciência. Faz três dias que tivemos a primeira fotografia em alta resolução, a maior até hoje, do universo. Você já deve ter visto. A minha prima astrofísica, que fez a letra de “El Plan Maestro” junto comigo e deu a ideia da música, me falou que estamos utilizando as mesmas alterações da atmosfera dos planetas como lente amplificadora para conseguir melhores imagens. Ela me disse algo maravilhoso, “os homenzinhos sapienzinhos”, tão pequenos, fazendo algo tão incrível, como ter uma fotografia de alta resolução de uma extensão enorme do universo. Se isso não dá esperança no ser humano e na vida, eu não sei o que dá.
Eu acho muita consolação na arte, mas também na ciência, que nos tirou de uma enfermidade em escala mundial como nunca tinha havido antes – na verdade, as comunicações no mundo geraram que uma pandemia ficasse imediatamente universal. E aí a ciência fez um esforço conjunto de combinação de velocidade, recursos, inteligência, de logística para conseguir que todo mundo se vacinasse. Mas você tem que saber uma coisa muito importante: não há movimento de avanço nas liberdades, na consciência, na empatia que não gere um movimento de gente que tem medo e que se opõe a essa abertura e que tenta fechar. Temos que respeitar esse medo e ouvir essa gente. O medo tem que ser sempre respeitado. Quando ele gera violência, tem que ser parado. Mas todos temos medo às vezes.
Eu não te conheço, mas pelo que você comenta, acho que você pertence à parte do mundo que vai no caminho da abertura, que integra, que abre, que avança racionalmente, que amplia o círculo de empatia, que considera como igual alguém que pensa diferente de você na política, de opções sexuais, de visões econômicas. Mas também temos que entender que o mundo muda muito rápido e tem muita gente que tem medo. Temos que reconhecer isso, respeitar esse medo e ter confiança em que a mudança avança numa direção. Agora mesmo o mundo está enfrentando dois paradigmas: o antigo, que quer impor uma ideia nacionalista, fechada, e um sistema novo, que quer impor uma ideologia transnacional, mais aberta, de liberdades individuais, de democracia. A única coisa boa que vejo a invasão da Ucrânia pela Rússia é que pelo menos os lados ficaram claros. Aí pelo menos você tem não é algo de esquerda x direita, como muita gente pensa. É uma coisa de abertura, de avanço, de empatia, de liberdade, indo contra a escuridão. Pessoalmente, eu acho que é uma humanidade mais luminosa, e uma humanidade mais retrógrada, baseada no medo, no medo do outro, da novidade, tudo que gera pensar, “mas o mundo está diferente, o que eu faço no mundo diferente?”. Por isso que eu acho que é importante mostrar a liberdade do lado artístico também.
TMDQA!: E a arte faz parte desse diálogo, então acho que é um dos caminhos possíveis para a gente continuar conversando. Agora, sei que nosso tempo está terminando, então queria te perguntar sobre levar esse disco para os palcos. Lembro que no início da pandemia, você teve um show cancelado na Costa Rica e fez um show para um teatro vazio, foi uma imagem muito impactante. Mas agora você está num momento de celebração e superação, e está conseguindo encontrar o público novamente. Como tem sido esse reencontro nesse novo momento e isso está te fazendo valorizar mais as coisas que antes tinha como dadas, como certas?
Jorge: Esse disco que você ouviu agora existe porque no verão do ano 2021, eu tive na Espanha uma pequena abertura – porque tudo aconteceu antes na Espanha do que no Brasil, não? Então entre julho e agosto de 2021, a Espanha teve um período de certa abertura. E aí foi que eu voltei a subir num palco, e aí senti literalmente o sangue voltar para o meu corpo. Estava escrevendo há um ano e meio sem conseguir fechar nenhuma música. E depois de voltar para o palco, eu pensei: “eu entendo agora para o que eu escrevo”. Então dois meses depois, bem rápido, o disco saiu. Setembro, outubro, o disco já estava bem encaminhado. Em novembro a gente mixou, em dezembro estava pronto. Então foi muito importante voltar para os palcos. Este disco existe porque eu voltei para os palcos. Eu não teria conseguido terminar se não tivesse feito esses oito shows. Deu pra sentir de novo essa energia. Eu aprendi com a pandemia muitas coisas, mas uma delas, muito importante pra mim, é que, como diz o Caetano, “nunca o ato de compor uma canção foi tão desesperadamente necessário”. Além disso, o ato de comunicação, não somente de expressão pessoal. Um ato que você faz frente a outro ser humano, de empatia, de comunicação. Quando você tira o outro da sua frente, eu não conseguia acabar… As músicas eu levava até 80% feitas, mas os outros 20% que faltavam eu não conseguia. Até que voltei aos palcos.
TMDQA!: Faz total diferença. Estou feliz que você está podendo ter essa troca de novo.
Jorge: Foi uma loucura! O público já estava sem máscaras, na Argentina, no Chile. Nunca fiz shows pra tanto público como estou fazendo agora.
TMDQA!: Feliz por você, desejo toda a sorte com esse trabalho!
Jorge: Obrigado!