Ser artista muitas vezes abre portas para as diversas possibilidades que esta profissão pode oferecer e permite que você consiga explorar – e até mesmo unir caso tenha vontade – duas ou mais vertentes que podem somar em seu trabalho. Este foi o caso de Ravel Andrade.
O ator, cantor e compositor se divide entre os palcos e as telas, e este último foi por influência principalmente de seu irmão mais velho, Julio Andrade, que inspirou Ravel a seguir os mesmos passos alguns anos após decidir se tornar ator.
A veia musical também surgiu através de sua família. A avó do músico era cantora de rádio e, mesmo não seguindo a profissão pois precisava dar assistência aos sete filhos, sempre soltava a voz nas festas da família, contribuindo para que o rapaz crescesse em um ambiente de muita música.
Depois de ter atuado em novelas como Império e Rock Story e séries como Sessão de Terapia, Aruanas e Onde Nascem os Fortes, Ravel Andrade estrelou recentemente a série Betinho: No Fio da Navalha, onde contracenou pela primeira vez com seu irmão Julio, protagonista e diretor da trama.
A produção, disponível no Globoplay, conta a história do sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, que lutou por diversas causas sociais e enfrentou a AIDS e a hemofilia, assim como seu irmão mais novo Chico Mário, interpretado por Ravel, que além de ativista era músico.
A série foi a única obra brasileira indicada ao Festival Internacional de Séries de Cannes, evento dedicado a séries e que celebra as melhores obras televisivas do mundo e está acontecendo entre os dias 5 e 10 de abril, na cidade francesa.
Em conversa exclusiva com o TMDQA!, Ravel Andrade contou como foi realizar o sonho de atuar ao lado do irmão e ainda compartilhou o que aprendeu com a trajetória de Betinho e Chico Mário. O artista, que pretende lançar um disco solo este ano, ainda revelou detalhes sobre o início do duo Beraderos ao lado do ator e cantor Danilo Mesquita e contou como foi conhecer e trabalhar com o lendário Milton Nascimento no primeiro disco da banda.
Confira o papo na íntegra a seguir!
TMDQA! Entrevista Ravel Andrade
TMDQA!: E aí Ravel, tudo certinho? É um prazer. Obrigada por estar aqui falando com a gente.
Ravel: E aí Lara? Prazer, tudo bem? Obrigado vocês.
TMDQA!: Para começar esse nosso papo, eu queria conhecer primeiro um pouco da sua relação com a arte, tanto com a música como com a atuação. Eu sei que você já está há algum tempo na estrada como ator, e já se dedica à música também. Mas eu queria saber um pouquinho das suas primeiras inspirações, das primeiras referências assim pra essas duas vertentes ligadas à arte.
Ravel: Legal, sempre bom revisitar, né? A própria história. A minha relação com a arte é desde que eu nasci. Porque tenho alguns artistas na minha família, mas de carreira são dois: meu tio Tchello Andrade e o meu irmão Julio Andrade, né? Então, quando eu nasci, esses caras já estavam abrindo uma estrada e já estavam no caminho.
Eu nasci nessa família que sempre teve muita música. A minha avó era cantora de rádio mas nunca seguiu a profissão porque teve sete filhos, era muito pobre, e a vida a levou pra um outro caminho. Mas quando tinham essas festas, esses momentos em família, todo mundo cantava. Em paralelo a isso, tinha a carreira de ator do meu irmão. Sempre foi uma coisa que para a família era um orgulho imenso assim. Ele resolveu ser um ator, né? Causava muito orgulho na gente. E eu, como era muito pequeno… Eu tenho quinze anos de diferença do Julio, então quando ele tinha 18, que ele largou o quartel e foi tocar em barzinho, fazer teatro lá em Porto Alegre, eu tinha três anos. Então, ele era o cara pra mim.
E o Julinho era esse cara que saía, saiu… Começou a trabalhar, fazer teatro, fazer as coisas dele e sempre voltava aos finais de semana. E era a alegria da família. Teve um momento que ele começou a me levar. Me levava para set de filmagem, pra esse barzinho que ele tocava, e eu com oito aninhos já cantava com ele. Aos seis anos ele me deu meu primeiro violão, que foi uma das coisas mais importantes pra mim… aqui eu tenho vários, eu estou sempre com violão. Tenho minha carreira musical também, e isso me abriu para uma carreira musical.
O violão foi meu primeiro companheiro, e aí eu comecei a tirar umas músicas, gostar, e comecei a querer atuar também, porque uma coisa levou à outra, né? A música me levou pra essa galera que já pensava em teatro, já pensava em outras coisas, então comecei a querer atuar e, quando eu fiz 16 anos, eu estava em Portugal com meus pais. Mas eu estava depressivo lá, eu não tinha tantos amigos e tudo mais. Eu liguei pro meu irmão, que morava em São Paulo, e falei, “Mano, eu quero sair daqui, eu quero fazer teatro”. E aí eu voltei pro Brasil, fiquei uns meses com ele e minha mãe logo voltou e eu comecei a fazer teatro em Porto Alegre. Com 18 anos eu já estava trabalhando, fazendo trabalhos pequenos, coisas em shopping; bem início de artista, que tem que se virar com tudo e a música em paralelo com tudo isso. Mas até então não era profissional, era uma coisa mais de casa.
E aí, em 2011 ou 2012, eu fiz um teste para o filme do Paulo Coelho [Não Pare na Pista], no qual o meu irmão interpretava o Paulo mais velho e eles ainda não tinham encontrado um ator jovem parecido. Aí eu vim para São Paulo com uns 19, 20 anos, fiz esse teste e passei, fiz o filme. Eu considero que comecei a fazer trabalhos de muita responsabilidade a partir disso. Mas no filme eu não trabalhei diretamente com o Julio, a gente não se via nem no set, porque quando eu estava era a folga dele.
TMDQA!: Mas agora, em Dezembro do ano passado, estreou no Globoplay a série “Betinho: No Fio da Navalha”, que marcou a primeira vez em que você contracenou realmente com seu irmão. Antes de te perguntar sobre sua preparação para fazer o Chico Mário, eu queria saber qual foi a sensação de trabalhar com o Julio e se era algo que você já desejava anteriormente.
Ravel: Depois que a gente fez o filme do Paulo Coelho eu comecei a pensar nisso. Eu falei: “Uau, imagina eu fazer um filme com uma produção desse tamanho com o meu irmão? Imagina contracenar com ele”. Então desde lá fico desejando, e aí as coisas acontecem quando têm que acontecer.
Porque veio a história do Betinho. Eu tinha feito “O Jogo Que Mudou a História”, que vai estrear esse ano, que é do AfroReggae. E o Júnior, que é o criador do AfroReggae, tinha esse projeto do Betinho e convidou meu irmão para dirigir, pra criar toda atmosfera da coisa, pra ser a cabeça da história e ser o Betinho – que é, tipo, maravilhoso. E na época era um outro diretor. E esse diretor me ligou e falou: “Ravel, o Julio vai fazer o Betinho e eu queria te convidar pra fazer o Chico Mário, que é o irmão mais novo”. E aí ele foi me explicando a coisa e falou: “Não, porque eu trabalho muito com isso, com trazer as coisas de fora e botar pra dentro da cena”. Ou seja, as relações internas verdadeiras, colocá-las no trabalho também. Ele era um diretor que pirava em capturar isso, a verdade da coisa – dois irmãos sendo dois irmãos, sabe? É muito profundo pra gente.
Eu fiquei muito feliz por fazer o Chico Mário, por contracenar com o meu irmão. Quando chegou o grande dia, a primeira diária que eu tive em que estávamos eu e ele um do lado do outro, numa cena, sei lá, do segundo episódio, que eles vão numa reunião sobre hemofilia e sobre AIDS conversar com o médico, a gente foi pra essa cena e eu me vi… A gente estava descontraído, como irmãos. A gente já tinha frequentado set junto, mas a gente nunca tinha estado ali naquele lugar de concentração antes da ação. Esse momento é mágico.
E aí, quando eu olhei pra frente, tinha uma câmera. O Pedro Sotero, que é um fotógrafo genial, que fotografou o Betinho, botou a câmera no tripé e aquela lente… Quando eu olhei aquela câmera, aquele prisma da câmera, o meu irmão, aquela coisa, silêncio no set… Cara, aí eu realizei. Eu falei: “Estou em cena com meu irmão”. E a gente fazendo a cena, se olhando e fazendo a cena, sabe… É uma coisa quase inexplicável, uma sensação inexplicável. Porque é a nossa vida. É a nossa vida e a gente tá compartilhando também da profissão, né? E não é qualquer profissão, é uma profissão em que você cria sonho. Então foi maravilhoso, ele é meu mestre.
TMDQA!: Que massa, Ravel. E falando sobre o Chico Mário, que é irmão do Herbert e também um influente músico dos anos 70 e 80, já chegamos nessa relação que você tem com a música. Eu imagino que esse personagem marcou a sua trajetória, por tudo que está ali em torno da vida do Chico Mário, de tudo que ele passou, mas eu queria saber como que a preparação para esse papel refletiu e acrescentou também no Ravel músico?
Ravel: Na música ele me ensinou muito porque eu toco violão, eu tenho banda, eu trabalho com isso também. Mas o violão dele é um violão popular, né? E o violão popular, apesar dele ter esse nome popular, ele é quase erudito. Ele é uma coisa, tipo, complicadíssima! E eu nunca tive esse violão assim. Meu violão é intuitivo. Eu nunca fiz aula, toco de curioso, porque eu gosto. Mas quando eu peguei as músicas dele, eu comecei a escutar e eu pensei, “Cara, eu vou ter que trabalhar bastante”.
Então, num primeiro momento, antes de tudo, eu comprei o livro dele, que tinha todas as partituras e as músicas – que eu não consegui aproveitar, porque eu não leio partitura. Tipo, eu não estou nem nesse nível de ler partitura. Então eu peguei muito da história dele ali, mas eu fui direto fazer uma aula de violão com um amigo meu que toca muito; já tinha feito um trabalho com ele e a gente foi tirando as músicas. Eu fui pegando, levava tipo uma semana pra aprender uma música. Às vezes eu levava uma semana pra aprender uma parte da música. Então, assim, foi um trabalho incessante. A minha companheira Andreia, a gente mora junto, e ela não aguentava mais! Era o dia inteiro eu treinando. Teve um trabalho prático ali, de muitas horas estudando.
E também o Chico, né… Eu pude conhecê-lo, porque assim como o Betinho, ele não é um cara muito conhecido. O Betinho ainda é muito mais conhecido do que o Chico, mas o Betinho também tinha uma campanha antes do Ação da Cidadania, antes da série, que a gente fez, eu e o meu irmão, que era: “Você conhece o Betinho?”. E aí você tinha que falar da onde que você conhecia. E eu conhecia o Betinho, por exemplo; eu tenho 32 anos, eu sou de 91, eu não conhecia o Betinho direito. Eu só soube falar que eu conhecia o Fome Zero, o Ação da Cidadania, o “doe 1kg de alimento”. Eu não conhecia o cara, mas eu conhecia a ideia do cara. Um cara muito foda, né? O pensamento dele não tá mais aqui, mas ele deixou uma coisa muito sólida.
E com o Chico Mário foi a mesma coisa. Eu falei: “Eu não sei quem é o Chico Mário”. E aí me falaram: “É o irmão de Betinho, cara”. Comecei a olhar, esse cara é um músico, um grande instrumentista, um compositor maravilhoso. Assim como o Betinho, ele também seguiu um caminho político. Ele era um artista, ele era independente, ele foi um dos primeiros caras que fez uma vaquinha. Então, assim, ele não se vendeu pro sistema, ele só fazia música de luta, só fazia música de protesto, de história. “Canudos”… Ele era um cara muito estudioso, de muitos discos, e eu não conhecia. E meus amigos não conhecem. E a maioria dos brasileiros talvez não conheça o Chico Mário. Eu falei: “Uau cara, eu vou fazer um personagem que é um cara gigante, é um brasileiro importantíssimo”.
TMDQA!: E vai apresentar para as pessoas, né?
Ravel: E vou apresentar pras pessoas esse cara que ninguém conhece. Então, assim, quando eu comecei a estudar o Chico, eu falei: “Que foda, que personagem maravilhoso que eu vou fazer”.
Fui conversar com o filho dele, o Marcos de Souza, que é um cara que cuida da obra. A filha dele, Karina de Souza, também canta, eles têm um projeto juntos com as músicas do pai e tal. Então, assim, a preparação foi isso, foi esse violão que eu não parei de estudar até o fim. Até o último dia de filmagem eu estava estudando violão, todas as músicas eu teria que tocar. Me ensinou sobre… pô, o cara também era hemofílico, ele morreu de AIDS também, sabe? Eles tinham uma vida que não era fácil.
Eles estavam toda semana no hospital fazendo transfusão de sangue, sempre doentes. Sempre debilitados, eles não abraçavam direito porque eles eram frágeis, convivendo com essa condição da hemofilia mas com a AIDS também, e os caras faziam, trabalhavam e apostavam na arte, né? O Chico apostava na arte, viveu a vida até a última gota, como ele fala. E viveu fazendo arte; viveu presenteando o Brasil com obras incríveis e presenteando o mundo. Foi lindo fazer a nossa preparação de sala, que a gente tem de roteiro e tudo mais. Foi com a Ana Kutner, que também é uma atriz maravilhosa e uma preparadora incrível, sensível. Foi tudo muito na sensibilidade, no amor, na poesia. O meu irmão é esse cara, né?
TMDQA!: Eu fiquei muito curiosa estudando para nossa entrevista e já está na minha lista para assistir.
Ravel: Assiste!
TMDQA!: E Ravel, você falou bastante da questão do violão. Eu ia te perguntar qual tinha sido o maior desafio pra você em interpretar o Chico. Você acha que foi esse ou teve algum outro ponto que pediu mais de você durante a preparação?
Ravel: Não, eu acho que a psicologia da coisa é sempre mais difícil. O violão é muito na prática, né? Você vai estudar ali. Eu estudava sempre um pouco mais, então quando eu chegava na cena eu fluía bem, eu toco várias músicas ao vivo – ao vivo não, em cena, né? Mas tentar pensar como esse cara pensava, tentar sentir a vida ali como ele sentia, isso é o mais difícil. É o maior desafio.
Porque é um cara que existiu, né? Quando não é, você pode inventar. Tudo bem que muita gente não conhece, mas o filho dele vai assistir! A gente tem que ter esse respeito com alguém que existiu, né? Tem que se aproximar ao máximo, sempre com muito respeito na interpretação e tudo mais. Então esse foi o maior desafio. Não foi o violão, apesar do violão ter sido um grande desafio.
TMDQA! Ravel, eu também queria saber quais foram os maiores aprendizados que a série trouxe para a sua vida.
Ravel: O Betinho fala muito de todas as coisas na série, o personagem. Ele é um cara que está sempre dando aula. Você vai assistir à série e você vai falar “Pô, esse cara acabou de me ensinar. Nossa, acabei de aprender mais uma coisa”. E ele está sempre ensinando. O que a série traz e sobre o que a série fala vai muito no caminho da generosidade, no caminho da humanização de tudo; o olhar pro outro, o olho atento pro outro sempre.
Vai no caminho do amor, vai no caminho da família, são coisas que hoje em dia, penso eu, a gente tá um pouco mais individualista assim, né? Cada um na sua. As festas de família estão diminuindo. No Natal, às vezes, a gente viaja e quer passar sozinho; sei lá, eu acho que o mundo tá ficando um pouco individual em todos os sentidos, até no sentido do egoísmo e tudo mais.
Então, quando você vê a série do Betinho, você reflete sobre tudo isso. E o Betinho me fez refletir sobre muitas coisas da vida. Do quanto a gente precisa fazer a nossa parte, que é o ensinamento mais lindo dele. Se cada um fizer a sua parte, está tudo resolvido. O importante é você fazer a sua parte. Então, nesse lugar muito profundo do olhar pro outro, é um ensinamento que eu tiro da série que é o que eu mais guardo comigo.
E a força de vida, né? Esses caras queriam viver. O meu irmão fala isso, que o Betinho era um indignado! Eles viviam porque eles eram movidos por essa luta. Pela vida, mas não a vida a qualquer custo, uma vida digna. Todo mundo merece. Então, isso é uma coisa com a qual o Betinho está toda hora na minha cabeça, quando eu me encontro em situações… quando a gente encontra toda essa desigualdade tremenda que a gente vive, que você se depara com uma pessoa dormindo na rua… eu já não consigo não ver, e é foda, porque são muitas pessoas. Uma comida que joga fora, já não dá… tem umas coisas que o Betinho está sempre aqui, falando: “Pensa no outro, pensa no outro, faça sua parte”. E aí eu acho que todo mundo que assistir à série também plantará no coração esse cara.
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TMDQA!: Falando um pouco mais do Ravel músico, eu ouvi bastante o disco do Beraderos quando você e o Danilo Mesquita lançaram…
Ravel: Pô, que massa!
TMDQA!: Eu queria que você me contasse um pouco de como surgiu esse projeto e como funcionou esse processo de criação do disco de estreia de vocês.
Ravel: Eu e Danilo nos conhecemos em uma novela que a gente fez, e era uma novela que tinha uma boyband. Ele era um dos meninos da banda, tocava baixo, eu acho, e eu era outro personagem. Eu era meio que amigo do cara que tocava bateria, era uma coisa assim. A gente não contracenava, mas a gente se encontrava muito e como era uma novela musical a galera tocava, levava um violão pro camarim e tal.
Então a gente começou a criar essa afinidade com a música. “Vamos lá pra casa?”, tocava, “olha essa música que eu fiz”. Eu já compunha, né? Eu já tinha algumas coisas. O Dan nunca tinha feito nenhuma música e aí eu mostrava minhas músicas pra ele, ele opinava. A primeira música que ele fez foi comigo um dia que a gente estava nessa de tocar violão, e a gente fez uma música juntos que se chama “Valsa”, que é uma música linda. A gente fez rapidão, foi uma inspiração, sabe? Foi rolando, a gente foi escrevendo, “Uau, legal, vai”, e fizemos a música e a partir daí a gente nunca mais parou de compor.
A gente se entendeu nesse lugar, porque não basta ser compositor ou saber fazer música, você tem que ter uma afinidade. Tanto que às vezes a pessoa nunca fez música e faz, mas é que rola um lance ali, né? E comigo e com o Dan aconteceu isso. Aí a gente começou a fazer sarau, a gente tocava “Béradêro”, a música do Chico César, sempre como uma reza, saca? Como se fosse um canto antes de entrar; era uma introdução. E a primeira vez que a gente cantou, a gente decidiu pouco antes de subir no palco. Chamaram o nosso nome e no camarim a gente disse, “Vamos cantar agora, vamos cantar agora”. E a gente saiu do camarim cantando “Os olhos tristes da fita”, e aí a galera foi abrindo e a gente foi até o palco, e aí a gente começou a fazer essa parada.
Certo dia a gente conheceu o Alexandre Ito, que é o vulgo Primo. O apelido dele é Primo. E o Primo escutou nosso som, adorou e falou, “Pô, vamos lá em casa fazer um som”. Ele toca baixo, ele é contrabaixista da orquestra, então ele tem aquele contrabaixo fodão. Aí a gente foi na casa dele, fez um som… a gente tem gravado e isso é lindo, é o nosso primeiro ensaio de todos.
Aí o Primo chamou o Simon, que é um fagotista da orquestra do Rio e chamou o Julião, que é um percursionista; ele toca uma percuteria, uma batera com percussão, e a gente montou a banda. Foi um momento maravilhoso, porque a gente começou a tocar só as nossas músicas. A gente parou de tocar música dos outros, falou “Não, vamos ensaiar aqui um show com as nossas músicas”. E quando a gente começou a ensaiar as nossas músicas a gente viu que tinha um disco. Aí a gente começou a fazer show antes do disco pra ver se a galera gostava, se a gente não estava muito louco, e começou a ter essa resposta maravilhosa. Primeiro dos amigos, né? E aí aquilo foi se estendendo. Depois de dois anos de banda, a gente conseguiu lançar o disco. Ficamos dois anos fazendo o disco porque a gente trabalhava como ator, pegava grana e botava no disco, aí tinha que trabalhar mais um pouco…
TMDQA!: Isso que eu pensei, vocês ainda tinham que conciliar com o trabalho de ator, né? Era uma coisa que os fãs percebiam que não era constante o trabalho com a música. Vocês faziam alguns shows, começou a sair o single… e muita gente ficou esperando o disco de vocês.
Ravel: Sim! E a gente ficou muito feliz de lançar porque é isso, você nunca sabe se você vai conseguir concluir a coisa, né? Você vai trabalhando aos poucos e tal. É muito caro, né? A gente estava na independência, a gente fez com a nossa grana, e fazer um disco no Brasil é muito caro. Claro que pode ser barato, você ter o home studio, fazer com alguém mais barato, mas ainda assim a gente não estava com alguém caro.
O Ito era o nosso produtor, é um cara que acreditava na banda, a gente fez parceria com o estúdio Casa com a Música, que é um estúdio na Lapa do Toninho e da Robertinha, que também nos abraçaram e falaram, “Galera, ensaia aí de graça, tá?”. A gente teve apoio de muita gente pra fazer o disco, porque é uma coisa que, se você não tem grana, é difícil. Todo mundo tem que receber, né? Eu não recebo porque é a nossa banda e tal, a gente tá ali, mas é a gente que gere, né? Mas é muito difícil o lance da música.
Mas a gente conseguiu lançar o nosso disco e a gente vai lançar um outro disco, porque foi muito legal o primeiro. A resposta foi muito legal. E tinha uma música, “Flor de Laranjeira”, que é o hit, que alçou vôos altíssimos. A gente não imaginava que ia ser tão popular assim. Entrou na novela Mar do Sertão, tocava ali com um casal protagonista… A gente conseguiu uma proeza de fazer uma música, compor, ir lá gravar, botar num disco, lançar o disco para uma pessoa escutar, se interessar. É muito difícil isso, né? Então esse disco nos gerou muitos frutos, a gente tem a música com o Bituca…
TMDQA!: Eu já ia te perguntar sobre ela! “Caminhar” é uma música linda que combinou muito bem com o restante das faixas do disco e eu quero saber o que significa para vocês ter a presença do Milton Nascimento nesse disco de estreia do Beraderos.
Ravel: É a bênção de um orixá, né, bicho? O Bituca é um deus. Assim, o deus mais lindo e mais humano que a gente vai conhecer. Cara, a gente ficou amigo do Bituca nessa novela, porque no último episódio ele cantou e aí, quando a câmera abria, estava todo o elenco no fundo. Como o Danilo fazia um dos protagonistas, ele foi convidado pra ir num jantar na casa do Dennis [Carvalho], que o Bituca ia estar. E o Bituca convidou o Danilo pra ir no aniversário dele, que era uma festa na casa dele em Juiz de Fora. O Augustinho, filho do Bituca, também convidou, e o Danilo me convidou e eu falei, “Meu Deus, o aniversário na casa do Milton”. Aí ele falou, “Se você não for, eu acho que eu não vou”. Aí os dois, muito nervosos, “Então vamos”.
Teve o aniversário, foi lindo porque o Dennis sentou com a gente e o Bituca, muito amigo dele, sentou na nossa mesa. Ficamos ali dois meninos, sem saber como olhar pro grande mestre, e foi lindo. O Bituca é muito simples, é muito amoroso, muito delicado, é uma pessoa muito maravilhosa de estar perto. E aí a gente ficou amigo do Augustinho e a gente começou a criar uma relação.
E a gente de vez em quando ia lá no Bituca, em Juiz de Fora. Aí teve um dia que rolou um papo da gente mostrar as músicas pra ele. O Augustinho falou, “Mostra pro meu pai cara, pô, vocês tocam”. E a gente assim “Pô, mas como assim, né? Será que ele vai gostar das nossas musiquinhas?”. Aí numa noite todo mundo foi embora, ficou eu e o Danilo, o Bituca, e o Augustinho falou “Poxa, vocês não querem tocar?”. A gente topou, eu peguei um violão do Bituca ainda na sala. Fiquei olhando o violão, falei: “Bituca, posso?” E ele “Pode, Ravel, claro”. A gente tocou e foi muito lindo; o Bituca adorou e falou “toca aquela de novo”. Aquele cara estava gostando do nosso som e “Caminhar” foi uma que ele pediu pra gente tocar umas quatro vezes, meio louco assim.
Então foi uma música que chamou a atenção dele. E que tinha a ver – acho que talvez por isso também, ele sentiu uma sintonia com a coisa. Quando a gente saiu da casa dele nesse dia, foi uma bênção. Ele adorou as músicas, ele falou que gostou. Então a gente saiu de lá falando “Cara, massa! Agora nós somos músicos, somos cantores, somos compositores”. Porque a gente como ator é um processo muito… você ter outra profissão, ou ser um músico também. No que que você é melhor, no que que você não é? Mas aí a gente viu que era simples: nós somos artistas. E a gente vai criando coisas, né? A gente cria personagens, a gente cria músicas, a gente cria.
E aí, um tempo depois, o Augustinho falou: “Meu pai quer gravar ‘Caminhar'”. E aí a gente gravou toda a música, mandamos pra ele, ele gravou essa beleza que ele faz na música. A primeira vez que eu ouvi eu não tive como conter as minhas lágrimas de tanta emoção – e eu nem conteria elas, porque foram lágrimas de muita emoção, de ouvir ele cantar uma música nossa, que a gente fez no nosso íntimo. E aí tá lá registrada, para todo o sempre, eu acho linda também. O Bituca leva ela pra um lugar totalmente de outra esfera, é muita conexão que ele tem com a música.
TMDQA!: Pô, adorei saber essa história, Ravel. E para a gente encerrar nosso papo, como o nome do nosso site é Tenho Mais Discos Que Amigos!, queria que você me falasse quais discos você considera seus melhores amigos!
Ravel: Eu escuto muito o mesmo disco. Eu acho que o Expresso 2222 do Gilberto Gil é um disco que eu escuto muito, que é um grande amigo. Outro disco que é muito amigo é o homônimo do Jards Macalé, que tem “Farinha do Desprezo”, eu escuto muito ele também.
E eu tenho muitos discos, talvez mais discos do que amigos, mas tem um deles que é o grande disco da minha vida que é o Aos Vivos do Chico César, que ele lançou em 91. Foi o ano que eu nasci, e é um disco que inspira os Beraderos, porque a primeira música é “Béradêro”, e ele entra a capella, e depois é só ele e o violão. É o primeiro disco dele e o meu pai tinha esse disco e botava no carro. Ele tinha a fita e depois o CD, e ele botava muito. A gente viajava muito e ele botava muito esse disco, a gente escutava muito. Então desde pequeno eu canto essas mesmas músicas e elas já não são mais músicas. Elas são… às vezes consolos, às vezes coragem, sabe? Às vezes história, às vezes memória. Elas são muitas coisas. Eu escuto esse disco até hoje. Eu tenho ele em disco, que relançaram e eu escuto na vitrola, eu escuto no Spotify. Eu escuto ontem e hoje e amanhã. É um disco que tá muito comigo.
E um outro disco que eu acho que não podia faltar é o Krig-ha, Bandolo! do Raul Seixas, que foi o disco que eu mais escutei. O meu Spotify, quando apareceu a retrospectiva, só deu ele. Tinha outras canções porque eu estudei muitas músicas, mas eu acho o Krig-ha, Bandolo! foda. Tem a filosofia dos caras ali na lata, ensina muito, é um disco que tá sempre comigo.
TMDQA!: Obrigada, Ravel, pelo ótimo papo! Fico aguardando um show de Beraderos em Salvador!
Ravel: Valeu Lara, eu também adorei, foi um prazer. Vai rolar!