Por: Felipe Martins (Rets) e Pedro Soares
Dez anos após o lançamento de seu álbum de estreia, Russo Passapusso voltou a São Paulo para comemorar uma década de Paraíso da Miragem.
Diferente do único show realizado no SESC Vila Mariana em 2014, dessa vez as apresentações aconteceram em três datas, 03, 04 e 05 de julho, no palco do SESC Pompeia com sessões esgotadas.
Assim como na estreia, Russo subiu ao palco acompanhado de amigos de longa data: Curumin na bateria, Zé Nigro nos sintetizadores, Lucas Martins no baixo (todos coprodutores do disco), além de Saulo Duarte na guitarra, Edy Trombone na percussão e trombone, Loiá Fernandes e Maurício Badé na percussão, Doug Bone no trombone e Maestro Ubiratan Marques no piano elétrico.
Na noite da quarta-feira, 3 de julho, o show começou com a participação especial do poeta Luiz Carlos Bahia declamando o seu prólogo “Contradição”, em que interpreta o personagem “Reimundo”, que foi inspirado pelo poeta Raimundo Arruda Sobrinho. Mais do que um simples personagem, “Reimundo” simboliza a luta dos marginalizados por voz e reconhecimento. É um defensor da oralidade e da poesia, além de ser um porta-voz de importantes mensagens sobre o cuidado com o planeta e a necessidade de inclusão social.
Explorando a complexidade da existência humana, o texto de “Reimundo” apresenta um paradoxo incessante, onde luz e sombra, alegria e dor, coexistem e se entrelaçam de maneiras intrincadas. O eu lírico, uma entidade fragmentada, encontra-se em constante diálogo com suas contradições internas, navegando por mares de incerteza e clareza, de amor e desamor, de esperança e desilusão.
Meu lado honesto te rouba, meu lado ladrão se entrega.
Meu lado querer, se cala. meu lado canalha, renega.
Meu lado mentira, afirma. Meu lado verdade, nega[…]
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Estreitamente ligado ao álbum Paraíso da Miragem! O disco é uma jornada musical que explora temas como a vida urbana, a espiritualidade e a busca por um paraíso pessoal e coletivo. As letras são poéticas e reflexivas, abordando questões sociais e existenciais. O álbum é caracterizado por seu ecletismo e pela habilidade de Russo em transitar entre diferentes ritmos e estilos, sempre com uma abordagem inovadora e autêntica. Sobre o disco, Russo Passapusso disse ao TMDQA!:
‘O Paraíso da Miragem’ nos últimos dez anos, eu acho que essa casa, esses objetos, esse processo tomou forma e tomou vida através do imaginário e também da vida real das pessoas que continuaram ouvindo esse disco. Nestes anos fui ouvindo e captando opiniões do que seria flor de plástico pra um e pra outro, do que seria paraquedas, remédio, relógio pra um e pra outro. A funcionalidade dessas coisas traz pra gente um entendimento de que quem muda é a gente, não são as coisas. As coisas falam de formas diferentes de acordo com os movimentos diferentes que vivemos.
O álbum é uma celebração da diversidade musical brasileira e um convite para uma viagem sonora cheia de surpresas e descobertas. Com uma paixão profunda pela música popular brasileira dos anos 70, Russo transformou o Paraíso da Miragem em um verdadeiro cancioneiro. As letras metafóricas não só se encaixam harmoniosamente, mas também contam histórias que evocam passagens de sua vida. O cantor baiano explica:
’O Paraíso da Miragem’ é a expressão mais forte que tenho na minha carreira, foi o primeiro disco. Ele é a expressão mais forte da sabedoria da inocência musical dentro da minha trajetória, e depois de ter lançado o ‘Alto da Maravilha’, a gente já entende como ele se comunica com isso tudo, como as coisas foram se alinhando.
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Dando sequência ao show, após a performance de Luiz Carlos Bahia, Russo sobe ao palco ao som dos primeiros acordes de “Paraquedas”, Si-Mi-Si-Ré-Dó#-Si-Mi, o maior sucesso de Paraíso da Miragem. A faixa, que abre o disco com uma metáfora poderosa sobre o apoio e a segurança necessários para enfrentar os desafios da vida, deixou a plateia num êxtase com o prelúdio de um espetáculo há muito tempo desejado e requisitado pelo público.
E a entrega foi completa: sempre cheio de energia no palco, o músico convidou a plateia para dançar, criando uma conexão calorosa e próxima com os presentes. Logo na sequência veio a versão ao vivo de “Remédio”, uma faixa que explora solos vibrantes de Saulo Duarte, ritmos funkeados e nuances inspiradas no mais puro estilo Acid Rock, uma sonoridade original que remete a Jimi Hendrix e Zé Rodrix.
A apresentação também contou com uma grata surpresa no repertório: a faixa “Como?”, composta por Luis Vagner (O Guitarreiro), um grande nome da Black Music no Brasil e difundida na voz do pernambucano Paulo Diniz. Sobre essa música, Russo apontou:
Essa música é o elo mais profundo entre eu e os músicos do Paraíso da Miragem. Temos essa estética musical […] Paulo Diniz tem uma forma muito natural de transmitir o cotidiano em suas músicas. Essa, por exemplo, é um recado de amor, uma balada de amor que se conecta profundamente com o processo do disco. Ela tem uma conversa forte com a ideia de ter e não ter, algo bem platônico, uma luta para manter o amor. Gostamos das duas versões (Luis Vagner e Paulo Diniz), cada uma tem seu poder específico, sua qualidade […] A de Paulo Diniz tem uma característica mais aguerrida, usando drives na voz, reflete a força do amor.
O show reproduz os arranjos do disco de maneira fiel e atravessa diversos momentos, incorporando elementos como o rock à la Jovem Guarda e Zé Rodrix, samba soul no estilo Cassiano, batidas distintas em “Relógio”, samba de roda em “Matuto” e “Sangue do Brasil”, e é repleto de imagens vívidas. Uma atrás da outra, sem parar, a dinâmica no palco, a ótima entrega de PA pelo técnico de som Victor Gonçalves e as luzes afinadas de Lígia Chaim garantem uma experiência imersiva para todos os presentes, além de destacarem uma banda entrosada e cheia de técnica no decorrer da apresentação.
Apesar de comemorar o lançamento do disco Paraíso da Miragem, o show não se restringe apenas às músicas do álbum. Pelo contrário, nesta apresentação é possível testemunhar um pouco da estrada trilhada por Russo Passapusso desde o começo da sua carreira solo.
Além de contar com músicas de seu outro trabalho solo, Alto da Maravilha, de 2022, a plateia também foi agraciada com algumas rimas no melhor estilo toaster que Russo já domina e conduz junto ao BaianaSystem e previamente no Ministereo Público.
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A apresentação foi finalizada ao som da faixa “Aperta o Pé”, um ijexá com temperos de funk, que já está presente no repertório desde 2014, mas só foi gravada em 2022, no Alto da Maravilha, e o público ainda teve direito a um bis com “O Vapor de Cachoeira”, do mesmo disco.
Do começo ao fim, a plateia foi parte essencial do show, engrossando o coro comandado por Russo Passapusso, cantando todas as músicas a plenos pulmões e abrindo rodas de samba dentro do salão do SESC.
O show confirmou o Paraíso da Miragem como um disco atemporal da música brasileira. Dez anos após seu lançamento, o álbum continua encantando e cativando o público e solidificando Russo como um dos grandes compositores da nossa contemporaneidade. Ao mesmo tempo, mostrou a evolução que o músico teve nos últimos dez anos, evidenciando as diversas influências que têm colaborado para o trabalho do artista baiano.
Tal qual um catalisador, Passapusso tem demonstrado a potência de absorver, processar e jogar de volta para o mundo o encontro do fazer música tradicional com o futurista, a calmaria do interior com a explosão da metrópole.
Bem como em sua estreia, Russo segue numa busca com a sua arte, e é notável que dentro destes últimos dez anos essa procura adquiriu outros contornos conforme ele mesmo foi mudando e aprimorando o seu fazer artístico, captando e propagando referências. Sobre isso, Passapusso declarou:
Eu vejo o virar da ampulheta trazendo mais sessões temporais com novas compreensões dentro do ‘Paraíso da Miragem’. Isso é muito interessante, pois trata-se da gente se enxergar, reaver a própria banda, o próprio grupo. As metáforas do disco que traziam melodias e arranjos, pelos caminhos ficcionais da imaginação de uma criança, de um adolescente, de um jovem, se tornam reais hoje. Meio como no sentido profético que toda música tem. A gente canta, canta, e não percebe que o que a gente está buscando é aquilo.
Além do Alto da Maravilha, nos últimos 10 anos Russo produziu outros discos junto ao BaianaSystem, e também participou de inúmeras produções e colaborações nacionais e internacionais que colaboraram para o aumento de seu repertório artístico.
Ganha a música brasileira, que por conta de artistas como Russo Passapusso segue sempre se reinventando e se firmando, não só como elemento cultural, mas também como elemento de emancipação política e social. Como ele mesmo disse ao final do show: “Só a música liberta”.