Há quem diga que o “Descobrir” do Instagram e o “Pra você” do TikTok entregam muito sobre os hábitos e gostos de alguém – e não seria exagero. Para o fã de música, isso significaria, até pouco tempo atrás, muito conteúdo em Inglês, já que os posts mais populares sobre o tema vinham da gringa. Agora, esse cenário vem mudando aos poucos.
Músicos, produtores, fãs e jornalistas têm ganhado destaque no mar de vídeos curtos comentando curiosidades sobre singles, discos e shows, criando conexões entre temas aparentemente desconexos e mostrando bastidores com um olhar único. Eles destrincham samples, contam a inspiração inusitada por trás de uma canção ou revelam o processo de gravação de clássicos da música – ou de pérolas contemporâneas.
Os próprios artistas estão colocando a mão na massa e criando vídeos de forma artesanal, sem grandes equipes, e acabam descobrindo uma nova forma de notoriedade: a de se tornar uma referência nas redes sociais para além da música.
Artistas brasileiros se tornam referência nas redes
Um desses nomes é o carioca Rodrigo Suricato. Figura onipresente nos palcos do Rio (e do Brasil) com o seu projeto autoral – a banda Suricato -, ele vem fazendo algumas transições ao longo dos últimos anos. A primeira delas foi assumir o vocal do Barão Vermelho, outra instituição carioca por excelência, a partir de 2017. Outra foi o fim da Suricato em 2023, uma despedida necessária para seguir em frente.
Seu perfil no Instagram é movimentado com reels periódicos, com comentários que vão do show de Madonna ao preço do azeite. Por vezes com um instrumento em mãos, Rodrigo vem postando, já há alguns anos, suas percepções sobre o mercado. Ali, ele ocupa o lugar de fã de música, antes de tudo, e dialoga com os seguidores – inclusive nos comentários – sobre linguagens, estilos e as delícias e contradições do negócio.
Suricato rejeita o rótulo de creator, comumente associado a qualquer pessoa que publica vídeos na internet. A intensificação no ritmo das postagens aconteceu naturalmente, sem pretensão de tornar essa atividade uma outra demanda profissional. Com o fim da sua primeira banda, houve um respiro que possibilitou um novo fôlego às ideias, como ele explica:
Sem a Suricato, me restou mais tempo livre e mente arejada para me expressar de outras formas e falar informalmente sobre outros assuntos. Mas não me vejo como ‘produtor de conteúdo’. Tenho certo horror à expressão. A arte em geral, especialmente a música, está sendo facilmente confundida com ‘conteúdo’ e isso é muito triste. Não sou só música, não sou feito só de música. Eu falo sobre tudo que estiver apaixonado. Por não ser uma pessoa monotemática e com repertório de vida, até esqueço que estou fazendo vídeos. Ficou natural.
Para uma nova geração de artistas que estão chegando agora na cena, as habilidades com vídeos e redes sociais também já são mais que naturais. É o caso de Braga, cantor que lançou um EP e uma sequência de singles entre 2023 e 2024, já somando mais de 200 mil ouvintes mensais no Spotify. Certamente, muitos deles vêm de seus vídeos no Instagram, onde alcançou a marca de 1 milhão de seguidores.
Braga contou ao TMDQA! que a produção de vídeos já era um de seus interesses – que ele facilmente incorporou à sua estratégia musical por reconhecer o potencial de levar suas canções a outros públicos:
Sempre gostei de audiovisual. A música também sempre esteve junto comigo. Ao descobrir que vídeos na internet poderiam ajudar na divulgação da minha música, tudo veio junto para minha felicidade. [Os vídeos] são algo que aprendi a fazer se tornar receita ao fazê-los sustentar minhas músicas nas plataformas de streaming de áudio.
Segundo ele, a média em cada vídeo é de 200 mil visualizações; na “rede social ao lado”, ele caminha para meio milhão de seguidores. No TikTok, Braga já entendeu: a frequência e a constância eram essenciais. “Aprendi a fazer a criação de conteúdo se tornar parte da minha rotina. Isso fez com que conseguisse postar mais vídeos diariamente”, explica.
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Conteúdos de bastidores da música chamam atenção
@bragaeponto “Ta ok” bossa nova @TOM
Essa abordagem de nicho para cada rede dialoga com a proposta de Mateo Piracés-Ugarte, da banda Francisco, el Hombre e do duo Baby. Ele vem publicando vídeos periodicamente sobre diferentes aspectos da música, entregando bastidores e refletindo sobre mudanças no mercado. Mateo observa a vitrine do Instagram como um grande controle remoto:
Eu vejo que os perfis das redes sociais cada vez mais estão virando como ‘canais de televisão’. Eu colocava na Nickelodeon ou Cartoon Network quando era pirralho para assistir desenhos, colocava na TV Cultura quando queria aprender algo divertido e curioso, colocava na GloboNews quando queria ver as notícias da direita, etc… Então os perfis são parecidos a isso. Procuro o perfil de Esse Menino para ver algo de comédia, procuro perfis vinculados à Casa Chango para me atualizar das últimas dancinhas e trends do Tiktok, etc… O canal que eu quero ter é sobre música, sobre aquilo que é minha paixão. Por isso tento fazer sempre algo vinculado a isso. E o mais difícil é tentar fazer isso para além da autopromoção. Fazer como um canal de curiosidades e informação relacionados à música como um todo.
Para dar conta da demanda de ser o seu próprio canal, Piracés-Ugarte estabeleceu uma rotina de gravações. Escolhe um dia para criar todo o conteúdo e editá-lo – a parte mais trabalhosa, já que não conta com uma equipe para cuidar dessa pós-produção. O resultado são 4 ou 5 vídeos que serão distribuídos ao longo dos próximos dias.
Sinto que só vou conseguir ter uma relação saudável de trabalho com as redes sociais se eu encontrar uma forma que ela se adapta à minha semana. Se for o contrário, como já fiz, o nível de estresse é altíssimo.
Rodrigo Suricato, por outro lado, tem uma abordagem diferente e prefere não se cobrar por uma rotina estabelecida. “Tenho liberdade de parar a qualquer momento ou ficar semanas sem postar, diferente de quando tinha um trabalho autoral onde todos os dias eu precisava ser um pedinte digital. Foi uma libertação”, avalia ele, fazendo referência às ações promocionais exigidas da maioria dos artistas atualmente presentes nas plataformas digitais.
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Jornada dupla?
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Por que, então, investir tempo na produção de vídeos? Os benefícios são muitos. As redes sociais oferecem uma plataforma fundamental para os artistas, em especial os independentes: conexão direta com os fãs, ampla promoção e divulgação do trabalho, oportunidades de monetização através de parcerias e patrocínios, além do controle – pelo menos parcial – sobre a narrativa e imagem pública.
Essa presença online não apenas fortalece o engajamento existente, mas também abre portas para novas oportunidades de colaboração e empreendedorismo, permitindo que os artistas diversifiquem suas atividades e alcancem novos públicos.
As marcas, sem dúvidas, estão de olho. Os números indicam parte do potencial promocional de um artista enquanto pessoa pública, mas os efeitos vão muito além dos números. “Tenho muito feedback e respeito, isso não tem preço e não se constroi do dia pra noite. Demorei uma vida pra construir o que sou. Sou um artista, não um soluço da sorte”, sentencia Suricato.
Mas o resultado é, muitas vezes, incerto. Isso porque o alcance de um vídeo depende de inúmeros fatores que fogem ao controle de seu autor. Um bom retorno orgânico nem sempre chega – na verdade, pode ser mais exceção que a regra até a plataforma entender para quem entregar o conteúdo.
“O algoritmo é um sugador de almas imprevisível. Muitas vezes crio um conteúdo básico só para preencher uma lacuna de posts e isso vira 100k a 500k de views, outros dias eu posto algo super trabalhado e carregado de expectativas que dá 8k views… Eu aprendi a ter uma única expectativa: o flop é a certeza. Daí pra frente é lucro. Até porque o que faz a diferença não é um único post e sim a constância e presença na praça virtual”, reflete Mateo.
Ainda assim, é possível sentir quando chegam novas pessoas com mais frequência, o que pode causar o efeito reverso: seguidores que se identificam com os vídeos primeiro e com a música depois. Muitos deles descobrem os lançamentos musicais ali mesmo, em pleno reel. Daí a importância de manter os fãs engajados – porque serão eles os primeiros a replicar o conteúdo para além do público alvo.
“Adoro saber o que a galera que me acompanha curte. Sempre vejo as pessoas indicando minha música para outras pessoas. Isso é o que mais faz meu som furar a bolha, acredito eu”, avalia Braga.
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Artistas que jogam nas 11
@eusoumateo a energia caótica desse vídeo é incrível #VozDoMalvadao #caos #show
Os artistas se viram, assim, em novas funções. Não que isso fosse novidade – de independentes a grandes nomes do pop, já faz algum tempo que todos precisam comparecer e bater cartão no job de marketeiro do próprio lançamento. Isso inclui fazer vídeos e, dependendo do nicho musical, criar coreografias desenhadas para viralizar.
Não por acaso, muitos artistas passaram a abraçar essas oportunidades com mais afinco. Braga acredita que a iniciativa “seja atraente por conta do mercado de influência digital estar se tornando muito forte por si só”.
Porém, Rodrigo Suricato atenta para o fato de que é, também, muito atraente para marcas e influenciadores digitais dialogarem com a música. Não é à toa que muitos se lançam como cantores ou há agências de publicidade bancando singles que são, na verdade, jingles:
Na verdade, ficou atrativo para não-artistas, curiosos, amadores e produtores de conteúdo se aproximarem da música para diversificar sua renda e pagarem de artistas, mas não são. Por outro lado, defenderei até o fim o direito das pessoas se expressarem mesmo com toda poluição de informações e banalização da atividade artística. Pessoalmente, não acho que seja possível ter excelência nas duas coisas ao mesmo tempo, conteúdo digital e arte. A não ser que você tenha um time pensando no teu marketing. Achava possível dar conta das duas coisas mas não é. Difícil adorar dois deuses simultaneamente.
Mateo também não romantiza essa nova possibilidade de conexão e renda. Na verdade, ela é um sintoma da precarização do trabalho do músico, cada vez mais dependente de “jogar nas onze” posições:
A vida da pessoa musicista independente é tão difícil que acho que na verdade qualquer fonte de renda diversa é atraente. O que acho que fortalece ainda mais isso é que hoje em dia dependemos muito das redes sociais para nosso trabalho. Divulgação de lançamentos, shows, carreira no geral, tudo é por lá. Isso é péssimo.
Para além da conexão com quem está do outro lado da tela, há o efeito provável: a notoriedade online pode se multiplicar em outras frentes, como aumentar o número de ouvintes. Caso aconteça, o ideal é que parte de um lugar genuíno – e não de uma viralização efêmera.
Suricato admite que estar ganhando seguidores no Instagram possivelmente traz mais curiosidade para a música que ele produz, mas ele garante:
Não olho mais meus números. Dificilmente componho e estou muito feliz assim. Faço muitas amizades, ganho livros, recomendo coisas, encontro gente na rua e no mercado querendo falar dos assuntos dos vídeos. Pobre do músico que é só um músico, a vida é muito grande. Virei a página do meu maior projeto autoral, a Suricato. Sigo feliz no Barão Vermelho e faço muitos projetos pontuais como meu projeto de blues e shows corporativos. Jamais pedirei novamente para alguém fazer um pré-save. Estou sempre em movimento. Sempre sob efeito de música.
O céu é o limite, e certamente há espaço para crescer, mas nem tudo é métrica na vida. Para Suricato, os vídeos “são um hobby”:
Pretendo manter essa postura despretensiosa. São conteúdos originais, pessoais, observações minhas. Não são cópia e cola de assuntos ou pesquisas do ChatGPT. Não quero entreter as pessoas, mas gerar reflexões.
Não há um roteiro ou caminho de sucesso certeiro para a música nas redes sociais. O que estes três artistas comprovam é que sua abordagem diversa é apenas uma amostragem do que é possível ser feito em termos de linguagens e formatos.
Mas o que Braga, Rodrigo Suricato e Mateo Piracés-Ugarte têm em comum é a sua vontade de continuar falando de música e dialogando com outros músicos e fãs. A criação de uma comunidade é, sem dúvida, um dos maiores trunfos que um artista pode ter para navegar no complexo ecossistema do streaming.