TMDQA! Entrevista: Enter Shikari, "A Kiss for the Whole World" e o disco experimental mais Pop de 2023

Pesando a mão no experimentalismo sem esquecer do Pop, o Enter Shikari acertou em cheio com seu novo disco. Veja entrevista exclusiva com o TMDQA!

Enter Shikari
Foto por Jamie Waters

Poucas bandas são tão esquisitas quanto o Enter Shikari. Rock Progressivo, Electropop, Metalcore, Nu Metal, Hardcore… todos esses gêneros marcam presença em faixas aleatórias da carreira da banda britânica liderada por Rou Reynolds, que se tornou um símbolo da música pesada no Reino Unido graças a isso tudo.

Se recusar a caber em uma caixinha é um mérito irretocável do Enter Shikari, que está prestes a lançar seu novo disco A Kiss for the Whole World. Sucessor de Nothing Is True & Everything Is Possible (2020), o trabalho vem para se consagrar entre os melhores da já cultuada carreira da banda, apostando em uma sonoridade que encontra momentos Pop sem perder a essência do grupo.

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Acertando em cheio na estética e posicionando ainda mais a banda como algo único em uma cena que ficou conhecida por regurgitar sons idênticos, A Kiss for the Whole World é uma renovação não apenas sonora, mas também temática. Com letras densas que exploram temas pessoais e delicados, o álbum soa ao mesmo tempo como um manifesto e um desabafo.

Para tentar entender melhor tudo que inspirou esse trabalho sensacional, o TMDQA! conversou recentemente com Rou Reynolds e o resultado do papo você confere a seguir.

TMDQA! Entrevista Rou Reynolds (Enter Shikari)

TMDQA!: Oi, Rou! Que prazer estar falando com você. Como você está?

Rou Reynolds: Olá, Felipe! Estou bem, e você, como está?

TMDQA!: Por aqui tudo certo também. Queria começar te dizendo que estou absolutamente viciado no novo álbum, é tão bom. Acho que uma das minhas coisas preferidas dele, e que é algo tão comum na carreira de vocês, é que ele é um disco tão estranho! [risos] Digo isso da melhor forma possível, claro, porque é um excelente álbum e acho que essas esquisitices contribuem justamente pra isso. No processo desse disco, o que se destacou pra você na hora de experimentar com novas coisas?

Rou: Obrigado! [risos] Bom, foi bem diferente. Pra ser sincero, foi definitivamente o disco mais DIY que já fizemos. Éramos literalmente nós quatro da banda e o nosso engenheiro, George, e nós alugamos uma fazenda bem detonada na costa sul da Inglaterra e basicamente criamos nosso próprio estúdio temporário lá. E isso é algo que nunca tínhamos feito; no último álbum, eu tinha produzido mas com muita ajuda. Eu tinha assistentes de produção e engenheiros, gravamos em estúdios, mas pra esse nós não queríamos nenhuma dessas formas convencionais de fazer as coisas; essa coisa de tipo, ir pra um estúdio e falarem, “A bateria vai aqui, podemos usar esse microfone, podemos fazer isso e aquilo”, e você acaba caindo no mesmo caminho que um milhão de outras bandas já caíram.

A gente queria ter o nosso próprio espaço, e apenas ter a liberdade de experimentar e descobrir as coisas por conta própria. Então, foi um processo bem diferente. E a fazenda por si só era muito divertida. Era no meio do nada, não tinha nem eletricidade; era tudo com energia solar, não tinha nem aquecimento central. Então, a gente tinha que cortar lenha e queimar para se esquentar. Ficamos cozinhando uns pros outros. Foi uma experiência muito pura, muito enriquecedora. E eu estava lendo um livro do Henry David Thoreau, chamado “Walden”, no qual ele tinha vivido em umas florestas no meio do Massachusetts por alguns anos, e eu fui muito influenciado por isso.

E, por mais que estivéssemos saindo de uma pandemia onde ficamos todos bastante solitários, eu realmente só queria me enfiar no meio do mato e escrever um disco com 100% de foco na música.

TMDQA!: Que demais, e eu amei o resultado. Acho que uma das minhas preferidas é a faixa-título, e eu acho que é algo tão novo; eu acho que nunca ouvi nada como ela, nem sei como comparar, nem mesmo a outras coisas de vocês. Acho que vocês estão há mais de 20 anos se reinventando constantemente e ela é um ótimo exemplo disso. Quanto disso você atribui a estar constantemente renovando influências, ouvindo coisas novas, e quanto é realmente estar só experimentando coisas novas enquanto banda, seja nas configurações de gravação, como você falou, quanto nas jams ou coisas do tipo?

Rou: Acho que definitivamente até certo ponto tem essa questão da abertura. Eu falo por mim, pelo menos, e me sinto muito sortudo de ter crescido ao redor de tantos estilos diferentes de música e tantas influências diferentes. Sabe, minha mãe e meu pai tinham um gosto musical muito amplo. Meu pai era um DJ, predominantemente tocando Motown e Northern Soul, e minha mãe adorava muito Jazz de Big Band. Meu tio foi quem me apresentou a Dance Music; ele me mostrou The Prodigy quando eu tinha, tipo, 10 anos e eu fiquei tipo, “Uau, o que é isso?”. E aí, claro, eu descobri minha cena local de Punk e Hardcore, e eu tocava trompete na orquestra da escola, então eu gostava também de música clássica. Então, sabe, tem tudo isso rolando ao mesmo tempo. Mesmo enquanto jovem, meu paladar já era bem amplo.

Acho que isso permitiu que eu me sentisse confortável ao redor de diferentes tipos de música, de diferentes gêneros. Então, quando eu comecei a escrever músicas, era simplesmente essa grande junção de todas as coisas diferentes. Acho que por conta disso tudo, até hoje, 20 anos depois, eu ainda fico confortável experimentando e empurrando os limites do meu conhecimento e da minha experiência, e é isso que torna tudo emocionante pra mim. Acho que há muita música bonita e interessante por aí, e sempre é divertido; eu ouço algo novo e eu sempre quero saber, “Ah, como eles fizeram isso? Isso é interessante, é legal que eu tenha me sentido de tal e tal forma”. Eu quero que as pessoas sintam isso também, sabe? Então, é algo que sempre influenciou.

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TMDQA!: Faz todo sentido! Por conta disso tudo, acho que é bem difícil colocar vocês em uma caixinha. Mas sinto que dá pra dizer, ao menos de certa forma, que vocês são parte dessa cena “core”, que curiosamente pra mim é algo que eu associo tanto com os EUA. Mas ao mesmo tempo, vocês são tão famosos no Reino Unido e nos EUA, acho que até pelo tanto que são experimentais e diferentes, não estouraram tanto assim. Você acha que esse contexto todo que você citou, inclusive essa cena toda do The Prodigy e o Electropunk e tudo mais, foi o que ajudou a acostumar as pessoas com isso e popularizar vocês na Europa?

Rou: Sim, com certeza. Eu acho que se usarmos o Reino Unido como exemplo para falar de maneira geral da Europa, há muitas influências que foram apresentadas a nós simplesmente pela localização geográfica. Eu sinto que os jovens americanos que cresceram na mesma época que eu foram apresentados majoritariamente ao Grunge e ao Punk, e eu acho que isso é, de certa forma, mais limitado. Acho que os EUA gostam de suas divisões, sabe? Isso é Hip Hop, isso é Grunge, isso é aquilo e aquele outro. Tudo é bem imediato e você entende na hora.

Claro que estou generalizando bastante, então não leve tão literalmente, mas eu acho que na Europa há um pouco mais de vontade de experimentar. Especialmente quando você pensa em todos os estilos de Dance Music que vieram de cidades multiculturais como Londres e Berlim… sempre houve essa força empurrando as coisas para o limite, para uma vontade de progredir.

Eu acho que o motivo pelo qual não somos tão grandes na América do Norte quanto somos no Reino Unido é porque somos difíceis de entender se você não tem esse pano de fundo. Se você não ouviu The Prodigy, se você não ouviu o Post Punk, que foi gigantesco no Reino Unido, e até coisas como o Northern Soul que foram muito maiores aqui do que nos EUA, que praticamente só ficou com o som da Motown mesmo. Então, acho que todas essas aventuras culturais meio que moldaram o nosso som e, por conta disso, acho que nos faz ser maiores em alguns lugares e acaba nos impedindo de crescer em outros.

TMDQA!: Concordo plenamente. Nesse sentido, acho que “It Hurts”, que é minha música preferida do disco, é um bom retrato porque ela tem uma sonoridade bem Pop ao mesmo tempo em que tem todos os elementos que fazem o Enter Shikari ser tão único. Acho que é uma música que tem o potencial de alcançar um público bem maior, até porque é tão difícil definir o que é Pop, né? Mas sinto que ela traz uma maturidade ao som de vocês que pode conversar com mais gente. Então, queria saber: como vocês chegaram nessa maturidade sonora que tornou a existência de uma música como essa possível?

Rou: Eu acho que muito disso é crescimento. E… peraí, o cachorro do meu irmão tá vindo aqui. [risos e pausa para fazer carinho no cachorro]

TMDQA!: [risos] Que cachorro lindo!

Rou: [risos] Mas é, acho que foi necessária muita competência para que a gente pudesse começar a incluir mais melodias e, sabe, mais sensibilidade Pop nas músicas. Se você pegar o álbum The Spark, aquilo era a gente se rebelando contra a ideia das pessoas de que éramos simplesmente uma banda de Hardcore Punk ou Metalcore ou qualquer coisa assim, porque pra gente sempre foi claro que esse não é o caso. Tipo, é uma influência gigantesca pra gente, mas não é o único tipo de música que queremos trazer.

Então, acho que com o passar dos anos a gente tem tido cada vez mais competência para sermos capazes de deixar uma melodia brilhar e dar a ela o espaço necessário. Eu acho que em vários dos nossos primeiros álbuns… vamos pegar o álbum antes de The Spark como exemplo: em The Mindsweep, tinha uma coisa muito Prog Rock. Era bem expansivo, bem experimental, várias músicas longas que te levavam em jornadas diferentes e sempre tinha muita coisa acontecendo. E eu às vezes acho que isso era quase como se essas coisas foram escritas porque eu estava em um momento da vida onde eu talvez não tinha uma grande autoconfiança e eu ficava tipo, “Ah, temos que jogar tudo isso aí, temos que fazer de tudo pra que isso seja o mais interessante possível, pra que seja esse disco super recheado e com texturas”. Acho que, agora, eu fico mais confortável com a ideia de só dizer, “Ok, essa é uma melodia ótima, vamos só apoiar isso ao invés de ficar jogando um monte de coisa em cima”.

E isso levou bastante tempo, eu precisei aumentar bastante minha confiança. Mas, sabe, eu estou realmente feliz por termos chegado nesse ponto. Porque eu acho que, sabe, eu espero que essa música converse com mais pessoas sem perder qualquer autenticidade, sem perder o sentido de quem nós somos. Isso é quem nós somos e quem nós sempre fomos, nada mudou. Acho que só ficamos melhores enquanto compositores e produtores.

TMDQA!: É, eu acho que foi exatamente esse o resultado. Dá pra ver claramente a identidade de vocês, mas ao mesmo tempo tem esse apelo que é super novo. É uma música incrível, estou apaixonado mesmo. [risos]

Rou: Muito obrigado! Fico feliz com isso.

TMDQA!: Sinto também que todas essas coisas que você falou, em relação à autoconfiança e tudo mais, são elementos presentes também nas letras do Enter Shikari há tempos. Acho que vocês falam sobre tantas coisas, desde aspectos pessoais da vida até política, e isso é incrível. Falando especificamente desse disco, como vocês equilibraram tudo isso e quais temas foram mais presentes pra vocês?

Rou: Por eu não ter escrito nada por efetivamente 18 meses durante a pandemia e tudo mais, eu tive dois anos de experiência de vida e emoções crescendo dentro de mim sobre os quais eu precisava escrever. Então, havia todo tipo de coisa pra falar sobre, inclusive várias que nem entraram no álbum, mas as coisas pareciam estar centradas em autodescobertas e poder e a sensação de não ter poder e as dinâmicas envolvidas nisso. E aí coisas como a alegria, sabe, como é o caso da primeira música, “A Kiss for the Whole World”.

Ela é basicamente a nossa “Ode à Alegria”, a famosa música do Beethoven na qual ele usa as letras do poeta Friedrich Schiller e seu poema “Ode à Alegria”. Foi a primeira música que eu aprendi no trompete, basicamente, e eu queria fazer a própria “Ode à Alegria” do Enter Shikari. Achei que seria interessante porque, em 2023, vivemos em um período muito, muito diferente do que aquele em que Schiller e Beethoven viveram. E eu senti que as diferenças entre nós no sentido de como vivemos a alegria eram interessantes.

Acho que, hoje em dia, a alegria é muito mais frágil, é muito mais efêmera, sabe? Quando sentimos alegria, é difícil se apegar a ela porque sentimos alegria apenas por um breve momento, já que logo lembramos que temos todas essas crises; a direção do mundo não é boa. Há muitas coisas que a humanidade precisa consertar muito, muito em breve, ou todo o futuro da humanidade será questionado. Então, é bem difícil se apegar à alegria, mas “A Kiss for the Whole World” é tanto sobre isso quanto sobre a importância de se apegar à alegria, porque a alegria é como uma força motivadora. É uma força que conecta, que energiza. Então, se vamos atacar todos esses problemas e tornar o mundo um lugar melhor, precisamos estar confortáveis vivendo alegria.

E isso é só a primeira música! [risos] Tem tantos outros temas no álbum.

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TMDQA!: Nossa, mas é muito legal, as letras são muito boas. Dá pra fazer um mergulho em cada uma delas. Pra seguirmos aqui, tem uma coisa que eu acho inacreditável: são 20 anos de banda e vocês nunca vieram ao Brasil! Além de tudo, já vi uma outra entrevista onde você se diz fã de música brasileira, o que torna mais absurdo ainda. Como estão os planos pra isso?

Rou: Nossa, o Rob, nosso baterista, sempre traz algumas músicas brasileiras pra gente porque há alguns ritmos muito interessantes que costumam nos inspirar bastante. Mas, olha, a gente sempre quis ir aí. É uma pena, acho que o único lugar da América Latina que já tocamos é a Cidade do México. Acho que precisamos fazer um esforço um pouco maior, porque há tantos países maravilhosos para visitar, e nós sabemos que há muitas pessoas aí que gostam da nossa música. Até o momento, só não conseguimos ajustar isso. Não sei se por falta de recursos ou só por questão de agenda e tudo mais, mas definitivamente vamos tentar fazer isso acontecer em breve. A gente realmente adoraria ir.

TMDQA!: Pra fechar, sei que esses últimos anos têm sido uma loucura, ainda mais com a pandemia. E vocês lançaram um disco justamente nesse período, né? Queria saber o quão importante foi ter o final de 2021 e o ano passado pra fazer a turnê desse álbum antes de lançar esse novo material, ao invés de só lançar o disco novo e fazer uma turnê de tudo.

Rou: Eu achei esse período todo uma grande loucura. E sabe, quando você escreve uma música, eu acho que você não entende essa música completamente até que você apresente ela ao vivo. É só ali que ela meio que atinge sua última forma, sua forma verdadeira, na qual você sente a energia no local e como ela se conecta com as pessoas. Então, sabe, durante a pandemia, quando ficamos um ano e meio sem poder tocar, foi tudo tão frustrante. Porque nós tínhamos toda essa expectativa e nós fizemos tanto esforço, colocamos nosso amor, nosso suor, nosso sangue e nossas lágrimas nessas músicas que escrevemos e aí não pudemos tocá-las ao vivo. Isso foi péssimo.

Agora, dessa vez, estamos fazendo o completo oposto. Nós lançamos um single e aí fazemos vários shows, pelo menos aqui no Reino Unido. Hoje [no dia da entrevista] nós lançamos “Bloodshot”, e aí vamos tocar na semana que vem. Então, estamos tendo certeza de que podemos tocar as músicas logo de cara, e aí descobrimos do que essas músicas realmente são feitas.

TMDQA!: Faz sentido. Rou, muito obrigado pelo seu tempo. Foi um prazer conversar com você! Até a próxima.

Rou: Obrigado você! Se cuide.

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