Mdou Moctar é um dos artistas mais empolgantes e inovadores da atualidade e um dos nomes mais díspares no line-up do C6 Fest, que acontece nesta semana no Rio e em São Paulo.
Depois de passar por alguns dos principais palcos mundiais, o guitarrista versátil chega ao Brasil pela primeira vez com a sua banda, em turnê com o elogiado álbum Afrique Victime. O grupo se apresenta no dia 20/05, na Tenda Heineken (Parque Ibirapuera), em São Paulo.
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Artista único desde o berço
Originário da República do Níger, Moctar conquistou os corações dos amantes da música global com sua habilidade excepcional na guitarra e sua abordagem inovadora ao rock psicodélico do deserto. Não que esses adjetivos importem: ele é sincero ao dizer que não distingue gêneros musicais, se baseando apenas em uma visão moderna para a musicalidade tradicional das suas origens.
Nascido em uma pequena vila, Mdou mostrou grande interesse pela música desde cedo. Sem acesso a instrumentos convencionais, ele construiu sua primeira guitarra usando restos de madeira, cabos de bicicleta e uma lata de atum. Esse ato criativo e determinação o definiriam como um músico único e resiliente ao longo de sua carreira.
Em sua juventude, Moctar encontrou inspiração em lendas da guitarra como Jimi Hendrix e Eddie Van Halen, mas principalmente mergulhou nas tradições musicais tuaregues e nas sonoridades do blues. Essa combinação de influências ecléticas resultou em um estilo musical autêntico, enérgico e inconfundível.
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Virtuose de Mdou Moctar chama atenção
No entanto, o caminho para o sucesso não foi fácil para Moctar. Na sociedade conservadora do Níger, a música moderna e os estilos de vida associados a ela enfrentavam resistência. Apesar das adversidades, ele persistiu, fazendo apresentações em casamentos e eventos sociais, gradualmente conquistando fãs leais e se tornando um ícone musical underground.
Foi em 2010 que Mdou Moctar ganhou projeção internacional com o lançamento de seu primeiro álbum, Anar. Com uma sonoridade única, que misturava riffs de guitarra frenéticos com letras que abordavam questões sociais e políticas, o álbum recebeu aclamação crítica e abriu portas para Moctar em uma escala global.
Desde então, ele lançou vários álbuns de destaque, incluindo Afelan (2013) e Sousoume Tamachek (2017), que foram bem recebidos pela crítica e pelo público. Suas performances ao vivo, energéticas e cativantes, chamaram a atenção de fãs em todo o mundo, consolidando sua reputação como uma atração recorrente nos cartazes dos festivais mais antenados e diversos do mundo.
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Um talento que vai além da música
Mdou Moctar é muito mais do que apenas um talento musical: ele também é uma voz para os marginalizados e uma força para a mudança social. Suas letras abordam questões como a pobreza, a desigualdade de gênero e a luta por liberdade em uma região que enfrenta desafios significativos. No próximo disco, ele promete ampliar sua visão para além da África, mostrando que os abusos de poder estão em todos os lugares.
Nesta entrevista exclusiva, o artista fala ao TMDQA! sobre suas raízes no deserto do Níger até o estrelato global.
Mesmo com a dificuldade da língua – seu inglês ainda não acompanha a velocidade com que sua carreira progride -, ele conversa de forma sincera sobre o não deslumbramento com os palcos mainstream. Confira abaixo este mergulho em sua música, suas influências e suas visões para o futuro e conheça o homem por trás das melodias hipnóticas, das letras envolventes e do legado inspirador de um artista que está apenas começando!
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TMDQA! Entrevista: Mdou Moctar
TMDQA!: Muito obrigada pelo seu tempo, Mdou. Estamos empolgados que você finalmente vem ao Brasil. E acho que será sua primeira vez aqui. Estou certa?
Mdou Moctar: Sim. Primeira vez.
TMDQA!: Então… quando você ouve Brasil, quando você ouve São Paulo, o que vem à sua cabeça?
Mdou: Eu só penso em futebol. É, sou um grande torcedor do time do Brasil. Eu amava Ronaldo quando era jovem.
TMDQA!: Sim, foram bons tempos.
Mdou: Foi tipo, o melhor time para mim.
TMDQA!: E a música? Você sabe alguma coisa sobre música brasileira?
Mdou: Não, não, para ser honesto. Não sou uma pessoa que ouve muita música. Eu ouço música tradicional. Isso não significa que eu não goste de música moderna, eu adoro, mas mas eu ouço principalmente música tradicional.
TMDQA!: Faz sentido.
Mdou: É de onde vem a minha música.
TMDQA!: Verdade. Você estará aqui tocando seu último álbum, Afrique Victime. Me desculpe se estou massacrando a pronúncia!
Mdou: Não, é isso mesmo.
TMDQA!: Eu sinto que é um álbum sobre beleza e poder. Mas também é político. No início, sua música era principalmente instrumental. E agora você pode falar com mais clareza o que quer dizer, certo? Por que foi importante para você se posicionar nessas letras?
Mdou: Para mim, o mundo está ficando muito louco. Temos que pensar nisso. E então Afrique Victime fala sobre um monte de coisas – por exemplo, o crime e as coisas acontecendo na África. Você entende o que quero dizer? Eu apenas digo o que sinto.
TMDQA!: Isso é honesto. E eu sinto que você pega o que a maioria das pessoas esperaria de um músico tuaregue e o torna seu. Quais são os desafios de adotar uma abordagem mais moderna para essa música tradicional?
Mdou: Todo mundo tem seu próprio jeito de fazer música. Gosto do que os tuaregues fazem, mas sou uma pessoa muito curiosa em relação à música. Quando comecei, meu primeiro álbum foi todo com auto tune. Eu queria experimentar o auto tune no estilo tuaregue. Eu não estudei música formalmente. Não sei o que é rock, jazz ou blues. É algo muito novo para mim. Estou começando a ouvir essas comparações, quando comecei a turnê. É a primeira vez que ouço sobre minha música ter isso. É rock ou blues, ou… eu não sabia disso antes. Estou apenas tentando ver o que acontece quando você tenta fazer música tuaregue acelerada.
TMDQA!: Eu vi no Spotify que os lugares onde as pessoas mais ouvem sua música são Londres, onde você vai tocar na próxima semana; Melbourne, Los Angeles, Sydney, Brooklyn. Você sente que as pessoas nesses lugares ainda vêem a música africana como exótica ou étnica? Ou as pessoas têm mais conhecimento sobre sua cultura? Eles entendem mais?
Mdou: Eu sinto onde quer que eu vá, eu apenas vejo amor. E vejo as pessoas muito felizes. Alguns cantam comigo quando eu toco. Isso significa que eles sabem o que está acontecendo. Porque em nosso álbum, escrevemos de uma forma muito tradicional tudo o que fazemos. Eles sabem o que está sendo dito e mostram seu apoio.
TMDQA!: A música é universal, certo?
Mdou: É, sim.
TMDQA!: Eu li que você viralizou antes do Tik Tok! Porque sua música se espalhou via Bluetooth, certo?
Mdou: Sim, isso é verdade.
TMDQA!: Quão surpreendente foi isso? E agora como você vê as possibilidades muito maiores que você tem, com streaming e selos mais globais, como Matador e Third Man Records por exemplo?
Mdou: Eu vejo muita experiência, porque todo mundo trabalha duro e todo mundo leva a sério. A Matador leva muito a sério nos ajudar em lugares onde não temos o poder de fazer algo acontecer, então eles nos dão uma força. Tocamos no deserto, então isso tudo é muito importante para nós. No novo álbum, Afrique Victme, tocamos em Niamei [capital do Níger], tocamos com as novas gerações. Todas essas coisas, é a Matador cuidando disso, isso é tão adorável. Eles me dão a sorte de fazer o que eu sinto. É poder.
TMDQA!: E quando você estava começando, você construiu sua primeira guitarra. Tenho certeza de que naquela época você provavelmente preferia comprar uma. Mas você sente que ter construído sua própria guitarra lhe deu uma visão diferente do instrumento, de seu funcionamento interno?
Mdou: Para mim, é sobre amor. Quando você ama algo, você vai dar um jeito de fazê-lo. É como quando alguém te coloca na selva e você quer sobreviver, você tem que imaginar o que vai fazer para sair. É o mesmo para mim, porque eu era muito jovem e não tinha dinheiro para comprar uma guitarra. A gente não tinha uma loja, o lugar onde você vai comprar a guitarra, isso a gente não tinha. Não tinha onde comprar guitarra. Era difícil. Se você via alguém com um violão, é apenas alguém que vem da Líbia ou da Argélia. Ele comprou um e depois está no deserto com o violão. E ele não pode vender isso para ninguém. Eu amo a guitarra. Tenho que tocar, tenho que ser músico. E aí construí minha primeira guitarra com madeira e as cordas eram da minha bicicleta. Eu abri, peguei o cabozinho do freio. Eu arranjei tudo e depois toquei. Usei também o abridor da lata de atum.
TMDQA!: Tipo aquele anel de metal?
Mdou: Sim, isso mesmo.
TMDQA!: Uau, isso é muito criativo. Falando em guitarra, vi essa citação, acho que está no livro “I feel everything you say, I feel everything you hear”. Você compara a guitarra a uma arma, que te dá respeito, mas também é uma mãe que dela brota o poder de mudar a sua realidade. Como você se sente sobre o instrumento agora e o que ele representa? Quero dizer, isso mudou ao longo dos anos, o que a guitarra significa para você?
Mdou: A guitarra significa tudo. Significa muitas coisas para mim. Quando estou deprimido ou quando vou chorar, a guitarra me acalma. A guitarra é o meu trabalho, como músico. É algo voando comigo em todos os lugares.
TMDQA!: Dá asas, né?
Mdou: Isso mesmo, me dá asas.
TMDQA!: Eu li em algum lugar que você é considerado o “Jimi Hendrix do Saara”. Essas comparações te deixam orgulhoso? Ou com raiva?
Mdou: Sim, você sabe, eles me chamam de “o Jimi Hendrix do deserto”. Eu amo Jimi Hendrix, eu aprecio isso. Eu sou um fã dele. Mas eu sou Mdou Moctar. Porque, olha, eu sou o Jimi Hendrix do deserto; o Bambino é o Jimi Hendrix do deserto; Farka Touré é o Jimi Hendrix do deserto. Acho que todo mundo é o Jimi Hendrix do deserto! (risos)
TMDQA!: Eu sei! (risos)
Mdou: Sim, isso não faz sentido para mim. Eu amo Jimi Hendrix porque ele era muito talentoso, mas eu não sou ele.
TMDQA!: Havia apenas um Jimi Hendrix e apenas um Mdou, certo?
Mdou: Sim! E no deserto, todo mundo é Jimi Hendrix! (risos)
TMDQA!: Mas vocês começaram como uma banda solo e agora trazem uma vibe mais coletiva para o projeto, vocês se apresentam como uma banda agora. Como isso é diferente para você, criativamente?
Mdou: Não é uma diferença grande. No começo era só eu porque não tinha uma banda. Estava apenas tocando por prazer. E aí comecei a tocar com o Ahmoudou, o segundo guitarrista, e a banda foi crescendo, aos poucos.
TMDQA!: Foi natural então.
Mdou: Sim, foi natural.
TMDQA!: E agora você está tocando nos maiores palcos do mundo, da Sydney Opera House ao New Orleans Jazz Fest. É tudo o que você sonhou que seria?
Mdou: Eu não sei, ninguém sabe sobre o futuro. Tenho certeza que vai ser ótimo, mas não sei o que está por vir. Acho que talvez algo aconteça no futuro. Mas eu não sei o que será.
TMDQA!: Claro, quero dizer, agora que você toca em palcos maiores, você sente que eles são o que você pensou que seria? Ou é diferente do que você imaginava?
Mdou: É diferente do meu começo, mas não é diferente do que eu imaginava. É muito diferente, porque lá em casa eu só tocava com 10, 20 pessoas. Você se senta, faz chá e depois toca – de graça, não por dinheiro. Apenas entre amigos. E agora estou começando a tocar nos palcos maiores, é muito diferente para mim.
TMDQA!: Aposto que sim. E agora, depois de voar por todo o mundo com sua guitarra, quando você volta para casa, isso lhe dá uma nova apreciação do que você sente falta quando está em turnê?
Mdou: Claro, claro.
TMDQA!: Do que você sente mais falta?
Mdou: Sinto falta da minha família. Família é algo muito importante para mim. Eu sei que para todos, mas sim, eu sinto falta deles. Se fico um dia longe deles, sinto falta. E também sinto saudade da comida.
TMDQA!: Agora, seu último disco foi obviamente muito bem recebido, e você até lançou um álbum de remixes. Então o que vem depois? Você começa a trabalhar em novas músicas enquanto está em turnê?
Mdou: Já terminamos o novo álbum. Terminamos a gravação, tudo. Vai chegar talvez em julho, não sei. Mas acabamos de terminar um novo álbum.
TMDQA!: Uau. OK. Você pode me dar alguma dica, algum spoiler de onde você está indo com este novo álbum, sonoramente, musicalmente?
Mdou: Fala bastante sobre política. Estou falando sobre o que está acontecendo no mundo. O mundo está ficando louco pra mim. E então o material é muito humano, você vai ver o que aconteceu entre a Rússia e a Ucrânia… Eu sinto que quando você é forte, você tem o poder de fazer o que quiser. Estou falando de coisas assim.
TMDQA!: Coisas assustadoras.
Mdou: Coisas muito assustadoras.
TMDQA!: Você conheceu e até tocou com alguns dos maiores guitarristas da atualidade. Existe alguém que você admira hoje em dia, tanto como modelo para tocar o instrumento e talvez até para administrar sua carreira?
Mdou: Eu não sei o que dizer…
TMDQA!: Não? Alguém que sirva de inspiração para você?
Mdou: Sim, eu me inspiro na música tradicional da minha cidade natal, que me inspirou muito. Quero manter as mesmas inspirações. Sou curioso, mas agora só quero continuar fazendo o que faço e ver o que vai acontecer. Eu construí meu estilo com música tradicional e quero ver onde isso vai me levar no futuro, qual é o resultado. Eu apenas trabalho.
TMDQA!: E eu só tenho uma última pergunta, e vou deixar você ir. Mas você ainda é muito jovem. E como você disse, há um longo caminho a percorrer. Então…
Mdou: Obrigado, mas não sou jovem! (risos)
TMDQA!: Não? Desculpa, quantos anos você tem?
Mdou: Tenho 39 anos.
TMDQA!: Viu? Tenho 35. Então você não está tão à frente! Mas onde você vê a música levando você no futuro? O que você gostaria de alcançar?
Mdou: Não sei se tenho essa imaginação. O mais importante para mim é fazer as pessoas felizes. Até se são só três pessoas no meu show, se eu as deixar felizes, eu estou feliz. Não é que eu pretendo ser um grande artista, muito, muito famoso. Não é o que eu preciso. Para mim, apenas quero fazer as pessoas felizes. Eu quero que as pessoas entendam a mensagem do que está acontecendo.
TMDQA!: Acho que serão mais de três pessoas para te ver aqui no Brasil! Então, espero que você se divirta e que se sinta bem-vindo.
Mdou: Obrigado, te agradeço por isso!