O lançamento da minissérie Todo Dia a Mesma Noite, da Netflix, que fala sobre o incêndio da boate Kiss não agradou a todos.
A obra baseada no livro da jornalista Daniela Arbex, Todo Dia a Mesma Noite: A História não Contada da Boate Kiss (2018) estreou na última quarta-feira (25), três dias antes da tragédia completar 10 anos.
Após a repercussão da série, cerca de 40 famílias de vítimas e moradores de Santa Maria (RS) decidiram entrar com uma ação judicial contra o streaming por causa da produção que mistura realidade e ficção e aborda detalhes do incêndio que deixou 242 jovens mortos em 2013.
O coordenador do grupo, o empresário Eriton Luiz Tonetto Lopes, que perdeu a filha Évelin Costa Lopes de 19 anos na tragédia, disse que o sentimento é de indignação e injustiça e aponta que a plataforma não recebeu autorização dessas 40 famílias para dramatizar o caso. Ele declarou ao portal Gaúchazh (via HugoGloss):
Nós fomos pegos de surpresa, ninguém nos avisou, ninguém nos pediu permissão. Nós queremos saber quem está lucrando com isso. Não admitimos que ninguém ganhe dinheiro em cima da nossa dor e das mortes dos nossos filhos.
Queremos entender quem autorizou, quem foi avisado, porque muitos de nós não fomos. Há pais passando mal por causa da série. O mínimo que exigimos agora é que uma parte do lucro seja repassada para tratamento de sobreviventes e para a construção do memorial da Kiss. Nós não queremos nenhum dinheiro para nós.
Complicado…
Ação contra a minissérie da Boate Kiss da Netflix
O grupo contratou uma advogada de Santa Maria para orientá-los juridicamente e também para conduzir o caso contra a Netflix e questionar a destinação dos lucros da minissérie.
A advogada Juliane Muller Korb esclareceu ao portal Gaúchazh que o ponto principal da ação é abordar a responsabilidade afetiva e social dos streamings:
Todas as famílias sentem a mesma dor, mas de forma distinta, inclusive em relação a esta série. Todas têm mágoa com o poder judiciário e com a impunidade até aqui. A grande questão é que faltou sensibilidade, por parte da Netflix, de fazer um contato com os pais. Não para pedir permissão nem coibir a licença poética, pois a história não tem dono, mas para avisar que seria algo totalmente diferente de tudo que eles já viram.
A profissional disse que o impacto da série foi muito forte para os país e os sobreviventes pois “é uma simulação, uma reprodução, com rostos diferentes, com atores”. Ela declarou ainda que “eles estão ‘acostumados’ com o pós-tragédia, [mas] a série mostra o antes, então, é como se ocorresse de novo”. “É uma linha muito tênue entre ficção e realidade”, finaliza.
A advogada reforçou que seu intuito é fazer a interlocução com a Netflix negociando a doação de parte dos lucros para as vítimas, os sobreviventes e a construção de um memorial. Korb também declarou que a ação por danos morais e sequelas médicas é viável, pois alguns pais apontam que voltaram para a terapia após o lançamento da série.
Associação se manifesta sobre processo
Após a repercussão sobre o possível processo, a AVTSM (Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria) também decidiu se manifestar.
Apesar de não ter ligação com o grupo representado pela advogada Juliane Muller, a organização quis esclarecer que a ação não é de sua autoria. Em um comunicado, ela disse:
Perante a divulgação em inúmeros veículos da imprensa acerca de um Processo contra a empresa Netflix em função da série ‘Todo o dia a mesma noite’, a Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da tragédia de Santa Maria esclarece através dessa nota que estávamos sim cientes que a produção estava sendo realizada com base nos personagens do livro ‘Todo dia a mesma noite: a história não contada da Boate Kiss’ de Daniela Arbex, e sente-se representada por ela bem como pelo livro da autora.
A produção não retrata de forma individual os 242 jovens assassinados, mas sim um recorte das quatro famílias de pais que foram processados. Todos familiares de vítimas e sobreviventes retratados por personagens da obra estavam cientes e em concordância. Além disso, reiteramos que não estamos movendo nenhum processo contra as produções, nem pretendemos, por acreditarmos na potência das produções na luta por justiça e a luta por memória.
Acreditamos, acima de tudo, que tragédias como a que vivenciamos precisam ser contadas através de todas as formas. Recontar essa história significa denunciar as inúmeras negligências e tentativas de silenciamento que encontramos pelo caminho, além de auxiliar na prevenção para que esse tipo de tragédia não aconteça com mais nenhuma família, algo que temos como propósito desde o 1° dia de nossa fundação.
Mostrar o que aconteceu na Kiss faz com que a morte de nossos filhos e filhas, irmãos e irmãs, pais e mães, amigos e amigas não tenha sido em vão. Mostrar a morosidade, a burocracia e como é o sistema judiciário brasileiro serve como denúncia e como protesto. É preciso falar, debater, produzir materiais sobre o que aconteceu naquela trágica noite de 27 de janeiro de 2013, pois só assim conseguiremos que as pessoas entendam o que a ganância, a negligência e a omissão são capazes de fazer. Em Santa Maria, esses fatores mataram 242 jovens e deixaram 636 com marcas físicas e psicológicas.
Entendemos que rever a tragédia, principalmente nos dois primeiros episódios pode mobilizar os sentimentos, as lembranças e dimensionar a impunidade em sua ferocidade, e, com isso, a associação se disponibiliza a acolher e a promover ações pra comporem o movimento por justiça. Por fim, esclarecemos que desde o dia 27 de janeiro de 2013 nós sofremos com a perda irremediável de nossos filhos, irmãos e amigos, sabemos o quanto isso nos dói. Não há nenhum valor sendo pago a nós com a produção, e o que ganhamos é a crença no fortalecimento na luta por justiça e pela memória. Para que não se repita.
Até o momento de publicação desta matéria, a Netflix ainda não se manifestou sobre as questões levantadas pelas famílias.