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Pais dos feats? Disco de Dorival Caymmi e Ary Barroso explica os interesses do mercado da música pelas parcerias

Dorival Caymmi e Ary Barroso lançaram "Um Interpreta o Outro" em 1958 e mostraram o poder dos feats já na época dos discos de vinil.

Ary Barroso e Dorival Caymmi - Um Interpreta o Outro
Ary Barroso e Dorival Caymmi – Um Interpreta o Outro

Por Helcio Herbert Neto

Quando dois artistas têm a disposição de criar algo em conjunto, várias possibilidades se abrem – compartilhamento de referências, colaborações a partir de perspectivas estéticas diferentes, troca de funções durante a elaboração das obras. O potencial da reunião pode encher os olhos da indústria, a princípio pela oportunidade de promover encontros inéditos. Ou de proporcionar aos fãs novas leituras, outros repertórios. Inclusive no caso do mercado da música: a popularidade dos feats é um atestado dessa tendência.

É um engano imaginar que as participações, que ficaram conhecidas mundo afora pela abreviatura em inglês principalmente na virada para o novo milênio com a colaboração entre cantores de rap e R&B, é resultado só das dinâmicas em plataformas digitais de música. Curiosamente, a parceria de um dos pioneiros do comentário esportivo no rádio com um compositor que completaria 110 anos em 2024 escancara como isso tudo se traduz em popularidade e, ao mesmo tempo, possibilita que limites artísticos sejam explorados.

Ary Barroso pode ser considerado um patrono do comentário esportivo – prática de avaliar, criticar e até ironizar o desempenho de clubes, seleções, dirigentes, técnicos e jogadores que especialmente com o futebol alcançou enorme abrangência no Brasil.
Compositor do clássico “Isto aqui o que é?” – interpretado até na abertura dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro –, o músico foi ainda vereador, vice-presidente do Flamengo, jornalista, apresentador de televisão e uma espécie de líder sindical.

Profundo conhecedor da comunicação de seu tempo, Ary morreu em 1964 – antes, portanto, de presenciar o ápice da indústria do disco no Brasil. Conhecida pelo acetato preto, a peça que em dois lados conta alguma história se espalhou na metade do século XX, mas demoraria para engrenar em um país de tradição oral, menos adepto dos formalismos. Essa relação instável e constantemente em disputa é própria da cultura popular. Atravessa o futebol, a canção radiofônica, a programação televisiva.

O samba, por exemplo, resistiu ao enquadramento do long play: é uma das justificativas para não constarem tradicionalmente nas listas dos melhores de todos os tempos os álbuns de sambistas. A outra é mesmo o preconceito. Símbolo desses enfrentamentos, as canções compostas com o propósito de aquecer as rodas ou embalar desfiles conviveram, nas décadas de 1930 e 1940, com letras em exaltação ao Brasil. Foi o caminho pelo qual Ary se enveredou naquele período ao lado de, entre outros, Assis Valente.

Mas a parceira mais emblemática não seguiu os parâmetros do samba-exaltação. Profundamente popular à época eram igualmente as canções românticas, no limite do bolero, que em versos chorosos reclamavam da perda de um grande amor ou relatavam a agressividade despertada por determinada partida. Se duelava com Valente pelo topo do samba-exaltação, Ary se deparava com outros rivais no samba-canção. Arredio a disputas, Dorival Caymmi era mesmo assim um desses candidatos ao posto. A voz das Canções Praieiras havia nascido em Salvador, em 1914.

Caymmi representava a Bahia e, com versos quase sombrios sobre o mar, gerava identificação entre ouvintes com origem em estados do nordeste – em muitos casos, migrantes para São Paulo ou Rio de Janeiro em busca de oportunidades. Por isso, esteve mais próximo aos valores da Rádio Nacional, pública. Já Barroso, mineiro, cursou direito na então capital do país e entrou para a política com pautas voltadas para as classes médias. Então, era natural que Ary se reconhecesse mais na Rádio Tupi, do principal grupo privado da época: os Diários Associados.

A dupla, apesar das diferenças, lançou em conjunto o LP Um Interpreta o Outro pela Odeon em 1958. O trabalho demonstra essas ambiguidades: enquanto Ary faz versões ao piano de canções do companheiro sem cantar, a voz grave de Caymmi reveste os versos do colega de outros tons; na capa Barroso, natural do município de Ubá (MG), mostra pouca familiaridade diante do mar com uma vara de pescar na mão, ao passo que Dorival se agacha com a camisa do Flamengo para a fotografia.

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A imagem do encarte causa espanto. Qualquer um que conhecesse minimamente a figura pública dos músicos estranharia a situação registrada pela câmera. Os nomes foram impressos em vermelho e preto, com os sobrenomes invertidos. Os sinais vacilantes não foram um impeditivo para que o álbum chegasse às lojas. Pelo contrário, a possibilidade de o repertório atingir públicos diferentes foi um atrativo. A conexão de audiências, inicialmente dispersas, está na base da popularidade do lançamento – e dos atuais feats.

Caso o possível comprador não chegasse a levar Um Interpreta o Outro para casa, pelo menos o disco renderia comentários. Ou até risadas em conversas com amigos. O humor é um traço inescapável: ambos sorriem na capa. Pioneiro do comentário esportivo em radiodifusão, Barroso investiu na comédia não somente para analisar o futebol, mas também para apresentar programas de calouros e outras atrações na radiodifusão. Em contraste com a seriedade da Rádio Nacional, o comunicador apostou em elementos comuns à rotina dos torcedores.

Atitude passional perante o time, brincadeiras com os rivais: na televisão e no rádio, esses traços da cobertura esportiva se mantiveram desde o século XX. É um equívoco supor que a colaboração dos dois músicos é fruto somente de interesses artísticos: Barroso era o homem-forte da radiodifusão até problemas hepáticos o afastarem das transmissões. Entendia bem essa circulação pela sociedade. Em contrapartida, presumir que o encontro com Caymmi é pura maquinação de empresários é negar a criatividade dos dois. E, no limite, a qualidade do álbum.

Depois da morte de Ary a tendência da indústria se manteve. A música brasileira tem exemplares simbólicos das colaborações. Chico e Caetano: Juntos e Ao Vivo (1972); Elis & Tom (1974); Gil & Jorge: Ogum, Xangô (1975) – poucos entre os vários casos a serem citados, e apenas na década seguinte à partida do compositor rubro-negro. Com a digitalização, já no século XXI, o interesse pelas parcerias explodiu, diante das interações proporcionadas pelo público nas diferentes plataformas. E a tarefa de metrificar o alcance dos feats foi facilitada.

Hot charts, trending topics, curtidas e compartilhamentos são a régua dos executivos para aferir o sucesso das canções. Mas a medida não dá conta da criatividade dos artistas, nem da ousadia dos trabalhos. Menos interessante do que definir o marco inicial das parcerias é enxergar o comportamento de produtores, músicos e audiências. Em vários sentidos, a relação com os lançamentos ainda responde às tradições populares que combinam, por exemplo, futebol e música: como reforçam Ary Barroso e Dorival Caymmi em Um Interpreta o Outro.

Helcio Herbert Neto (@exarrobasom) é autor do livro Palavras em jogo: Comentário esportivo no Brasil (2024). Atualmente, realiza pesquisas sobre cultura popular em âmbito de pós-doutorado no Departamento de Estudos Culturais e Mídia da UFF, instituição pela qual também se tornou mestre em Comunicação. Formado em Filosofia (UERJ) e Jornalismo (UFRJ), é ainda professor e doutor em História Comparada pela UFRJ.