Em 2022, o The Cult poderia tranquilamente viver de turnês com seus discos antigos, que incluem hits inesquecíveis como “She Sells Sanctuary”, “Fire Woman”, “Revolution” e “Rain”.
Ao invés disso, impulsionado por uma experiência com o “Sol da meia-noite” na Finlândia, o vocalista Ian Astbury voltou a recrutar o parceiro de longa data Billy Duffy para um novo trabalho da banda. Assim nasceu Under the Midnight Sun, que pode ser chamado, sem exageros, de melhor disco do grupo em um bom tempo.
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Com faixas como “A Cut Inside” e “Give Me Mercy”, o novo álbum é capaz de suscitar o sentimento dos clássicos do Cult enquanto, ao mesmo tempo, oferece algo novo. Com tons ocultos e riffs de guitarra cheios de dinâmica — marca registrada de Duffy, é claro —, o trabalho mostra que essa lendária banda ainda tem muito a entregar.
Mostrando muita humildade, Astbury reforça tudo isso em conversa exclusiva com o TMDQA!, onde também detalha o processo do novo disco e nos leva por uma verdadeira viagem pelos seus pensamentos. Confira abaixo!
TMDQA! Entrevista Ian Astbury (The Cult)
TMDQA!: Olá, Ian! Que prazer bater um papo com você.
Ian Astbury: Olá! Onde você está?
TMDQA!: Eu estou em Brasília! E você?
Ian: Ah, a capital do Brasil! Arquitetura incrível. Eu estou em Los Angeles.
TMDQA!: Ah, sim! Acabei de reparar no seu gorrinho [do Los Angeles FC]. Ian, primeiramente, muito obrigado pelo seu tempo. Eu queria dizer que ouvi o disco novo e achei simplesmente fantástico. Fiquei surpreso com ele, de verdade. E a minha sensação é a de que esse é um disco que, de certa forma, volta às raízes da banda e ao mesmo tempo soa bastante moderno. Queria saber o que te levou a esse lugar, musicalmente falando.
Ian: Eu estive tentando levar a banda de volta para isso há 25 anos! É uma longa história.
TMDQA!: É pra isso que estou aqui!
Ian: É uma longa história. Há tantos lugares diferentes. Se você conhece a nossa música dos últimos quatro álbuns, Born into This (2007), Choice of Weapon (2012), Hidden City (2016), houve um esforço consciente para evoluir. E houve com Beyond Good and Evil (2001) também. Eu acho que Beyond Good and Evil foi o fim de uma era, já que marcou o fim do século XX, começo do século XXI.
Muito do que eu diria que era o formato padrão de uma banda, da forma mais tradicional, havia dissipado. É quase como se, depois do Nirvana, tudo tivesse sido erradicado e destruído — o que foi ótimo, porque nós precisávamos disso. E é por isso que o Hip Hop é tão dominante agora, e o Pop também. Enquanto antes os indivíduos se transformavam em artistas, agora você pode ser um artista individual.
Agora, você não precisa de um baixista, um guitarrista e um baterista. Você pode só trabalhar com um produtor ou por si só, então todo o conceito de uma banda mudou. Mas quando você traduz isso para uma performance ao vivo, não é a mesma coisa, né? Tem algo com ter um baixista, um baterista e um guitarrista no palco de um estacionamento ou qualquer lugar assim — um bar, enfim, não importa. Há algo que acontece quando músicos de verdade se comunicam uns como s outros. Então eu não queria jogar fora esse formato para o The Cult.
Porque, no fim das conas, o The Cult é uma colaboração de Billy Duffy e Ian Astbury. E quanto mais eu penso sobre isso, mais eu acho que o The Cult nunca foi uma banda, no sentido de que nós perdemos o nosso primeiro baterista [Nigel Preston], que morreu, e o Les [Warner] teve que ser demitido da banda porque, sabe, escolhas de estilo de vida, vício em drogas… e aí ficou impossível substitui-lo. Mas a banda de verdade mesmo provavelmente era com essa formação, e essa foi a última vez em que era relevante de verdade estar em uma banda, eu acredito.
Então isso tem sido uma constante colaboração e conversação entre Ian e Billy por praticamente 40 anos. E é assim que chegamos onde estamos hoje, na conversa que estamos hoje. O Billy tem uma liberdade muito grande enquanto guitarrista para se expressar, então ele está adicionando suas cores, texturas, linhas melódicas, passagens, estruturas de acordes, e eu estou adicionando a minha experiência individual, minha experiência de vida, minha visão.
Eu também contribuo com a música! É algo que na verdade eu não costumo falar sobre, na verdade. Mas o Ian na verdade contribui com a música do The Cult! Surpresa. [risos] Eu na verdade sou mais engajado no processo musical do que muitas pessoas talvez tenham percebido, e você pode sentir minha presença por todo lugar, especialmente nos últimos quatro álbuns. Eu estou em todo lugar neles.
E eu realmente passei a controlar mais os elementos visuais; então isso me deixou muito mais consciente sobre tocar e colocar a minha música nessa conversa. E eu acho que, para muitos fãs do The Cult, há uma percepção de que há sempre algo diferente acontecendo na banda. Tipo, sim, nós fizemos Electric (1987), nós fizemos Love (1985), nós fizemos Sonic Temple (1989), nunca mais faremos discos tão bons quanto esses. Esses álbuns aconteceram em momentos particulares. Você não consegue recapturar esse momento, essa idade, essa experiência onde você está hoje.
É por isso que todos os discos são diferentes, e a história continua. Então, aqui estamos nós, no 11º álbum. Estamos já bem dentro do século XXI, estamos no primeiro quarto, e essa é a nossa conversa Under the Midnight Sun.
TMDQA!: Eu entendo bem o que você está dizendo. Na minha visão, talvez o que tenha feito esse disco soar mais diferente é que ele retoma uma pegada mais dark, mais sombria, e ao mesmo tempo mais sensual, sabe?
Ian: Isso é demais! Eu gosto disso, gosto desse termo. Algo, tipo, suculento. Tipo, você consegue dizer quando a música é suculenta, é conectada, e as pessoas estão puxando de suas essências. Quando vem da cabeça, é muito pensado, é pragmático, e é quase como se fosse uma performance no sentido de que você está tentando ter algum tipo de validação externa, ou fazendo apenas para agradar o público, e eu acho que isso é muita falta de consideração, muito condescendente com o público.
Você está praticamente insultando a inteligência das pessoas e a inteligência emocional delas; é tipo, as pessoas são interessantes. Se você tirar um tempo de verdade para falar com a sua audiência — que são seres humanos, sabe… eu não sou melhor que ninguém. Eu vejo shows, eu vejo futebol, eu vou pra galera. Eu sou apenas um cara na multidão, não é nada demais.
Então, sabe, é por isso que eu acho a inteligência emocional do The Cult realmente bastante importante. Porque a gente considera sim essa relação no nosso processo criativo com a nossa plateia. Então, há muito mais vulnerabilidade, mais “suculência”, somos mais abertos e, nesse sentido, talvez mais dark, especialmente agora que estamos ficando mais velhos, então temos experiência de vida.
E tudo isso vai entrar na música. Nós não caminhamos pra trás, não estamos nos aposentando. Na verdade, se for parar pra ver, estamos afiando a faca!
TMDQA!: Legal você falar isso, porque quando eu ouço algo como “Give Me Mercy” o que me vem à cabeça é justamente que você e o Billy estão mais afiados do que nunca.
Ian: Sabe, eu estou sempre motivado. Eu ainda estou atrás de algo, e eu vou chegar lá eventualmente. Provavelmente quando eu morrer, sei lá. [risos] Deve ser algo tipo, mesas e garrafas e a reencarnação, e aí provavelmente já emendo com uma nova rodada tentando analisar o ciclo cósmico de onde eu devo estar e o que eu quero dizer para além do que eu sou.
Hoje em dia nós somos “pós” tudo. Agora somos até mesmo pós-linguagem. Digo, comandos de linguagem eram tão limitados. Sinto que estamos em um momento que, por falta de um termo melhor, é um renascimento psicodélico. Tudo está sendo ativado, todas aquelas pirâmides da Amazônia até a Costa Oeste, tudo está sendo ligado novamente. E algumas pessoas estão caindo feio, porque estão se apegando aos sistemas de valores antigos.
Tipo, eu tenho um Grammy, eu tenho um disco de ouro… vamos lá, isso é mesmo algum tipo de validação? Se eu vejo alguém levar uma criança a um show, e a criança responde positivamente, é aí que sabemos que temos algo bom porque temos algo completamente inclusivo para diferentes gerações. Tipo, tem os metaleiros, e a gente toca pra eles. Tem os fãs de Pop, e tocamos pra eles também. Há fãs de todo tipo de música diferente: pós-moderno, alternativo, qualquer coisa, Hip Hop, nós tocamos para todo mundo e não há nenhuma discriminação.
A política é: não há ninguém melhor que nós, a porta está aberta. É só vir do jeito que está, mas por favor não use calças khaki. Aí não dá. [risos]
TMDQA!: [risos] É bem legal você mencionar isso porque, como uma banda que estourou, como você disse, no final de quando ter uma banda era algo “necessário”, talvez com o tempo vocês tenham passado por alguns momentos mais difíceis e foram entendendo que o sucesso comercial não é tudo, né?
Ian: Nunca foi sobre isso, de jeito nenhum! Pra mim, nunca foi sobre isso. De verdade mesmo, honestamente. Essa é a minha forma de ganhar a vida, mas eu tenho uma vida bem modesta; eu não tenho uma frota de Ferraris ou Lamborghinis, nem nenhum tipo de forma vulgar de mostrar me dinheiro. Eu mal uso joias. E, quando eu tenho um pouquinho de dinheiro extra, eu amo roupas — mas eu compro sempre das recondicionadas ou de brechós. Eu não sou muito fã de, tipo, ir a uma loja e gastar uma quantia ridícula de dinheiro. Tudo meu é reaproveitado, até no palco, tudo é reaproveitado, é a minha forma de deixar minha marca e tentar reduzir a nossa emissão de carbono, viver com consciência.
Então, o dinheiro nunca foi o fator motivador. Sempre foi sobre o trabalho, sobre a performance. E é por isso que eu acho que Under the Midnight Sun ficou do jeito que ficou; nós não estamos tentando criar um trabalho comercial para sustentar ou reter um lugar na mesa do qual nós não precisamos. Não há uma mesa, há um lugar onde você conhece qualquer pessoa que se juntar, e essa ética veio da minha avó, sendo passado por várias matriarcas, e também através da música, desde o David Bowie até os dias atuais. E até hoje eu ainda fico absolutamente embasbacado com a criatividade e imerso em criatividade.
É nesse lugar que eu encontro alegria de verdade: estando com outros criativos, pessoas que pensam e consideram as questões cósmicas, as questões existenciais. E aí entramos na performance, que pode ser algo terrivelmente brutalista, niilista, narcisista, sei lá, cheio de alegria, suculenta, conectada, perigosa, incrível. Toda a bela arte, todos os grandes arquétipos, sabe? É isso que você quer. Um bom espaço de rituais: uma boa performance precisa de um bom espaço de ritual; você vem bem vestido, você vem preparado.
Algo vai acontecer. A gente não sabe o que, mas nós vamos entrar no palco. E se acertarmos em cheio, como fizemos da última vez que tocamos no Brasil, com o The Who e tudo mais, é uma catarse religiosa. E é isso que eu amo na América Latina, no Brasil. Meu Deus, cara, vocês têm algo tão mágico. Na Europa, no resto da América, todo mundo é tão dormente — acordem! É por isso que o ritmo precisa mudar, e está mudando. Lento demais pra mim.
É por isso que eu gosto de Los Angeles, é muito mais agitada e sinto que é bem mais próxima da América Latina por isso. Acho que dá pra sentir isso aqui e em Nova York também. Pra ser sincero, eu estava agora mesmo em Nova York e eu fico pensando tipo, “É, é essa energia que faz a cidade se mover”. Sabe, o que realmente faz a cidade se mover é essa diversidade, é o que faz Los Angeles se mover também. Além disso, temos os psicodélicos. A Costa Oeste está bombando agora. É bem empolgante.
TMDQA!: E tudo isso que você menciona está bem ligado à sua relação sempre muito forte com a diversidade. Apesar de britânico, você sempre esteve muito ligado à cultura nativa dos EUA, né? E agora temos essas minorias sendo mais integradas por um lado mas mais marginalizadas do que nunca por outro. Como você vê isso, como alguém engajado nisso?
Ian: Sabe, procurar essas conexões íntimas com essas comunidades marginalizadas, como você colocou — e eu entendo, mas eu sinto que nós temos que tomar muito cuidado com a terminologia. Quando as comunidades estão se identificando como marginalizadas, é essa a frequência que você joga para o mundo. Então, mesmo que eu venha de um grupo marginalizado enquanto imigrante… eu sou o filho imigrante de um refugiado de guerra. Meu pai foi um refugiado da Segunda Guerra Mundial.
Eu emigrei para outro país quando tinha 11 anos. Mesmo sendo um garoto branco, eu era tratado como todos os outros jovens imigrantes, não importava se fôssemos da Jamaica, da Turquia, não importava. Éramos nós e as crianças indígenas. Então eu me identifico com isso há muito anos, mas quando você joga essa frequência de que você é marginalizado ou algo assim, então essa será a maneira que você será visto — certamente através do olhar do velho branco tradicional, mas isso está morrendo. Está morrendo, quer queira ou não, bem na nossa frente.
Era tipo, “Ah, as revoluções, não precisamos nos preocupar com isso”. As revoluções já estão acontecendo. Essas pessoas vão morrer, eles são velhos. Vai mudar com ou sem eles, e a nossa intenção e os nossos indígenas estão caminhando pra frente e se organizando. E também acelerando muito bem de forma geral, especialmente com a tecnologia.
Então, agora estamos acessando informações a uma frequência muito grande, recebemos coisas demais. Os EUA estão falando sobre uso clínico de psilocibina e MDMA para os próximos dois anos. Por que será isso? Bom, nós podemos dizer o porquê, e nós sabemos que já custou trilhões de dólares para eles, além da saúde mental. E todo mundo está uma bagunça agora, então, sim, faz total sentido. Claro que faz. O planeta Gaia, ela tem um plano e a gente ouve atentamente.
E, certamente, nós ouvimos as nossas comunidades indígenas. E também as comunidades LGBTQ, ou comunidades que estão às margens que estão recebendo todas as informações, para que definitivamente possamos disseminar isso. Esse é um lugar com o qual eu me conecto, e as artes visuais são enormes, são realmente muito importantes. Há tanto a ganhar com a comunhão, especialmente com a pintura — você pode ficar de frente para uma pintura ou criar uma pintura, e não há linguagem ali além da frequência e do visual. Então, a cor é uma grande forma de comunicação; você vai ver que nós usamos cor no novo disco, e ela foi se revelando aos poucos. Mesmo quando é tudo em preto, há também algumas cores vibrantes, texturas.
TMDQA!: Sinto que as letras também dão o tom desse disco, porque tenho a percepção de que elas falam de temas que muitas vezes trazem uma abordagem direta mas de um jeito quase poético.
Ian: Foi uma forma de ampliar o sentido comum das coisas, ou pelo menos o que a mídia vem percebendo, ou o que o Twitter e as redes sociais estão dizendo, tipo, “Isso significa isso e aquilo significa aquilo”. Na verdade, tem um pouco mais de nuance. Não há um tamanho único, não há preto e branco apenas, não há apenas esquerda, direita e centro, todo mundo tem um pouco de tudo em si.
Sabe, se alguém chutar sua porta e você for um pacifista, o seu cérebro “animal”, o seu cérebro primitivo vai ser ativado e você vai proteger as pessoas da sua casa. Você vai proteger a sua família, o seu ambiente. E aí, de repente, é você que está do outro lado da faca. Então, coisas assim explicam por que protestos podem tão rapidamente se degenerar para a violência; um protesto pacífico pode se degenerar e virar violência muito rapidamente, às vezes de dentro mesmo.
Eu vejo plateias o tempo todo. E, quando você olha para plateias, é uma estranha massa sem forma. E você vai ver alguns indivíduos que estão muito desconfortáveis, ou talvez passando por problemas de saúde mental ou simplesmente tendo um dia difícil e, sabe, eles implodem. E aí as pessoas ao lado deles implodem. Logo em seguida, você tem uma briga, ou algo acontece. Então, essa ideia de que há um tamanho único, de que você pode falar das coisas de um jeito incrivelmente direto…
Tipo, no Reino Unido temos esse programa de TV chamado Hard Talk que é completamente sem sentido. Esse cara dispara perguntas para as pessoas para tentar pegá-las desprevenidas, e quando ele o faz, ele enfia a faca de uma vez. É televisão performativa. Isso não deveria ser um combate gladiatório, porque no fim das contas estamos falando de algo que tem uma importância grande demais, demais mesmo.
Tipo, “Eu ganhei, minhas ideias são as melhores”. Legal, você ganhou. Aqui está seu adesivo, sua pequena coroa, agora vai sentar ali. Você é um bom garoto, você ganhou. Mas e todo o resto das pessoas? E todas as pessoas ao seu redor? Elas não estão ganhando. Então nós precisamos nos juntar, nós precisamos nos unir para sermos bastante conscientes disso.
Então, pra mim, no meio da música — que é a frequência — certas palavras tem uma frequência melhor do que outras palavras. A linguagem é melhor que pornografia! [risos] Eu não diria que eu tenho um vocabulário vasto, mas eu tenho um certo vocabulário. Eu não sou da academia, eu não uso palavras como “prisão sólida” ou seja lá o que for. Eu só tento não usar linguagem normal, tento ir para algo que fica bom dentro de uma música, mas obrigado pelo comentário de dizer que é poético.
Eu acho que é bem sutil. Eu gosto de Mark Twain, eu amo Federico García Lorca, então, sabe, eu gosto de poetas sim. Eu adoro [Arthur] Rimbaud, eu adoro [William S.] Burroughs. Meu Deus, eu amo [Charles] Bukowski. Bukowski é de fato um cara, mas o sentimento de algumas coisas dele… a sua vida é sua vida, não seja levado à submissão sem pensar, tipo, isso é algo poderoso. Não deixe a vida te bater com uma vareta; pegue a vareta. É isso.
TMDQA!: Ian, muito obrigado pelo seu tempo. Foi um prazer conversar com você, e espero que vocês voltem ao Brasil logo!
Ian: Eu que agradeço. Se cuide!