Quem viu a lista de melhores discos nacionais aqui do TMDQA! em 2023 se deparou com o quarto disco solo de Gustavo Bertoni, I Got My Eyes Fixed. Ambientado principalmente ao piano, o que acaba conferindo uma aura soturna ao álbum, ele também traz algumas belas experimentações com elementos mais eletrônicos e resulta em uma obra rica e cheia de camadas.
Apesar disso, I Got My Eyes Fixed é também uma obra que explora uma dualidade interessante entre protagonismo e não-protagonismo da música. Afinal de contas, da perspectiva do artista, como lidar com o fato da canção na qual você tanto trabalhou acabar como um som ambiente para muita gente?
Esse debate se mostrou vivo na concepção do álbum de Gustavo, como ele revelou no docudrama PHOROPTER, disponível no YouTube (ou ao final da matéria) e que se traduz para “foróptero”, mais conhecido como o tradicional aparelho usado por oftalmologistas para testar a visão de cada um. Aliás, como o próprio Bertoni explicou em post no Instagram, toda a ideia do disco (cujo título se traduz para algo como “Eu Arrumei Meus Olhos”) passa por uma metáfora em comum:
O disco se chama ‘I Got My Eyes Fixed’. Uma brisa que começou durante exames para uma cirurgia de astigmatismo que acabei não fazendo. Ângulos da córnea, refrações de luz, o grau necessário para se enxergar claramente. Exames lado a lado ali num computador com software meio anos 90 – cada pessoa com o seu grau e medidas, resultante de uma construção ocular-biológica idiossincrásica, irreproduzível. Quando olhava para o foróptero via uma espécie de ‘máscara’. Tinha algo ali. Cada lente que se gira poderia ser um pilar do pensamento – crenças, filosofia, politica, formas de amar… ‘Melhor assim? Ou assim?’.
As letras começaram a circular em volta desse tema e em meio às pesquisas fui me encantando pela ideia de que nossa visão de mundo autoral é a matéria prima mais valiosa que temos.
Continua após o vídeo
O não-protagonismo da música
Voltando à dualidade que mencionamos acima, ser ou não protagonista enquanto músico é uma decisão que muitas vezes não cabe ao artista. Cada um consome música como quer, no tempo que quer, e não há artista no mundo que dite essas regras para seus fãs e ouvintes – mas, para aceitar isso, é necessário um trabalho de ego, entender que aquela sua criação tão preciosa pode ser, para alguém, apenas um som de fundo.
Em entrevista exclusiva ao TMDQA! para falar sobre o docudrama e todo o processo de I Got My Eyes Fixed, Gustavo Bertoni foi questionado sobre a forma como lida com isso ao jogar no mundo um disco tão diferente de seus trabalhos anteriores, com uma notável influência da música ambiente, que muitas vezes cai justamente nesse não-protagonismo.
Elaborando a resposta que já havia dado no docudrama, no qual diz que o segredo é justamente encontrar o equilíbrio entre essas duas coisas mantendo a composição interessante o suficiente para chamar atenção do ouvinte, ele diz:
Acho que vem, sim, de uma curiosidade, de uma tentativa de cada vez mais diminuir as intenções egóicas por trás da composição. Lógico que sempre vai haver – ninguém aqui é Buda. [risos] Mas acho que cada vez mais você quer estar a serviço de algo que seja além de você. E a música serve como esse norte, como esse universo de pesquisa no qual você vai entrando, descobrindo sobre si mesmo, descobrindo a música. Na verdade, é isso que me atrai. Não é nem utilizar a palavra, é usufruir da ferramenta que é a arte como fonte de autoconhecimento.
Não à toa, alguns dos destaques de I Got My Eyes Fixed são justamente os instrumentais de faixas como “Under the Circumstance (Phoropter)”, que destacam o experimentalismo quase minimalista de Gustavo com elementos que vão se somando para criar uma composição única.
Ele complementa a explicação dizendo que “sempre precisa estar sendo atravessado e desafiado pela música em algum âmbito” para sentir motivação suficiente e “tentar entender o que está acontecendo e colocar isso no mundo”, mas resume de uma forma simples o objetivo final de suas composições:
No fim das contas, desde que eu comecei a fazer música, eu faço música para tentar causar nas pessoas o que a música causou em mim. Algo tão potente. A música faz parte da minha vida de uma forma tão forte desde sempre, então se eu conseguir gerar o sentimento que eu tive escutando tais e tais músicos em outras pessoas, estou feliz.
Continua após o vídeo
I Got My Eyes Fixed reflete sobre a importância de respeitar o tempo do ouvinte
Mais do que qualquer coisa, I Got My Eyes Fixed é um disco que busca respeitar o tempo das pessoas – e até o do próprio artista. No processo de concepção do álbum, o piano foi um protagonista inesperado, especialmente para quem acompanha sua carreira de antes, tanto com o Scalene quanto em suas outras obras solo, todas mais voltadas ao Folk, como você pode perceber no vídeo logo abaixo.
Ele até adianta que já possui mais um single na manga voltado ao estilo que o fez chamar atenção como artista solo, mas precisou respeitar a necessidade de um respiro que o levou a esse “disco mais passageiro”, como ele descreve:
Eu já tinha feito três álbuns Folk, e muito satisfeito com os últimos dois. Então, aqui está algo novo, e teve toda essa relação com o piano. Eu entendi que esse disco é um disco mais passageiro, no sentido de que não vamos ficar nesse som pra sempre; vai ser só mais um braço da discografia.
Sobre o trabalho mais recente até o momento, Gustavo Bertoni aponta a importância do produtor Lucas Mayer, dizendo que muitos dos resultados são responsabilidade das “camadas inesperadas” que ele adiciona – um processo no qual você pode mergulhar assisitindo ao docudrama linkado ao final da matéria.
Continua após o vídeo
Apesar de elogiar o fato de ter conseguido fazer um álbum que não seja “certinho”, Bertoni deixa claro que não está depreciando de forma alguma a música “formulaica”, como ele mesmo descreve. Ele ressalta que está vivendo uma fase em que busca “pescar momentos de intuição” para suas composições:
Estava em Florianópolis agora, na praia, e eu acho que morando em São Paulo, na fase da vida que estou, eu estou tendo satisfações reais mesmo quando estou mais longe da mente. Agora, na praia, naquele momento contemplativo, eu percebi o quanto que os processos mentais – talvez por cansaço, talvez por ansiedade quando estou nessa frequência de tentar resolver e elaborar as coisas no lugar racional, intelectual – me ajudam, mas não me satisfazem, não me completam.
Eu tenho tentado, tanto na vida quanto na criação, pescar esses momentos de intuição ou de mistério. Momentos de ‘não sei exatamente o que está acontecendo, o que eu estou fazendo, mas quero confiar em um sentimento e não em uma estratégia’. Por que eu estou fazendo essa música? Pra tal sensação, pra tal jeito, pra tal público? É quase que um processo algorítmico. E ele existe, tá tudo bem, eu acho encantador e fascinante – faz parte da minha linguagem como compositor. Mas tenho tentado fugir um pouco dessa lógica toda.
Gustavo aponta ainda que muitas vezes o formulaico “serve para direcionar algumas decisões”, mas pontua que o processo de criação que busca tem passado até por um certo grau de espiritualidade – algo definitivamente perceptível pelo resultado delicado de I Got My Eyes Fixed, que parece a todo tempo propor um mergulho interno.
“Respeitar o tempo do outro é minha forma de resistência sutil”
A própria existência de um docudrama para um disco como I Got My Eyes Fixed é um ótimo retrato de toda a dualidade que envolve esse lançamento. Dentro do filme em si, a música por vezes ocupa o papel de protagonista – como na performance de “Tides”, que você assiste logo acima e foi retirada da obra – e em outras ocasiões abre espaço para falas, cenas de bastidores e até cenas abstratas.
No fim das contas, é um álbum que pode ser consumido como você bem entender – como ele mesmo disse na mesma publicação citada acima:
A gente precisa suportar os 15/20 minutos de impaciência quando iniciamos um filme lento que não supre imediatamente nossas necessidades, prolongar e dissipar a dopamina. Se não, ‘tamo fudido’. Não é exagero dizer que não sucumbir à forma e velocidade da informação contemporânea é uma resistência necessária.
É essa matéria prima que as grandes corporações vão se apropriar para massificar e gerar lucro. É ela que as instituições dogmáticas irão cercear para torná-lo mais manipulável. É esculpindo-a que nos fazemos presentes e nos damos um senso de auto-parto. Cuidemos da nossa visão.
A postagem de Gustavo é finalizada com um pedido mais do que curioso: “espero que, no seu tempo e do seu jeito, aproveite o álbum que fizemos com muito carinho”. Como assim? Não é pra fazer pré-save, ouvir assim que lançou, deixar no repeat? Essa frase tão simples provoca um questionamento muito grande a quem estiver disposto a ir além.
No papo conosco, Bertoni elabora esse sentimento ao falar sobre o momento atual, que envolve uma “autopromoção muito absurda”, com músicos “cheios de tentativas de estimular, de prender”. Ele mostra entender a necessidade disso para os artistas, mas questiona:
Acho que a arte está aí muitas vezes pra fazer a gente perceber os excessos e as faltas regentes da sociedade atual, e acho que um dos excessos é esse: a constante dopamina fácil, o estímulo, a carência de atenção. Acho que fazer música ambiente que respeita o tempo do outro foi minha forma de resistência sutil.
De maneira bem-humorada e aos risos, Gustavo finaliza: “eu sou libriano, lua em câncer, então minha forma de resistência é mais pela poesia e pela sensibilidade do que pelo combate”. Quem quiser mais combate, que aguarde o retorno do Scalene quando a banda decidir voltar de um hiato!
Próximos shows de Gustavo Bertoni
Nos últimos dias, Gustavo Bertoni tem passado por diversas cidades do país com a turnê que leva o nome do docudrama “PHOROPTER”. Ainda há três shows marcados, em Recife (18/05, Estelita Bar), João Pessoa (19/05, Vila do Porto) e Rio de Janeiro (21/05, Teatro Prio).
Você pode ver mais detalhes sobre todos eles clicando neste link ou acompanhando o artista no Instagram. Abaixo, confira o docudrama PHOROPTER na íntegra.
Ficha técnica:
Roteirizado, filmado e editado por Monochroma Films.
Design e intervenções gráficas feitas pela Tég Bureau
Captação: André Ribeiro
Mixagem: Lucas Mayer
Atores: Julia Caterina, Isabelle Mestriner e Matt Magrath.