Os documentários fazem parte de uma área cinzenta da narrativa. Afinal, são jornalismo ou cinema? Na verdade, podem ser ambos – ou nenhum dos dois, dependendo do nível de sensacionalismo e das técnicas usadas.
O que muita gente não sabe é que, mesmo para contar uma história real, os documentários usam de estratégias mais associadas à ficção, como a construção de personagens e arcos narrativos ou mesmo encenações.
Alguns filmes levam isso a outro patamar, brincando com o conceito híbrido do real e do teatral, como artifício para contar histórias muitas vezes pesadas e de trauma.
Documentários usam elementos da ficção?
Não é nenhuma novidade que documentários usam elementos da ficção desde que surgiram.
Nanook, o Esquimó é um filme seminal dirigido por Robert J. Flaherty, que retrata a vida dos inuítes no Ártico canadense combinando elementos de observação direta e encenações. Flaherty passou anos vivendo entre os inuítes para capturar autenticamente suas atividades diárias, mas também recriou algumas cenas para enfatizar aspectos específicos da vida na região, exemplificando assim um documentário híbrido que influenciou o desenvolvimento do gênero.
Diferente do tradicional festival de cinema documental, É Tudo Verdade, esses filmes revelam acontecimentos surpreendentes na vida de pessoas comuns, porém recorrendo a atores, a textos memorizados e a encenações que vão muito além da reconstituição. Seria esse um caminho diferente para chegar à verdade?
Essa é a provocação que os filmes colocam. Embora não seja algo novo no cinema, esse artifício está presente em um dos mais celebrados filmes indicados em 2024 ao Oscar de Melhor Documentário: As Quatro Filhas de Olfa. Saiba mais sobre este e outros filmes com narrativas nada convencionais logo abaixo!
5 documentários que mesclam realidade e encenação
As 4 Filhas de Olfa
Dirigido por Kaouther Ben Hania e distribuído pela Synapse Distribution atualmente nos cinemas, o longa narra a vida de Olfa, uma mulher tunisiana cujas duas filhas mais velhas desapareceram. Com a intenção de retratar sua história de forma autêntica, a diretora recrutou duas atrizes para viverem com Olfa e reencenarem os eventos, além de uma terceira para interpretar a mãe.
O documentário foi iniciado em 2016 mas, nas primeiras filmagens, que ocorreram apenas com Olfa e suas duas filhas mais jovens, Kaouther percebeu que não estava capturando um momento genuíno da história daquela família. Então, a produção foi pausada e retomada posteriormente com a inclusão das atrizes, curiosamente para proporcionar uma interação mais verdadeira entre os personagens.
A inserção das atrizes foi fundamental para capturar os momentos mais íntimos da vida de Olfa, permitindo-lhe refletir sobre seu passado através da interação com as personagens interpretadas.
O filme recebeu aclamação da crítica e conquistou prêmios em festivais renomados, incluindo uma vitória no Golden Eye de documentário em Cannes, e agora concorre ao Oscar 2024 de Melhor Documentário em Longa-Metragem, destacando-se como uma poderosa narrativa sobre rebelião, violência e esperança na jornada de uma família marcada pelo desaparecimento de suas filhas.
O Tenho Mais Discos Que Amigos! teve acesso antecipado ao filme em uma sessão para a imprensa. As 4 Filhas de Olfa é uma narrativa impactante sobre as vidas das mulheres marcadas pelo trauma e escassez emocional, e sobre como essa bagagem vai se perpetuando de geração em geração.
Embora as filhas de Olfa não tenham morrido – e o que de fato aconteceu com elas só é revelado no final do filme -, trata-se de uma história sobre luto e diferentes visões de mundo.
A interação com as atrizes não fica forçada em momento algum. Elas ajudam a trazer à tona alguns dos momentos mais marcantes na vida dessas mulheres, funcionando quase que como uma sessão de terapia para todos os envolvidos. A sensibilidade com que a diretora capta a honestidade brutal dessa história é marcante.
César Deve Morrer
Esta é uma obra singular que mergulha na psique dos detentos de uma prisão de segurança máxima na Itália, enquanto eles se entregam à montagem da peça Júlio César de William Shakespeare.
O filme não apenas captura a intensidade das emoções dos prisioneiros ao se entregarem à arte teatral, mas também oferece uma visão poderosa sobre questões mais profundas de liberdade, redenção e humanidade, fazendo uma correlação entre a peça e os crimes que levaram aqueles mafiosos ao cárcere.
Ao mesclar a realidade da vida na prisão com a ficção da obra de Shakespeare, os diretores Paolo e Vittorio Taviani – o primeiro, recém-falecido e celebrado por sua obra – exploram os limites entre a realidade e a representação, desafiando as noções convencionais de identidade e destino.
Jogo de Cena
Dirigido por Eduardo Coutinho, este é um documentário que desafia as fronteiras entre realidade e representação ao colocar na tela mulheres reais – encontradas por meio de um anúncio de jornal – para compartilharem suas histórias pessoais. Posteriormente, Coutinho convida atrizes para reencenarem essas histórias, criando uma complexa interação entre os relatos reais e as interpretações ficcionais.
Entre as atrizes convidadas para participar do filme estão Marília Pêra, Andréa Beltrão e Fernanda Torres. Elas trazem suas próprias interpretações e nuances às histórias, adicionando camadas de complexidade à narrativa e questionando a natureza da verdade e da representação no cinema documental. Existe um incômodo perceptível ao se dar conta de que não se sabe de quem é, de fato, aquela história contada e recontada.
Jogo de Cena é uma exploração profunda da subjetividade humana e da maneira como as histórias são moldadas e reinterpretadas através das lentes individuais de cada pessoa envolvida.
Histórias Que Contamos
Dirigido por Sarah Polley, o filme é uma jornada íntima e emocional através da complexidade da família e da memória. A diretora mergulha fundo em sua própria história, explorando segredos e revelações enquanto confronta as múltiplas versões dos eventos passados.
As reconstruções dramáticas em Histórias Que Contamos são feitas utilizando atores para encenar eventos do passado com base nas memórias e narrativas compartilhadas pelos entrevistados. Isso porque o filme reconta a história da mãe da diretora, Diane, falecida sem esclarecer o mistério acerca da real paternidade de Sarah. Essa dúvida se dá justamente por Diane ter sido atriz e supostamente ter se relacionado com um dos atores com quem trabalhou, colocando em xeque a origem da sua filha, agora adulta e em busca de respostas.
O filme revela não apenas a natureza fluida e subjetiva da memória, mas também a maneira como as histórias que contamos sobre nós mesmos e sobre nossos entes queridos moldam nossa compreensão do passado e do presente.
O Ato de Matar
Dirigido por Joshua Oppenheimer, codirigido por Christine Cynn e um indonésio anônimo e indicado ao Oscar de Melhor Documentário Longa-Metragem em 2014, O Ato de Matar é uma investigação arrepiante sobre os horrores dos massacres na Indonésia em 1965-66, na qual ex-líderes de esquadrões da morte são convidados a reencenar seus crimes diante das câmeras.
O mote é curioso e até polêmico: o documentário desafia esses assassinos a recriar sua matança em qualquer gênero cinematográfico que desejem, incluindo cenas clássicas de crimes de Hollywood. Enquanto a violência não é real, o incômodo com ela é – apenas para quem assiste, já que a noção de remorso não aparece na tela como se imagina inicialmente.
O filme desafia não apenas as convenções do cinema documental, mas também a própria noção de justiça e responsabilidade moral, ao permitir que os perpetradores sejam protagonistas de sua própria história. Ao fazer isso, Oppenheimer lança luz sobre as profundas cicatrizes deixadas pela violência política e as complexidades da representação do mal no cinema.
Ao utilizar técnicas e recursos mais comumente associados ao cinema ficcional, o documentário se reinventa, sai do lugar-comum das “Talking Heads” e vira uma narrativa mais agradável – por mais que os seus temas sejam, quase sempre, brutais.