O disco Alto da Maravilha, lançado por Russo Passapusso em parceria com Antonio Carlos & Jocafi pode ser definido como um belíssimo encontro de gerações.
O vocalista do BaianaSystem uniu forças com a dupla que está entre suas maiores referências na música e disponibilizou uma obra com 13 canções compostas e criadas à distância por esses três grandes artistas baianos durante a pandemia.
Comprovando a afinidade musical entre eles, os músicos exploraram no disco que contou com a produção musical de Curumin, Zé Nigro e Lucas Martins, elementos do afrofunk e do afrobeat. Tornando o trabalho ainda mais especial, algumas faixas apresentam samples de sucessos da dupla veterana.
A estreia ao vivo do “Alto da Maravilha”, aconteceu no segundo dia da sexta edição do festival Radioca, em Salvador. Te contamos mais detalhes em nossa resenha sobre o evento, confira aqui.
Antes de subirem no palco do Radioca, o TMDQA! conversou com Russo Passapusso para saber mais detalhes da criação do disco e o que essa obra significou para ele.
Confira nosso papo na íntegra abaixo.
TMDQA! Entrevista Russo Passapusso
TMDQA!: Russo, primeiro de tudo, acho que vocês não poderiam estar estreando esse disco de outro jeito que não fosse aqui na Bahia e principalmente na Cidade Baixa. Me fala, como você enxerga a importância de fazer esse show aqui?
Russo: Então, a primeira vez que eu perguntei pro Antônio Carlos sobre o que eles faziam música. Aí eles falaram, a gente faz música sobre a Bahia. E eles foram muito cedo pra o Rio de Janeiro, pra tentar a vida como compositores. Eles sempre retrataram esse lugar. Eu descobri que o mais bonito nas composições deles, eles são exímios compositores, eles são compositores, pessoas que ficam respirando a vida para transformar em música, pra preencher, pra entregar de volta pra gente. Aí eu percebi que tinha um lugar eternizado na memória deles que era essa Bahia, essa fotografia. E que pelo fato deles irem pro Rio, segunda capital do Brasil, isso ficou imortalizado, cristalizado, bonito, né? Na memória deles.
Quando eu comecei a compor com eles, eu já imaginava que o lançamento tinha que ser aqui em Salvador. Não esperava ainda que fosse na Cidade Baixa, e em lugar tão bonito como este lugar aqui. Eu tenho uma paixão por Margareth Menezes e ela tem partes aqui, ela é uma pessoa que tem envolvimento com esse espaço, fazendo o mercado iaô. Então, no final das contas eu acho que tem um sentido premonitório, um acompanhamento mesmo da deusa música guiando o nascimento desse disco. Foi muito importante.
TMDQA!: E falando um pouco sobre as composições. Eu queria saber como funcionou esse processo. Até porque eu vi que começou há bastante tempo até antes da pandemia. Como foi para alinhar esse projeto e escolher essas músicas?
Russo: Aconteceu em três fases. A primeira fase era meu sonho de conhecer eles. Lá na época do “Paraíso da Miragem” [disco solo de Russo de 2014], eu achava que eu não ia conseguir conhecer eles. Aí eu consegui. Primeiro ponto. Quando a gente saiu depois de se conhecer pela primeira vez em um programa de TV, a gente já saiu da porta compondo. E recompondo, ou seja, ele lembrava as músicas que eles já tinham feito e ia com a memória pra o dia que tinha gravado e solfejava e cantava e falava dos arranjos como se estivesse naquele momento. Materialização do momento através da música. Eu achei isso fenomenal. E aí, a partir daquilo, a gente já começou a trocar muita mensagem.
A segunda fase, eles não lidavam com celular. Então, pra compor era muito difícil, por quê? O que era difícil no início se tornou o grande barato. Primeiro eu ficava muito agoniado sem entender como seria. Eles não sabiam, por exemplo, como você apertava e jogava pra cima pra travar a gravação e ele poder tocar o violão. Então, se eles estivessem sozinho, era impossível. E eu tentando explicar, “não, aperta e joga” e eles: “mas como joga? O celular, por quê?”. Eu tenho esses áudios todos, era um barato. Eles faziam o quê? Eles gravavam em gravadores analógicos e aí depois gravava do gravador no celular. E aí mandava pra Márcia que é a companheira de Antônio Carlos, empresária deles que resolve e que ajuda e que é uma veia, de fato, um cordão umbilical de todo o processo, e ela me mandava. Eu gravava um pedaço, mandava pra ela, ela mandava pra eles, eles gravavam no gravador, ele ia na casa de Jocafi, fazia a composição, voltava, botava no gravador, botava no celular, mandava pra Márcia, Márcia mandava pra mim. Só que eu percebi que isso no começo eu achava meio complicado, depois eu comecei a perceber que nesse ir e volta e volta, as composições iam trazendo detalhes e brincadeiras e erros que viravam acertos, então a gente começou a curtir. Depois de um ano disso, eles já estavam feras no celular, a gente fez o nosso grupo e o nome do nosso grupo é “dupla de três”, que provavelmente seja o nome do nosso próximo disco. E aí as composições já foram acontecendo.
E a terceira parte de composição: eles compõem em cima de sinopse de vida, história de vida. Então, você chega pra compor alguma coisa e eles perguntam: “como é que você tá? E na sua casa? Cê tá bem? Sua mãe?”. Entende? Pra descobrir o que foi que fez você compor aquilo, porque nunca pode ser vazio, tem que ser sempre com história de vida. Aí virou brincadeira, alegria e maravilha.
TMDQA!: Russo, vocês pegaram vários samples de músicas antigas do Antonio Carlos e Jocafi, queria saber como foi pra eles assim, se desapegar de uma versão original e usar essas músicas em uma nova roupagem?
Russo: Isso sempre foi característica das composições deles. Eles caminham muito com o contexto histórico, geográfico, literatura, teatro, cinema. Tudo pra eles é pra se ressignificar. Eu como já vim do Sound Sistem, já entendia disso, de fazer versões. A Jamaica tem muito disso. Né? O samba reggae tem muito disso. Eu chamo de replantio musical e é umbigo da cultura. É o que não deixa a cultura morrer. É o que não deixa a gente esquecer, que a gente é apenas continuidade aqui. Então, esse já era um traço deles. E nesse disco foi maravilhoso, porque eles não só pegam as lembranças da memória, da cultura popular, “Vapor de Cachoeira”, “Marinheiro Só”. Não só isso, como eles também traduzem, transformam essas letras de acordo com o que está rolando no momento. Então aquilo que tá lá trás, não funciona como resgate de passado e sim como atualização. F5, né? Que é atualizar tudo. Então, a sensação é de que a gente tá atualizando.
TMDQA!: Ficou muito sensacional. E assim, você fez esse trabalho que são referências pra você e ao mesmo tempo você está apresentando eles para uma nova geração esse resgate da potência deles. Eu queria saber o quão importante é esse movimento, de apresentar essa voz deles para um público atual.
Russo: Assim, quando eles começaram a compor, eles começaram a compor no BaianaSystem. A música “Água” é deles, a música “Salve” tem eles, a música “Miçanga” tem eles e já estava no meio, já estava acontecendo, a juventude toda já estava ouvindo no show e já era a caneta deles. Os discos que eles fizeram, “Mudei de ideia”, “Você abusou”, “Cabaloerê” é uma faixa que muitos MCs dos Estados Unidos sampleam pra fazer hip hop. Então, eles já tem um elo com essa música moderna, já de frente pra história. Então assim as pessoas falam “ah, você conseguiu encontrar e tal”. Eu digo que nas gravações do disco eles que tinham as ideias de futuro e a gente ficava sempre preso a um referencial de tempo. Muito por causa da internet, itens relacionados, ficava com medo de ir pro oposto, de ir pro outro lado, de arriscar e eles não, nunca tiveram esse medo. Então, essa relação, assim, dentro de cada um ali, tem um pivete de dezoito anos, dezesseis. Vendo tudo que é novo, ouvindo sons do mundo e retraduzindo, traduzindo, fazendo novas versões a todo momento. Isso é muito bonito assim.
TMDQA!: Pra gente encerrar, o que você tira de mais significativo dessa parceria?
Russo: Reconstrução cultural, no momento que a gente vive hoje no Brasil, no momento político que a gente vive no Brasil, de valorização da nossa cultura, de valorização das compositoras e dos compositores da gente. De elo mesmo, com efeito catapulta: buscar atrás pra jogar mais na frente e a gente não ficar sem chão quando fala de futuro. A gente entender que tá aqui, tá agora. É aqui que tá sendo feito e passa cada segundo. Então, é o amor pelos compositores e pelas compositoras do Brasil. A gente tá falando mesmo de quem faz as músicas, de quem se entrega a deusa música. Eu acho que esse é o melhor momento porque eles são apaixonados, eles fazem música a todo momento. Se vacilar, eles tão ali dentro do camarim ali, agora, fazendo música. É incrível isso. Então, é mais essa relação com a música que é um amor, respeito de um amor de um músico pelo outro. Pacto. Se eu fosse relacionar isso tudo é uma relação de pacto. Pacto de um pelo outro, de um compositor pela compositora, compositora pela cantor. É um amor muito forte, muito grande que circunda essa história.
Ouça no player abaixo o disco “Alto da Maravilha”