Os debates em torno da Inteligência Artificial na música estão apenas no início – considerando o quanto esse campo tecnológico promete avançar nos próximos anos. O início da revolução, no entanto, já dá pano para manga. Parte daí o curso Diálogos de IA: Conceitos e Aplicações, que o jornalista André Felipe de Medeiros realiza nesta segunda-feira (20/05).
A ideia é contextualizar a história da Inteligência Artificial e seus avanços técnicos, bem como seus dilemas éticos. Tudo para colocar mais pessoas à mesa onde acontecem essas discussões, e empoderá-las a serem parte das mudanças. Afinal, é só a partir da compreensão de como funcionam estes modelos de linguagem que se torna possível imaginar um futuro com eles. Até porque o chatGPT não vai a lugar nenhum.
Em uma semana de grandes novidades divulgadas pela OpenAI, o curso chega à segunda turma mostrando que é necessário debater esses caminhos a partir de uma compreensão mais aprofundada. É ela quem vai ajudar a contextualizar o que já é possível, o que está no campo das ideias e o que de fato está em jogo.
André Felipe não se restringe apenas à música, apesar de ser mais que apto para tal. Isso porque é jornalista no Monkeybuzz e editor-chefe do Música Pavê, além de conversar com músicos e outros profissionais em seu podcast, Pós-Jovem (também dono de uma ótima newsletter gratuita!). Há tempo, inclusive, tem um projeto autoral de uso da IA generativa, o Obsoleto Futuro. Por ser alguém de interesses múltiplos, André Felipe projetou o curso para profissionais e estudantes das mais diversas áreas. As inscrições podem ser feitas neste formulário.
Aproveitamos a oportunidade de trazer seus conhecimentos aos leitores do TMDQA!, explicando um pouco do que a Inteligência Artificial representa no mercado da música e além.
TMDQA! Entrevista: André Felipe de Medeiros
TMDQA!: O papo sobre inteligência artificial se intensificou muito com a popularização do ChatGPT, mas a verdade é que a IA já fazia parte das nossas vidas. Conta pra gente de que forma ela estava presente antes?
André Felipe de Medeiros: Quando falamos de tecnologias digitais, a real é que muito provavelmente já estávamos conversando sobre inteligência artificial mesmo sem o termo. Se pensarmos em redes sociais, todo o papo de um algoritmo decidir o que nos é oferecido é 100% IA – o mesmo com Spotify e afins. De coisas mais ingênuas, como efeitos de câmera que reconhecem os rostos, até ferramentas de trabalho, como filtros na edição de vídeos e mesmo os dos softwares de música, são guiadas por IA.
TMDQA!: Claro que agora a conversa está mais séria porque a IA generativa está avançando a passos largos. Como você vê essa progressão: com mais otimismo ou mais preocupação?
André Felipe: Vejo tanto possibilidades bastante otimistas, quanto aquelas que precisamos olhar com cautela. É imensamente interessante pensar o que pessoas criativas que nunca tiveram acesso a ferramentas de produção poderão fazer para se expressar, e também já estamos vendo diferentes artistas, de diferentes linguagens, criarem propostas muito interessantes com a IA generativa, para muito além do básico. Sou otimista quando penso que, como acontece quando estamos diante de grandes transformações, temos a oportunidade de repensar os valores com que estávamos trabalhando – por exemplo, o pensamento capitalista em cima da criação artística. Afinal, o que significa fazer música? É só distribuir acordes e harmonias em um determinado ritmo – porque é isso o que a máquina faz -, ou tem a ver com subjetivismo, expressão e sensibilidade? Será que o mercado precisa de sensibilidade? E será que as pessoas sensíveis se contentam com uma criação cuja única intenção era replicar elementos musicais? E será que já não tinha muita gente fazendo música assim? Não sei, precisamos conversar.
TMDQA!: No mundo da música, há questões éticas e legais que tem causado bastante resistência (assim como em outros setores criativos). O que você acha que pode ser feito desde já para garantir os direitos dos profissionais mais afetados?
André Felipe: O primeiro passo é a discussão para a criação de legislações que protejam os direitos dos artistas, e esses assuntos precisam ser conversados com participação de cidadãos das mais diferentes áreas, não apenas do direito, nem só representantes de grandes empresas. Se a regulamentação impacta pessoas diferentes, é preciso que haja diversidade nas discussões, em toda pluralidade que essa frase comunica. Essas transformações com a tecnologia estão acontecendo em um mundo onde um punhado de empresas decidiram como todo o mercado deveria funcionar, de acordo com seus modelos de negócios, e os artistas (e isso não é uma crítica, é uma questão de sobrevivência) tiveram que aceitar essas regras. Em paralelo à legislação para proteger os direitos autorais, é necessário repensar como essa indústria tão multifacetada deve sobreviver, em um modelo descentralizado e mais contextual, menos controlado por uma meia dúzia de empresas.
TMDQA!: Você é um grande entusiasta do uso de IA para gerar imagens. Que possibilidades essas ferramentas abrem que antes não eram tão acessíveis por apps que exigiam mais habilidades e conhecimentos técnicos?
André Felipe: Em suma: Como a IA generativa é baseada em replicar o trabalho de gente muito talentosa, qualquer pessoa consegue extrair dela uma imagem muito bem feita. Ainda assim, é preciso que a criatividade humana guie esse processo nas duas pontas: O de saber o que (e como) pedir das plataformas e também o que fazer com aquilo que a plataforma entregou. Em outras palavras: Qualquer pessoa pode acessar o site/app, digitar alguma palavra e se contentar com o que foi gerado, mas não é arriscado afirmar que pessoas “criativas” (e aqui eu me refiro não apenas a quem teve algum treinamento artístico, mas também quem tem alguma sensibilidade ou aptidão natural para isso) não só propõem ideias mais interessantes para as plataformas, quanto, por isso, conseguem resultados melhores – o mesmo vale para um Suno ou Udio, que geram música (ou organizam elementos musicais, assim como as visuais organizam informações imagéticas). As possibilidades para expressão pessoal me enchem os olhos: Imagina alguém que sempre quis colocar uma mensagem sua para fora, mas não tinha como e agora tem essa capacidade. Ou ainda, indo mais longe, se pensarmos em pessoas neurodivergentes que têm dificuldade em verbalizar até mensagens mais corriqueiras, e agora podem ser amparadas por inteligência artificial para ajudá-las. Podemos repensar (e deselitizar) o fazer criativo.
TMDQA!: Muitos de nós já usam as principais ferramentas de IA. Quais cuidados os usuários precisam ter, em geral, com relação aos dados que usam para alimentar essas ferramentas?
André Felipe: No geral, as plataformas não estão utilizando os dados que você insere para a criação de um texto no ChatGPT, imagem no Midjourney ou áudio no Suno, elas estão mais atentas a como você lida com os resultados que ela oferece (e, dessa forma, elas vão sendo treinadas). Ainda assim, especialistas não recomendam que você compartilhe “conteúdo sensível”, como dados privados, porque algumas questões de privacidade ainda não estão muito claras. Sendo assim, é melhor evitar compartilhar uma lista de informações de clientes, por exemplo, no ChatGPT.
TMDQA!: Vamos fazer um exercício de futurologia: quais funções ou impactos a inteligência artificial pode ter no mercado da música num futuro próximo e que talvez muitos ainda não tenham se dado conta?
André Felipe: Uau! A primeira coisa que me vem à mente é pensar como os artistas vão subverter plataformas como Udio e Suno para criar algo diferente do que elas propõem. Há muitos músicos experimentando com IA e dialogando com essas ferramentas, mas ainda não vi nada que fosse muito inovador (diferente do que tem acontecido com as artes visuais). David Bowie usava ferramentas digitais para criar letras de música há 30 anos, e é uma questão de tempo para os artistas de hoje também entenderem quais desafios criativos (e resultados interessantes) podem vir da interação com a inteligência artificial. O deslumbramento com as plataformas tem gerado uma resposta de interesse popular em criações que são muito divertidas, desde colocar Ariana Grande para cantar forró até musicar um chat de um aplicativo de carona. Mas é claro que esses exemplos, por mais divertidos que sejam, não chegam perto do potencial de criação dos artistas. Quanto à criação musical, meu palpite é músicos inventarem algo novo em breve. Quanto a mercado, é muito saudável que a indústria passe por questionamentos que surgem com o uso popular das plataformas de criação. Será que uma nova geração de humanos, que estão desenvolvendo seus gostos musicais agora, vai preferir digitar um comando em uma plataforma para escutar algo personalizado, ao invés de ter contato com o repertório de músicas feitas por pessoas (algo que para mim, como ouvinte de música, é hoje impensável)? O que significa “indústria” de música nesse contexto, quais serão as adaptações necessárias a uma nova demanda, uma nova forma de escutar música?
TMDQA!: Os debates em torno da IA na música em geral tem dois lados bem estabelecidos: os apocalípticos e os mais otimistas. Um defende que a inteligência artificial vai acabar com profissões inteiras (inclusive a dos músicos), o outro vê o barateamento de serviços, os desbloqueios criativos, etc. Com isso existe muito a mentalidade maniqueísta, ou nós ou eles. Qual é o caminho do meio ideal, em que a humanidade e os profissionais criativos conseguem coexistir sem um causar a extinção do outro?
André Felipe: Com certeza é o do diálogo aberto, plural e realista: Aberto a novas ideias e à vontade de adaptação, plural no sentido de interdisciplinar e com participação de pessoas de diferentes camadas da sociedade, e realista para encarar as necessidades e as possibilidades de todos, inclusive os medos. É necessário escutar as pessoas e seus questionamentos, lembrar que a ameaça da obsolescência de um profissional mexe não apenas com seu ganha pão, mas com sua inserção na sociedade e, em nível pessoal, à sua identidade. Reagir sem diálogo, baseado apenas no medo, é tentar nos ancorar a um mundo passageiro (e, preciso dizer, bastante desigual e injusto, com valores artísticos sendo definidos por empresas), ou seja, é ignorar transformações que já estão acontecendo. E apenas aceitar essas mudanças, ignorando – ou melhor, atropelando – as pessoas e suas necessidades é o que costuma gerar ressentimentos de proporções bem desastrosas para a sociedade, como a história nos ensina. Portanto, o único caminho possível é o diálogo.
TMDQA!: Um dos grandes pontos do seu curso – talvez “o” grande ponto – seja o fato de que precisamos conversar sobre uma ferramenta que pode mudar o mundo. Negar que ela existe ou simplesmente demonizá-la não irá solucionar as questões éticas que ela já levanta. Dentro do tópico da IA, quais são as conversas mais urgentes que precisamos ter?
André Felipe: Ao falarmos de IA, é urgente pensar em legislações, regulamentações e ética, tanto porque já apitaram o início desse jogo e estão todos jogando sem saber ao certo as regras, quanto porque, se não conversarmos isso como sociedade, uma meia dúzia de poderosos vai se incumbir de dizer como o jogo deve ser. Mas será também que não podemos aproveitar a situação de estarmos à beira das transformações para repensarmos o que não está legal? Será mesmo que vamos só pensar a IA para um modelo de streaming que remunera tão mal, um estado de ansiedade e preocupação que pouco tem a ver com o fazer artístico e, em paralelo, aceitarmos que os músicos precisam trabalhar para as redes sociais, com imagens e vídeos tão efêmeros e inexpressivos (novamente, totalmente de encontro com o que é arte)? Talvez seja também urgente discutir tudo aquilo que já é urgente há tantos anos, mas aceitamos ignorar.