Por Nathália Pandeló Corrêa
Expoente da nova e vibrante cena londrina de jazz, o grupo Kokoroko chama atenção ao desvirtuar os padrões tradicionais do gênero, incorporando sons de suas raízes africanas.
Surge assim o caldeirão sonoro do disco de estreia Could We Be More, onde o afrobeat de Fela Kuti se mescla a uma visão moderna do highlife – um gênero nascido em Gana há cerca de 100 anos -, com direito a uma parada no caribe e no soul dos anos 1970 do Harlem.
Kokoroko traz no nome a celebração da resiliência de suas origens, com seus oito membros vindo de famílias originadas por todo o mapa do continente africano, com caminhos que foram se cruzar bem longe: nas noites de Londres. Desde então, a banda já subiu ao palco do Glastonbury e foi destacada pelo jornal The Guardian como artistas a se prestar atenção.
Essa trajetória única ganhará palcos brasileiros com três apresentações dentro do Sesc Jazz, nos dias 21/10 (Sesc Ribeirão Preto) e 22 e 23/10 (Sesc Pompeia).
Direto da sala de embarque do aeroporto antes de pegarem o avião para o Brasil, Sheila Maurice-Grey (trompete, flugelhorn e vocais) e Ayo Salawu (bateria) conversaram com o Tenho Mais Discos Que Amigos! sobre o que une seu som à música brasileira, o cenário crescente do jazz e da música instrumental no Reino Unido e a importância da troca entre a plateia e o artista.
Confira abaixo!
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TMDQA! Entrevista Kokoroko
TMDQA!: Obrigada pelo seu tempo! Muito legal que vocês vêm ao Brasil trazendo esse novo disco, então é sobre isso que quero falar. O título Could We Be More parece uma pergunta, mas na verdade é uma afirmação, bem forte aliás, como bons discos de estreia podem fazer. Uma declaração do tipo “chegamos, oficialmente”. Vocês tinham em mente enquanto escreviam que essa seria a primeira impressão de muita gente sobre sua música?
Ayo Salawu: Isso! Gostei disso que você falou, é uma boa forma de colocar. Por isso não colocamos uma interrogação.
TMDQA!: Então foi intencional.
Ayo: Foi. E mesmo entre nós da banda, isso pode significar muitas coisas. Pode falar sobre a gente musicalmente – podemos ser mais que jazz e afrobeat? Ou para além disso, posso ser mais para a minha família? Sinto que isso tem uma conexão com a nossa música em si, que é algo que fica para a interpretação de cada um, as pessoas têm as suas próprias imagens e ideias sobre as músicas, então ter um título de disco que pudesse se traduzir de múltiplas formas fazia sentido.
TMDQA!: Ninguém é uma coisa só, por que a música seria, certo?
Ayo: Exato.
TMDQA!: Mas vocês começaram a discografia em 2019, com um EP. Logo em seguida, veio a pandemia. Isso afetou os planos de vocês para o disco ou ele ainda nem estava sendo pensado?
Sheila Maurice-Grey: Com certeza afetou os planos para o disco, mas para nós acabou sendo algo muito positivo. Na verdade, em 2018 começamos a turnê, mas de forma mais pesada, foi em 2019. E quando chegou 2020, estávamos exaustos. De algumas maneiras, a pandemia foi uma bênção para a gente. Foi uma época de muita ansiedade, mas foi o que possibilitou termos tempo para sentar e escrever música juntos. Nunca tínhamos tempo de ir para o estúdio e ficar juntos – foram dois meses de composição. Só de ter esse momento de escrever as músicas e ficarmos unidos foi muito potente e uma experiência que eu nunca vou esquecer.
TMDQA!: E agora vocês podem sair de novo e compartilhar com outras pessoas – sorte a nossa. Eu estava pensando que a sua música é uma celebração, quase que um convite para dançar. Isso é algo que vocês desejavam enquanto escreviam?
Ayo: Acho que isso vem da natureza das nossas influências. Nesse sentido de ser algo celebratório, temos o lado do highlife, ou do afrobeat, ou do funk… Todas essas coisas permitem que as pessoas se expressem, e sinto que nossa música tem muitas referências do oeste da África. A dança faz parte desses estilos de música, é inclusive tão importante quanto a música em si. Então eles andam lado a lado.
Sheila: Somando a isso que você falou, algumas músicas, como Ewà Inú e We Give Thanks, são muito sobre congregação, de nós como banda, mas também resgata nossas origens na música, como crescer em uma igreja, até nossas performances são assim. Não somos os artistas e as pessoas meramente um público. Somos todos parte dessa celebração da música.
TMDQA!: E isso transparece, essa união. Digo isso sobre celebração porque quando você coloca algo na categoria do jazz, hoje a dança não é algo que se associa ao gênero. Existe uma escola tradicional e purista de jazz que talvez torça o nariz para isso. Mas vocês parecem estar se divertindo e é o que importa. E diz muito sobre a pluralidade do som da banda, que toca desde festivais como Glastonbury até salas de concerto. Como é pra vocês circular entre públicos diversos entre si?
Sheila: Eu diria, pra acrescentar a isso que você falou, é que o jazz se tornou algo que as pessoas sentam para ouvir, ficar de espectadoras numa plateia. E o músico é o entretenimento. Mas não foi assim que o jazz surgiu. Pra mim, pessoalmente, tocar afrobeat ou mesmo tocando em várias outras bandas antes do Kokoroko, era algo muito importante pra mim entender as raízes de onde o jazz começou. Foi inspirado por pessoas congregando juntas. Se você ouvir os primeiros discos do Duke Ellington, as pessoas estão dançando, então é algo para ser lembrado e trazido para a música atual. Se você ouve as origens do afrobeat, todos estavam dançando, e não sentadas ouvindo. Todos faziam parte. Se livra dessa parte de “nós” versus “eles”.
Ayo: E a gente adora poder circular por cenas diferentes. Fazer um show grande como Glastonbury e tocar numa sala pequena e íntima. Isso é algo que gostamos como grupo e é bom ter uma mudança de cenário.
TMDQA!: E vocês estavam falando sobre suas origens. Sinto que nós brasileiros podemos nos conectar instantaneamente com o som do Kokoroko justamente porque compartilhamos muitas das mesmas raízes. Não sei se vocês conhecem muita música brasileira, mas onde acham que as nossas culturas se cruzam e combinam?
Ayo: Então, para mim, a primeira vez que eu ouvi música brasileira, devia ter uns dois anos.
Sheila: Jura? Uau!
Ayo: Sim! Digo, a música que era feita no Brasil foi um pouco mais tarde. Mas antes disso, havia alguns artistas americanos que incorporavam a música brasileira. O disco que me fez querer tocar bateria foi um álbum do Ron Kenoly, e ele combinava gospel com música sul-americana, samba, bossa nova.
Sheila: Eu também amava Ron Kenoly!
Ayo: E como nigeriano, crescer lá até os 7 anos, no oeste da África… quanto mais eu ouvia música brasileira, mais sentia que poderíamos nos entender bem. Eu nunca fui na Bahia, mas todo mundo que vai, as pessoas negras, me dizem: “isso é a África no Brasil”. E em alguma parte da Colômbia, dizem, “isso é a África na Colômbia”. A música e a cultura africanas são grande influências nesses lugares, então estamos felizes de ver nossa música chegar à América do Sul e lugares como o México, mas quando você olha as culturas parecidas, parece que mais gente vai conseguir te entender. Há algumas partes do Reino Unido onde vamos nos apresentar, mas quando a gente olha para o Brasil, é diferente, porque você pensa, “ok, essa galera ouve sons assim desde a infância”. Existe uma apreciação diferente, porque você se sente compreendido.
TMDQA!: Imagino que deva ser muito legal tocar para plateias que não ouviriam suas músicas de outra forma, pessoas completamente diferentes. Mas deve ser divertido tocar para um público que te compreende em um outro nível. Mudando de assunto, me corrijam se eu estiver enganada, mas acho que Kokoroko significa “seja forte”. Então queria saber o que mantém vocês motivados e fortes em tempos tão desafiadores.
Sheila: É uma boa pergunta, mas acho que o que mais nos mantém juntos é o amor à música e à música que tocamos. Acho que o coração do início da banda é o amor por aqueles que vieram antes de nós. E ter isso como a base de como começamos é a verdadeira razão do porquê a banda durou tanto ou alcançou longevidade – mesmo tendo só um álbum e um EP ao longo de oito anos. Então acho que todos amamos a música. Quando entramos em um lugar para começar a escrever, é interessante ver se acender uma chama de empolgação em todos. É algo subestimado e tão simples, o amor à música.
TMDQA!: Com certeza. Falando em empolgação, vocês vão tocar em algumas unidades do Sesc. E esse é um dos principais palcos no país para a música que não é necessariamente mainstream. Há um público cada vez maior para artistas desse segmento no Brasil, mas ainda temos um longo caminho a percorrer. Vocês podem me contar como é a integração com a cena jazz e instrumental onde moram? Em Londres há um interesse crescente por esse tipo de música também?
Ayo: O que eu notei é que às vezes as pessoas acham que isso é algo novo. Mas o que é novo de fato é que muitos músicos jovens agora têm pessoas prontas a ouvir o que eles estão criando. Alguns músicos com quem eu converso, que são 10, 20 anos mais velhos, falam que tinham interesse em muitas coisas, mas não havia um espaço ou pessoas interessadas em ouvir o que eles criavam. Então acabavam tocando com um artista ou outro, iam tocar em arenas e estádios. O crescimento dessa cena não é algo novo, pois houve pessoas antes de nós que fizeram coisas importantes, como o Tomorrow’s Warriors [organização de educação e desenvolvimento de músicos de jazz], que educaram pessoas como a Sheila sobre a origem do jazz e possibilitaram incorporar outros sons também. Em Londres se ouve sons de muitas culturas – do este da África, caribenha, se encontram noites dedicadas a música da América do Sul, há lugares onde você acha de tudo. Quando se cresce em Londres, você pode pensar que tocar trompete não é descolado, quando na verdade tem a ver com as nossas origens. Não é algo que se ache no sistema educacional, então é muito importante que pessoas fora desses sistemas, inclusive músicos mais velhos, que abram caminho e espaço para que nós possamos aprender e nos interessarmos. É uma boa cena, mas só existe porque algumas vieram antes de nós e nos incentivaram a criar. E isso é algo chave para entender que estamos onde estamos.
TMDQA!: Com certeza. Pessoal, obrigada pelo papo e desejo que se divirtam no Brasil.
Sheila: Muito obrigada!