Só quem viveu, sabe. A Trama Virtual foi um divisor de águas na música brasileira, um destino certeiro para quem queria descobrir novos sons nos primórdios da popularização da internet discada e, posteriormente, da banda larga.
A iniciativa foi pioneira em variados aspectos, da disponibilização de música de forma legalizada e gratuita até a remuneração dos artistas por meio de parcerias com marcas. Agora, a Trama mira uma nova fase, a sua terceira. Para anunciar a empreitada, recorreram à voz fundadora dessa história toda: Elis Regina.
Uma gravação restaurada e inédita de “Para Lennon e McCartney” vira single e marca esse recomeço, anunciando não apenas a recuperação do acervo de 23 mil mídias da Trama, como a gravação de novos artistas da música brasileira. É, ao mesmo tempo, uma celebração do legado da empresa fundada por Elis para gerir sua carreira – e um olhar adiante, porque “o novo sempre vem”.
Este, inclusive, é o nome do programa da gravadora na Novabrasil FM, destacando tanto talentos emergentes quanto nomes já consagrados. Nesta nova etapa, a Trama planeja ainda uma série de iniciativas para fortalecer sua presença no mercado, incluindo o resgate, digitalização e restauração de gravações históricas, a remasterização de seu catálogo, o lançamento de artistas da nova geração da MPB e a organização de shows e eventos.
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Elis Regina canta “Para Lennon e McCartney”
O single resgata a voz de Elis Regina a partir de arquivos de estúdio de 1976, restaurando-a com tecnologia de inteligência artificial sob a supervisão de Pedro Mariano e a produção de João Marcello Bôscoli, filhos de Elis.
Com novos arranjos de Marcelo Maita, que mantêm a essência da produção original, a música ganha ainda mais emoção em uma das maiores vozes da música brasileira. Ela é acompanhada por partes instrumentais gravadas por músicos como Daniel de Paula, Robinho Tavares e Conrado Goys, utilizando exclusivamente equipamentos vintage, alguns dos quais os mesmos usados na gravação original. A mixagem e masterização, a cargo de Ricardo Camera, completam o processo. Nada mal para um anúncio que diz: voltamos.
O TMDQA! conversou com João Marcello Bôscoli, uma das mãos que guiam a Trama. Em 1998, ele fundou a empresa com o sócio André Szajman, pegando emprestado da empresa da mãe, Elis Regina, o nome e a visão 360º da música. Agora, ele reflete sobre o passado, o presente e o futuro em uma entrevista exclusiva.
TMDQA! Entrevista: João Marcello Bôscoli
TMDQA!: Eu queria começar falando sobre essa fase III da Trama, que vocês estão construindo, mas que antes disso você me ajudasse a fazer um balanço. O que vocês consideram como fase I e fase II e o que ficou de cada fase pra vocês?
João Marcello Bôscoli: A gente considera a primeira fase da Trama, a Trama que foi fundada pela Elis Regina, minha querida mãe, e uma das primeiras artistas da música brasileira a começar a ter uma postura independente, sem necessariamente ter que se desentender com a grande indústria. Então ela fundou a Trama para cuidar da carreira dela. A Trama tinha estúdio de ensaios, tinha a parte de pagamentos, de organização, tinha os equipamentos para os shows, as caixas de som… Tudo voltado pra ela. Ela tinha tudo, menos o estúdio de gravação e um selo discográfico. Ela tinha, durante sua vida, contratos com a Philips, depois Universal, Warner, Som Livre… E por aí vai.
A segunda fase começa no final de 1998. A da Elis vai de 75 até a morte da Elis. Em 98 a gente [João Marcello e André Szajman] começou um estúdio com um selo. E aí a gente tem uma curva de trajetória que, para nós, é uma curva de 15 anos, quando a gente encerra as operações físicas – de distribuição de mídias físicas, e também passa a não ter mais um elenco artístico físico. A gente essencialmente trabalha o catálogo. A gente até tinha programado – o André foi morar fora do Brasil, teve 4 filhos e quando ele voltou em 2019 a gente já estava conversando a respeito, razão pela qual a fase III começou, que é a digitalização do nosso acervo. Poderia ter começado um pouco antes, mas assim como todos, vivemos a questão da pandemia e o ritmo de trabalho mudou bastante.
O que aconteceu: a gente tem um acervo de 23 mil mídias. Vários tipos de mídia: fita de 1/4 de polegada, fita de 2 polegadas de 4 canais cada uma, fitas beta e audiovisual, película de 16 e 35 [milímetros], uma sorte de mídias físicas, tanto de vídeo quanto de áudio, que a gente tem no nosso acervo e que precisam ser digitalizadas. É um processo que vai demorar alguns anos, mas a gente vai fazendo. As fitas de todos os eventos ao vivo que fizemos, tem a fita de vídeo, as câmeras em paralelo, e você tem a gravação multitrack do áudio.
Um exemplo que a gente estava mexendo ontem: temos uma apresentação inédita da Elza Soares com o Hermeto Pascoal. Uma coisa importante, eu creio, um momento mágico – pra nós, de ver esses dois gênios juntos pela primeira vez. Se não me engano, nunca mais: foi a primeira e única vez que os dois trabalharam juntos, comentaram naquele dia até, na entrevista. A gente pega isso e digitaliza, mas também tem o multitrack que também está em fitas digitais que nós digitalizamos e remixamos. Então o trabalho de digitalização do acervo, de restauração, tem coisas que a gente precisa corrigir. Às vezes é alguma coisa em HD que você precisa trazer para o 4K, fazendo o upscaling; às vezes tem alguma coisa com um chiado e você tem que restaurar o áudio. Então o processo de digitalização, de upscale e restauração é um processo que tem muita gente trabalhando e é linear, não tem como adiantar o processo. É um play numa fita inteira, numa entrevista da Gal Costa. Você precisa dar um play – é um documentário do Rappin’ Hood, é o Tom Zé na Europa… É um mergulho profundo. Uma parte é feita no estúdio onde eu estou, a gente tem o nosso centro de transcrição Trama, e tem um outro, um terceiro lugar, que é onde ficam as máquinas propriamente ditas, que ficam copiando essas mídias e mandando os HDs para cá, e a gente salvando e tal. Isso é um processo que é uma vida, são 23 mil mídias. Pra gente, é muita coisa.
Em paralelo, a gente nunca remasterizou os álbuns da Trama que estão no digital. E aí é natural que, mergulhado nesse processo e recebendo o material de muitos artistas, monitorando as coisas que acontecem, em determinado momento, a gente falou “bom, estamos fazendo um orçamento pra fazer tudo isso… vamos gravar alguns artistas novos também?”. Vamos fazer o registro, olhar a MPB de uma maneira cuidadosa, como a gente sempre olhou, independentemente de ser eletrônico, de ser hip-hop, de ser embolada… Mas nós temos estúdios onde a música nasce, na maior parte das vezes, então uma coisa foi levando à outra. Então começamos a fase III da Trama.
Chamamos assim porque nunca vamos reproduzir o que a Elis fez, e nunca vai reproduzir o que fizemos, que foi em outro momento histórico, outra cena, outra sociedade. Mas sim, a gente começa uma nova etapa cuidando da memória, do registro das coisas. Então é bacana também você começar uma coisa do zero, aqui no estúdio, mas tendo esse acervo pra ir revelando.
TMDQA!: É uma arqueologia, né? Eu acho isso uma excelente notícia, porque eu sou cria da fase II da Trama. Eu peguei aquele auge, minha geração inteira viveu aquele auge do site da Trama, aquela coisa efervescente! E dá pra dizer que vocês estão muito ligados a essa história da música brasileira na internet, tem o dedo da Trama lá nas raízes. Já que estamos aqui falando muito de legado, como você olha esse legado desse momento, em que vocês bancaram essa aventura de ir com tudo no digital? Você acha que foi formativo pra aquela cena que chegou aqui até hoje?
João Marcello Bôscoli: Eu acho que o papel de olhar esse acontecimento, esse período e essa fase da nossa vida de uma maneira mais ampla, com distanciamento, talvez eu não consiga opinar de maneira isenta. Eu estava dentro do processo, então o que eu posso dizer? Por exemplo, a Trama Virtual: é um espaço de música que hoje é muito fácil explicar. A gente ficou dois anos tentando explicar para o mercado. Só quando veio o MySpace é que a gente começou a conseguir ser compreendido, as pessoas começaram a entender. Não era por maldade.
TMDQA!: Era tudo muito novo.
João Marcello Bôscoli: É, e não surgiu porque é super genial… Na verdade, é mais simples do que isso. Trama Virtual, qual é o pontapé inicial, a primeira fagulha? A gente recebe muitas demos, de muitos artistas. O Carlos Eduardo Miranda era uma máquina de receber material. A gente chegou a ter seis mil demos, 99% em CDs, recebendo. Então o que você faz com isso? Eu nunca consegui jogar fora, e aquilo me incomodava. Eu sei que a gente não vai conseguir ouvir tudo, e aquilo lá fica numa gaveta, como tinha em muitos lugares. Mas aquilo me incomodou especialmente, porque a gente estava com uma face pública, com o nome da Trama ali, que eu peguei emprestado da minha mãe. Caramba, eu não posso fazer um negócio, poxa, jogar fora, não ouvir. Ouvir não vou conseguir, tudo bem, e aí falei pro meu sócio, o André: “cara, o que eu faço com esse negócio todo?”. “Ah João, não sei. Porque você não põe na internet pra todo mundo ouvir?”. Ponto. Esse é o começo.
Para hospedar as bandas, a gente investia mensalmente o que seria hoje 120, 130 mil reais. Só pra hospedar.
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TMDQA!: Era um volume gigantesco também, né?
João Marcello Bôscoli: É, era uma praça pública digital, o único lugar onde era possível uma banda subir a sua música e todo mundo poder ver. Aí depois a gente ainda trouxe o download remunerado, que era trazer uma marca que entregava uma grana, e dividia pelo número de downloads dos artistas e paga os artistas. Micropagamento sempre foi relativamente simples, porque o meu sócio é sócio de uma empresa que faz micropagamentos há 30 anos ou mais.
Então é isso, e foi uma coisa circunstancial. Quando a gente viu, caramba! Foi chegando um, outro, outro, e a gente passou a ser conhecido naquele momento como a primeira rede social de música. A gente não usava o termo ‘rede social’, era um site para você poder ouvir as músicas. E aí muita coisa aconteceu, 80 mil bandas, 130 mil músicos. Era o que dava para fazer naquele momento, com a tecnologia que havia naquele momento. O smartphone veio um pouco depois. Eu acho legal, porque essa microiniciativa nossa estava ali. E quando forem estudar a história, vão ver que estava ali um grupo de pessoas do Brasil inteiro que se reuniu para fazer isso.
Aconteceu uma coisa parecida com o live streaming. Um dia eu fui ao estúdio, vi o Sepultura gravando no nosso estúdio com o laptop aberto e uma câmera estava mostrando o estúdio – ou seja, uma mesa de som e uma pessoa sentada horas, sem acontecer nada. Eu cheguei e falei “caras, o que vocês estão fazendo aí?”, e eles disseram, “ah, a gente tá online, mostrando isso”. “Mostrando o que, a mixagem?” “É, a gente abre a câmera, os fãs gostam”. Tinha milhares de pessoas. Não 100 mil, mas 1500, 2000, 3000 pessoas uma hora lá. Falei “caramba, que interessante isso”.
Em paralelo, o André, meu sócio, ele falou “Pô João, a gente tinha que fazer a nossa TV, botar no ar pelo YouTube ou UOL”. Eu falei “André, mas o YouTube a gente pode botar depois o vídeo, porque eles não têm uma ferramenta de live. Vamos fazer isso no UOL”. O UOL disponibilizou, de segunda a sexta, e vem uma banda lá, grava, faz a sua apresentação ao vivo, ganha um multitrack gravado em estúdio profissional e o UOL chamava na capa. Foi passando um tempo e veio o pessoal do YouTube, né? Chris Max, o Alex Carlos e o Frederico Goldenberg, aqui do Brasil, trazendo esses dois caras mundiais do YouTube. “Puxa, que legal, vocês fazem transmissão”. “É, todos os dias, duas horas. Tem uma fibra ótica que vai até o UOL”. “Ah, interessante. Vocês não podem duplicar o sinal e fazer com a gente também?” Aí estava junto com a pessoa que entendia disso à época, dentro da Trama, o Maurício Felício, ele falou “Mas vocês não têm uma ferramenta de live streaming, né?” “Temos, mas ainda não foi publicada. A gente vai liberar pra vocês”. Dois dias depois eles liberaram pra gente o negócio. Só que de novo, não foi uma ação do YouTube, a gente teve uma visão… Não, a coisa foi acontecendo, o UOL apoiou e bancaram colocar no ar o negócio. Era conteúdo livre. Pra banda era legal, pra gente era legal. O Globo noticiou a “TV Trama na Internet”, o negócio foi acontecendo. Com a pandemia, boom!
Então de novo, não dá pra dizer que fomos visionários, etc. Acho que não, é uma necessidade você estar conectado às soluções possíveis nesses momentos. Por exemplo, tenho o programa diário na CBN. São sete anos já. Vou te dizer: logo que eu entrei, eu falei: “gente, a gente tá vendo as discussões dos artistas entre eles, as brigas, disputas. Isso é ótimo para o negócio. O problema vai ser quando no final da década de 20 não tiver mais artista no domínio. A gente vai perder o controle da música para as máquinas. Já está escrito isso, esquece, não vai não acontecer. Vai ser um regime de exceção, como restaurantes que cuidam da comida pegando no jardim o tempero, vem todo mundo entregar de bicicleta o tomate… Isso vai ser exceção, a gente vai perder”. Aí os dois tiraram sarro de mim no ar.
Mas porque eu digo isso? Eu leio o que estão lançando, eu tenho uma boa conexão com as pessoas do meio acadêmico, a gente compra pesquisa, e isso vai acontecer. Se eu pensar em alguma solução que ajude a música a permanecer possível nas mãos humanas, que isso não desapareça de vez, [vou fazer]. Nada contra nada, mas é o nosso lance.
Tentativa e erro também faz parte do processo. E a gente mais erra do que acerta, naturalmente [risos].
TMDQA!: É, mas quando acerta, consegue deixar uma marca e marcar as pessoas.
João Marcello Bôscoli: Eu acho que sim, muita gente conheceu a internet através do MP3, fizeram a primeira troca de alguma coisa porque era levinho e tal. Então é circunstancial, quando você consegue entrar numa consonância entre o que você está fazendo e o desejo de algumas pessoas. Isso é muito legal.
TMDQA!: Agora, você já tocou em vários pequenos pontos que eu quero puxar depois, mas eu queria começar pela questão da remuneração. Você citou os micropagamentos para os artistas. Eu sinto que a Trama foi um pouco pioneira nesse sentido também, e passaram-se seus 25 anos, sei lá…
João Marcello Bôscoli: Acho que um pouco menos, o lance dos micropagamentos. De uns 20 anos pra cá, 22, 23 anos.
TMDQA!: Desculpa, eu sou de humanas!
João Marcello Bôscoli: [risos] Perdão, eu também deveria ser!
TMDQA!: [risos] Mas de qualquer forma, a gente parece estar andando em círculos nesse sentido. Queria saber como é sua visão, do André também, com essas questões nos dilemas de hoje, na era do streaming.
João Marcello Bôscoli: Olha, tem várias coisas que a gente pode colocar, né? Coisa boa: não tem mais o fora de catálogo, quase. Isso é horrível pra um artista. No mundo do material palpável, físico, você tem um número X de artistas que a gravadora consegue deixar em catálogo, e você tem um espaço finito nas lojas que você pode colocar. E aí, se você não tá em um ou outro, é o caso clássico de vários aqui, mas o do Arthur Verocai foi, voltou, não veio nunca mais, e aí guardaram. Nesse ponto de vista, é demais você não ter a intermediação, poder publicar livremente… Gutemberg falaria “nossa, que legal!”.
Agora, tem a questão que se discute e que não dá pra ficar dando volta, que é a remuneração, quanto se paga pelo stream. Eu acho que paga-se menos do que poderia – talvez o outro lado alegue que não é possível pagar mais. Eu entendo que realmente não é uma questão simples, são empresas que muitas delas não dão resultado. Estão buscando isso. Às vezes não tá dando resultado e tá fazendo muito marketing e propaganda exatamente para aumentar a base. Mas acho que pode melhorar, vai melhorar – nas próximas semanas, acho que o mercado de streaming deve comunicar um pequeno aumento no pagamento dos artistas porque a pressão tá muito forte.
Nesse momento, é [necessário] melhorar o valor. Encontrou um modelo de pagamento, encontrou os meios de pagamento, todo mundo recebe, tem pouca chance do negócio dar errado. Agora, tem que ficar cada vez mais claro, o processo cada vez mais simples e ir aumentando o patamar dentro do possível. Porque levantar da mesa é ruim. Talvez pra alguém mais novo, faça sentido dizer “não, então vamos brigar, etc”. Mas pra mim, que vi a música ficando 100% de graça na internet, como ainda é possível pegar, mas você ter a opção do modelo de assinatura, fica meio… O André falava muito disso, “música tem que ser que nem água”. Você abre e tá em todo lugar, é fundamental pra gente. Acho que o modelo ficou amarrado de tal forma…
É claro que hoje, quando a gente pensa nos grandes players de streaming, a gente tá falando de pouca gente – como no começo do rádio eram poucas rádios, como no começo da internet, site com cara de profissional eram poucos. Isso vai se transformando, já já você vai montar o seu Spotify com o próprio Spotify, criar o seu cluster, a sua lojinha dentro do shopping. Mas até lá, não acho que vale a pena levantar da mesa de negociação. Mas pode melhorar.
TMDQA!: Bom, você citou a possibilidade de as máquinas dominarem tudo…
João Marcello Bôscoli: Ou quase tudo, né? Sim.
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https://www.youtube.com/watch?v=iVW9Jv8wpZE
TMDQA!: E quando eu dei play nessa versão nova da sua mãe pra “Para Lennon e McCartney”, cara, sobe aquele arrepio que é uma coisa que é impossível uma máquina recriar. Mas ainda assim, vocês pediram ajuda à inteligência artificial para poder fazer toda essa restauração. E o assunto da IA tem dominado tanto o meio da música, como um todo. Queria que você nos ajudasse a olhar com uma certa perspectiva – o que você vê de positivo, tanto que usaram aí; mas o que vê como red flags, o lado preocupante.
João Marcello Bôscoli: A red flag é no campo do comando humano. Há um ano atrás, eu estive no Roda Viva e tive a chance de perguntar para o Gilberto Gil. Não estou falando da figura midiática, estou falando do músico, da pessoa de estúdio, a pessoa aberta à experiência que ele tem viajado mundo afora – e que por acaso é muito famoso. Eu perguntei pra ele, “Qual é o limite da tecnologia, Gil? Você já usou bateria eletrônica…”. Ele falou “O limite, pra mim, é o controle humano, a decisão humana”. Então o fato de a gente ter sempre uma pessoa tomando as decisões transforma, pra gente aqui, a inteligência artificial em mais uma tecnologia que a gente usa, que é capaz de fazer coisas que sozinhos a gente não faria.
Então estou aqui sozinho, na frente de uma mesa analógica. É um tipo de projeto. Tenho teclados aqui de várias épocas, cada um usa um princípio. Tem ali em cima o [Yamaha] DX7, que é o primeiro teclado digital da história, foi criada a patente em Stanford, depois licenciou para Yamaha, é o teclado mais vendido de todos os tempos. Tem uns 4 ou 5 samplers aqui que eu guardo a máquina, mas não tem sentido usar. São máquinas maravilhosas, mas é uma mão de obra, né? Então é meio isso aí. E na parte do estúdio, é a mesma coisa, porque a gente tem os equalizadores analógicos, tem os que usam inteligência artificial.
Hoje, se você falar, “João, você precisa comprar software pro estúdio sem inteligência artificial”. Não tem. Porque todos têm, só que precisa do comando humano. Você pede pra ele fazer um negócio. Por exemplo, a gente restaura muito material aqui, há muito tempo. Antes, era assim: eram quatro máquinas, cada uma custava US$30 mil, e cada máquina fazia um lance. Agora é um software de US$5 mil com dois botões que você põe, processa e ouve. Só que a gente tem que ouvir, entendeu? A gente, quando vai usar um equalizador, quando vai usar um ambiente, quando vai restaurar, ver se passou, se tirou um harmônico, se não tirou.
No caso da Elis, é uma coisa artesanal, porque é uma voz gravada por ela, numa fita analógica. Tá ali, pá, a gente digitaliza. O que você tira daqui, com a tecnologia? Tudo que não é a Elis e tudo que não estava na gravação. Algum chiado de fita, é legal ter? Não, só na textura da voz dela. Como assim, é legal tirar o chiado de fita, mas não é legal tirar da voz dela? Então, é isso. Você escreve essa informação no AI? Não, eu acho os parâmetros do AI para enteder isso. Então é um processo muito humano.
Acho muito útil. A gente também tem uns bancos de beats aqui. Não sei, sou muito aberto com relação a isso. Enquanto isso tiver um ser humano programando o beat… O cara é um beatmaker, a menina é beatmaker, compositora, cantora. Tudo certo. O que não dá é pra não ter ninguém fazendo nada, você aperta um botão e sai pronto, inclusive com storytelling, né? Hoje tem muito telling e pouca story. Eu acho, pensei isso agora. Não é um clichê que eu uso normalmente, mas é um pouco isso, né? Uma máquina não tem as vivências, e o que é a música?
Então vai ser uma decisão humana o quanto a gente preza por isso, entendeu? O quanto que é importante ter isso. Eu, pessoalmente, gosto de fazer as coisas. Quando está pronto, eu não fico ouvindo as coisas que eu fiz, não faz sentido. Você faz e vai fazer a próxima coisa. Foi minha mãe que me passou muito, dentro da vivência dela, das experiências dela, o lance do fazer. A gente está sempre fazendo, e quando você gosta de fazer, você fala, “Precisa ter esse teclado aqui?”. Com esse teclado aqui eu tenho todos os timbres da Rolland. [Levanta para mexer nos teclados] Mas eu gosto de estar aqui e vir aqui e ver o negócio e mexer e tocar.
TMDQA!: Tem uma coisa de textura também, né? De tato.
João Marcello Bôscoli: Sim, eu gosto. A gente tem aqui esses pads, tem o Akai, que tem uma historinha legal. O cara foi para a Akai, criou um puta sampler, o S900, o S1000, aí veio a MPC. Essa aqui é uma série especial dela. É gostoso tocar, é uma máquina.
TMDQA!: Sem falar que parece um brinquedinho, né?
João Marcello Bôscoli: Mas sempre é um brinquedo. Tanto que em inglês é “to play”, né? “Let’s play”. É um brinquedão. É um grupo de pessoas que decide, enquanto o mundo está acabando, se vai ficar fazendo um sonzinho. Então quando você gosta do processo, tudo que você não quer é apertar um botão e tudo aparecer pronto.
TMDQA!: Não tem a menor graça.
João Marcello Bôscoli: Né? Você quer cozinhar e não quer picar o alho e a cebola? Então você não gosta de cozinhar – você gosta de comer ou de contar que cozinha. Não dá pra abrir uma pizzaria, você pede uma pizza pelo telefone, ela chega, você joga um azeite e manjericão por cima e fala “tá aqui”. Pode até ser também, mas aqui a gente prefere fazer as coisas. Pode ficar um pouco pior, um pouco melhor, mas com traços humanos.
TMDQA!: Autêntico, né?
João Marcello Bôscoli: É, de um jeito ou de outro, é verdade.
TMDQA!: Queria te perguntar isso que você falou sobre estarem de ouvidos abertos na Trama, e lembrando daquelas 6 mil demos, né? Em termos de volume, é grande, mas nem se compara à realidade de hoje. Se bobear, tem 6 mil lançamentos diários na música brasileira.
João Marcello Bôscoli: Olha, desculpa, só na oneRPM, eu sei porque o Arthur [Fitzgibbon, presidente da oneRPM Brasil] me contou esses dias – a gente distribui com eles -, tem 20 mil por dia.
TMDQA!: Então, olha só como eu já estou defasada! Mas o que eu queria saber é sobre curadoria. Como vocês apuram os ouvidos para achar as vozes certas no meio dessa cacofonia?
João Marcello Bôscoli: Na verdade, esse conjunto de lançamentos que a gente tem, é como o mercado inteiro opera, são diversos gêneros, etc. Isso só melhorou. Quando você trabalha como eu trabalho, o dia inteiro, desde 1994, alguém me manda alguma demo. Essa é a vida, essa é a dinâmica. Quando me encontra, pede pra eu ouvir. Eu trabalho diariamente no rádio, semanalmente na rádio Cultura Brasil. Eventualmente vou a festival, já estou há algum tempo aí, as pessoas sabem que eu gosto de novidade. Então vem uma quantidade maior, muito maior do que eu consigo ouvir.
Te respondendo objetivamente: ouvindo uma por uma e buscando aquilo que arrepia a gente. O André sempre fala isso: o que arrepia, o que te emociona. Você fala “pô, uau”. É isso que a gente quer gravar, independente do caminho que essa música possa ter depois. Se a gente se apaixona, gosta, ouve, etc, é importante. Se você perguntar pra qualquer produtor musical, ele vai dizer “putz, recebo bastante”. E ele está atrás do arrepio, de uma coisa que pra nós, aqui, é esse o critério. Todo mundo tem que ouvir, se olhar; eu também tenho que ouvir e me emocionar, e quanto eu mostro para as pessoas com quem a gente trabalha, o pessoal do estúdio, quem vive música todo dia, eles dizem “gostamos, tem a ver com a gente”.
O Brasil tem muito talento, nunca vi tanta gente tocando bem na minha vida. É absurdo o que tem de gente talentosa. A gente tá trazendo em junho o Jeddah, já teve uma matéria na Piauí sobre ele. Um garoto, 18 anos, toca violão, é canhoto, de Manaus. Sem querer colocá-lo num pedestal, porque ele gosta de música e a música se expressa através dele. Não é uma coisa que tem como premissa ser midiática. É um músico muito interessante, vale a pena ser registrado. E quando você ouve, você fala, “Pô, esse cara tinha que gravar, né?”. Mas é violão instrumental. “Beleza, a gente já gravou Baden Powell, Paulinho Nogueira, Romero Lubambo…”. E passa muita gente no estúdio, são sempre populações diferentes, vem ensaio de festival. É uma turma que fica circulando, o estúdio é mágico por isso. É como se fosse uma pracinha musical, tem várias bandas.
TMDQA!: E vez ou outra, bate aquele arrepio, né?
João Marcello Bôscoli: Vai bater. É como você falou da Elis, né? A Elis é a mais extraordinária, mas a Elis já foi uma garota de 11 anos, ganhou um contrato com a rádio, assinou com 14 anos com a gravadora e gravou quatro álbuns antes de gravar o que ela considerava o primeiro. Tem Elis Regina toda hora? Não, não tem. Mas tem outras artistas interessantíssimas contando outras histórias. A música tá aí, né? A música existe. E a música brasileira é muito interessante e permanece interessante por todo lado, é muito legal. Muito rica e muito abundante. A gente vai conseguir pegar uma pequena fração disso, mas graças à revolução digital e à tecnologia, é possível ter essa quantidade de selos e estúdios que tem. É uma cena que está tudo aí pra acontecer, só precisa ligar alguns pontos e cada um fazer o seu trabalho, que eu acho que a música brasileira sempre vai nos dar boas surpresas, eu creio.