A vitória de Oppenheimer na categoria de Melhor Filme no Oscar 2024 reacendeu um debate acalorado sobre a forma como Hollywood retrata a guerra.
O filme, que narra a vida do físico J. Robert Oppenheimer, conhecido como pai da bomba atômica, foi alvo de críticas por supostamente glorificar a guerra em um momento delicado na geopolítica internacional, com conflitos graves sendo deflagrados em quase todos os continentes.
Muitos críticos argumentam que filmes de guerra hollywoodianos se concentram em figuras heroicas e estratégicas, minimizando o custo humano dos conflitos. Essas obras costumam focar em batalhas grandiosas, nas táticas militares e na bravura dos soldados, relegando a um segundo plano o sofrimento dos civis inocentes, os horrores das armas e as consequências duradouras da guerra.
Além disso, existe o reforço da figura do white savior (salvador branco, em tradução do inglês): um homem, branco e quase sempre norte-americano, que surge como a grande resolução para problemas que assolam grupos minoritários ou países de outros continentes.
No caso de Oppenheimer, o “herói” não consegue salvar o mundo no final do dia, mas surge em seu interior um grande sentimento de culpa, com o peso do lançamento das bombas em Hiroshima e Nagasaki recaindo em suas costas e acompanhando-o pelo resto da vida.
Mas sabe quem também sentiu o peso das bombas? Os japoneses. O diretor Christopher Nolan foi amplamente criticado por abordar de forma muito superficial os efeitos das bombas atômicas nas vítimas dos ataques. Será que J. Robert Oppenheimer realmente seria o personagem mais apropriado para ser o protagonista de um filme sobre esse momento histórico?
Tecnicamente, como o próprio Nolan expressou ao se manifestar sobre o assunto, Oppenheimer é um filme biográfico de ficção, e não um documentário. Seria difícil encaixar narrativamente as consequências das bombas jogadas pelos EUA no Japão quando o assunto é a vida do próprio físico.
O questionamento, no entanto, não é esse. A crítica reside na mensagem transmitida pela Academia ao premiar mais um filme sobre guerra contado pela perspectiva do chamado Ocidente, enquanto quase não se vê produções que repercutem os efeitos dessas guerras. Além disso, o mundo está em um período no qual conflitos se intensificam no Oriente Médio, no Leste Europeu, na África, etc., e por isso o timing é tão importante.
Com tantas discussões sobre os danos que uma guerra causa em um povo, social, econômica, estrutural e culturalmente, como seria interpretado pela sociedade um prêmio para um filme que exalta o gênio por trás da maior arma de destruição em massa já inventada, enquanto as vítimas desta criação ficam de lado?
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Melhor Filme nem sempre é o melhor
Então deveria ser cometida uma injustiça e o Oscar teria que ser dado a outro filme menos merecedor?
Primeiramente, o merecimento é um aspecto subjetivo. Nem sempre o melhor eleito pela Academia é o melhor aos olhos do público, independente da temática.
Além disso, em sua maioria, as premiações são eventos que refletem a forma como o mercado cinematográfico lê o mundo à sua volta, e não apenas como os filmes são produzidos. Ou vocês realmente acham que as vitórias de Parasita e Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo foram puramente técnicas?
Em 2019, apenas um ano antes do prêmio do filme sul-coreano de Bong Joon-Ho, o vencedor da principal categoria do Oscar foi Green Book. As críticas foram massivas e concentraram-se em duas frentes: 1) não era o melhor filme e 2) a utilização de uma história com temática racial protagonizada por um homem branco para lucrar e conseguir reconhecimento da Academia, enquanto artistas pretos dificilmente têm o mesmo espaço quando tratam do mesmo assunto.
Um pouco antes, em 2017, o movimento #MeToo viralizou e várias denúncias de abuso físico, sexual e psicológico em Hollywood se tornaram públicas. Foi uma revolução nos bastidores, com produtores presos, artistas afastados e redes sociais enlouquecendo. A partir dali, foi conquistado mais espaço para que as mulheres se posicionassem, sem medo de retaliações e de forma que conquistassem, de fato, evoluções em suas demandas.
O que parece, ao analisar o histórico das premiações, é que o Oscar flexibiliza alguns paradigmas para se adequar aos novos tempos (devagar, bem devagar mesmo), mas quando o assunto é guerra… isso não é uma tendência.
Nos últimos 15 anos, três obras que falam sobre guerra foram premiadas como Melhor Filme, além de haver muitas indicações com algum nível de favoritismo. Em 2023, o vencedor de Melhor Documentário foi Navalny, sobre o principal líder da oposição ao governo russo; em 2024, a mesma categoria premiou 20 Dias em Mariupol, que mostra a guerra na Ucrânia no ponto de vista de jornalistas sitiados na cidade do título. Não é apenas uma coincidência.
E não é só o Oscar. Oppenheimer ganhou basicamente todos os grandes prêmios da temporada 2023/2024, o que demonstra uma unidade na percepção que a crítica tem sobre o filme.
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E tudo isso retorna ao tópico principal: quem está contando essas histórias é um mercado baseado no país que mais movimenta a indústria bélica desde o século passado, que mais investe em forças armadas e que mais financia o armamento da sua própria população.
Não vai ser agora que Hollywood vai parar de premiar filmes que glorificam a guerra porque é economicamente interessante que o cenário continue o mesmo – e essa conclusão é um pouco pessimista, admitimos.
O lado bom?
Se existe algum ponto positivo nessa discussão, pelo menos, é que o debate tem sido levantado em mais frentes.
No próprio Oscar 2024, Godzilla Minus One levou um prêmio técnico – Melhores Efeitos Visuais – e o personagem literalmente foi criado para retratar o trauma que a sociedade japonesa viveu pós-Segunda Guerra. A ironia é enorme, mas fica o lembrete de que o desequilíbrio de narrativas existe e deve continuar sendo criticado.