As relações entre pais e filhos são temas recorrentes na música, exploradas tanto em suas complexidades quanto em seus afetos.
Cat Stevens (atualmente Yusuf) abordou a distância geracional em “Father and Son”, onde pai e filho expressam diferentes perspectivas de vida. A Legião Urbana tocou nesse tema em “Pais e Filhos”, onde fala dos conflitos e das angústias que marcam essa relação em um mundo em constante transformação. Talvez o exemplo mais conhecido seja, no entanto, o de Fábio Jr. O cantor capturou o amor paternal de forma emotiva em “Pai”, canção que se tornou um hino sobre o respeito e a saudade entre gerações.
O Dia dos Pais traz à tona muitos desses clássicos. Junto deles, aparece o estereótipo da figura paterna, empacotada e embrulhada para presente pelas lojas de departamento online – dos pais workaholics aos apaixonados por games, passando pelo amante da churrasqueira ao esportista, há muitas caixinhas possíveis para a paternidade.
Uma que raramente aparece, no entanto, é a do pai músico, aquele que rala em cima dos palcos, nos estúdios, quase sempre a muitos quilômetros de casa. O corre, no entanto, não impede que estejam presentes, na medida do possível. Da estrada, trazem instrumentos e muita história para contar.
Não é de se espantar, então, que essa vida criativa faça brilhar os olhos dos filhos. Eles crescem com a música como companhia constante e entendem que é possível viver daquilo que amam – ainda que exija muita ralação. Esse movimento de filhos que seguem os passos dos pais é tão antigo quanto as próprias profissões.
Na música, no entanto, essas relações estão sempre se ressignificando. Se antes era esperado que os filhos meramente espelhassem a trajetória de seus pais, hoje eles fazem os próprios caminhos – e ainda voltam para casa com a bagagem cheia de experiências para compartilhar com os mais velhos. Essa relação entre pais e filhos músicos tornou-se uma via de mão dupla, com muito espaço para a colaboração – uma parceria que já chega cheia de familiaridade.
É o caso de Orlas, projeto que acaba de ser lançado por Victor Chicri e Vic Delnur, onde as origens dos músicos cariocas – hoje radicados nos Estados Unidos – ficam sob os holofotes. Vic, o filho, conta que tinha o disco praticamente pronto e resolveu chamar o pai para escrever os arranjos de cordas. Em seguida, Victor gravou os pianos.
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“Ali ficou claro, o Orlas era pra ser eu e ele. Em todas as bandas que eu já tive no passado, de alguma forma meu pai estava envolvido. Geralmente na gravação de teclados, eu também sempre busquei a opinião dele no que eu estava fazendo. Quando eu era adolescente, ele às vezes tocava uma música ou outra nos nossos shows, e vice-versa.”
Delnur é multi-instrumentista e produtor musical e fez turnês mundiais com sua antiga banda de indie rock psicodélico Water and Man. Recentemente se destacou como produtor e instrumentista, colaborando com artistas como Sessa, Mahmundi, Luciane Dom e Trella.
Seu pai é uma lenda do mercado musical brasileiro. Victor Chicri é maestro e pianista e começou sua carreira na década de 70. Ele se destacou em gravações, produções e performances ao vivo ao lado de grandes nomes da MPB, como Gal Costa, Seu Jorge, Bebel Gilberto, Simone e Emílio Santiago. Chicri levou sua música ao redor do mundo, incluindo uma performance no Montreux Jazz Festival, onde dividiu o palco com a orquestra de Quincy Jones. Sua carreira é marcada por muitas produções premiadas com discos de ouro e platina, além de um Grammy Latino.
É dessa fase mais prolífica que Vic guarda suas primeiras lembranças da conexão musical com Chicri. O filho recorda:
“Eu lembro de visitar meu pai no estúdio, na época em que ele tocava com a Gal Costa. Lembro de entrar e ver tanta gente e tantos instrumentos, tudo organizado. E ali eu percebi que dava pra ser músico com um ambiente legal, e não como eu imaginava na minha cabeça.”
O pai também notou uma conexão sonora do filho desde muito cedo, inclusive no ambiente doméstico. Victor Chicri recorda:
“Eu gravava bastante vinhetas para a TV Globo, gravava na sala de casa, e o Vic com 6 meses ficava engatinhando perto de mim. Quando as vinhetas iam pro ar, ele parava e olhava em direção a TV. Percebi ali que ele reconhecia todas as vinhetas que eram gravadas em casa.”
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Nem sempre essas conexões se formam de maneira tão clara. Yohan Kisser não imaginava que o pai, Andreas Kisser, integrava uma das maiores bandas de Metal do planeta, o Sepultura. Embora a dedicação à música estivesse óbvia, não estava explícito onde o pai ia se apresentar quando estava fora de casa. Yohan recorda, de forma bem humorada:
“Eu sempre achei, quando pequeno, que meu pai era guitarrista do São Paulo Futebol Clube. Ele estava sempre de uniforme.”
Já faz um tempo que as peças se encaixaram. Afinal, as trajetórias profissionais de Yohan e Andreas estão entrelaçadas não é de hoje. Eles estão juntos no programa de rádio Pegadas de Andreas Kisser, há 12 anos na Rádio Rock 89,1 FM de São Paulo. Também tocam na banda de covers e clássicos do Metal Kisser Clan (pai e filho dividem vocais e guitarras, com Gustavo Giglio no baixo, Amilcar Christófaro na bateria e Renato Zanuto nas teclas). Yohan hoje olha para essas oportunidades como verdadeiras escolas:
“Foi onde comecei e aprendi tudo que sei sobre o palco e a estrada e passei por palcos como o Rock in Rio.”
Mas essas vivências são múltiplas e variadas – é o caso do show comemorativo de 100 anos da Semana da Arte Moderna, em 2022, no Teatro Municipal de São Paulo, onde os Kisser fizeram um repertório de Villa-Lobos com arranjos para violão, guitarra, piano, percussão e quarteto de cordas juntamente com o Quarteto da Cidade.
Para completar, Yohan integrou o time de músicos que acompanhou o pai em shows por festivais como o Rio Montreux Jazz Fest e Best of Blues. O próprio Andreas guarda com carinho os marcos dessa trajetória de estudos do filho.
“Ver o processo do Yohan, desde o início, o primeiro show na escola com a bandinha dele e depois a gente montar o Kisser Clan, que é uma banda que eu tenho com ele pra tocar covers, enfim… Mas o momento especial pra mim e acho que pra ele, obviamente, foi na formatura do violão que ele fez na Fundação São Caetano. Se formou em violão popular e ele me chamou pra tocar junto com ele na apresentação final de diploma e tudo. E achei muito especial ter essa conexão de uma fase da carreira, de aprendizado básico da música e passar por esse processo. Foi lindo e bom ter participado disso. Foi um momento inesquecível.“
Mas Andreas pontua a importância de deixar as conexões acontecerem naturalmente, sem a influência dos pais com a expectativa de que os filhos sigam uma carreira específica. Com a liberdade para que escolham seus caminhos, eles podem sim acabar no “negócio da família” – ou simplesmente descobrirem suas próprias aptidões. No clã dos Kisser, está tudo em casa:
“Trabalhar em família acho que é muito bom, principalmente quando um membro da família se interessa, se dedica, estuda e faz a coisa com naturalidade, não só por uma forçação. Eu nunca forcei meus filhos a seguirem os meus passos, mas a música sempre foi uma coisa muito natural em casa, uma coisa muito natural em mim. Eu faço aquilo que amo, são 40 anos de Sepultura, viajando o mundo e fazendo discos. Independente de todas as turnês, a gente sempre foi muito unido, sempre respeitei muito a minha profissão como minha família e acho que isso inspira. Sempre tive vários instrumentos em casa, guitarras, teclados, percussão e coisas assim. Então, desde cedo, meus filhos sempre mexeram muito com música. E o Yohan foi o que tem demonstrado mais interesse pelo caminho, minha filha faz maquiagem e agora, meu filho mais novo está estudando produção musical também. Está todo mundo meio que na arte. E é bom trabalhar, obviamente, tem muita conexão.”
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Para as novas gerações, os caminhos são ainda mais amplos do que para quem começou há quatro ou cinco décadas, como é o caso de Andreas e Victor. Por isso, Chicri vê na música uma forma de estreitar laços com seu filho. Para ele, tocar junto de quem se ama é uma experiência sem desafios, apenas com o prazer de compartilhar momentos. Já Vic enxerga na convivência e na observação as principais fontes de aprendizado, destacando a importância de estarem próximos em diferentes fases da vida.
“Em todas as bandas que eu já tive no passado, de alguma forma meu pai estava envolvido. Geralmente na gravação de teclados, eu também sempre busquei a opinião dele no que eu estava fazendo. Quando eu era adolescente, ele às vezes tocava uma música ou outra nos nossos shows [da Water and Man], e vice-versa.”
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Família, família; negócios à parte
Compartilhar o palco ou créditos em uma gravação são formas de celebrar essas conexões, como é o caso de Vic e Victor. Outra possibilidade é a escolha do nome artístico, onde um sobrenome de peso como o Kisser já chega impondo respeito, mas, ao mesmo tempo, traz muitas demandas. Afinal, com grandes poderes, vêm grandes responsabilidades.
Yohan reconhece que atuar na mesma área que o pai o torna alvo de noções pré-concebidas:
“Eu acho que existem muitas expectativas e muitos conceitos prévios sobre meu trabalho, antes mesmo de ouvirem. Muita gente acha que toco Metal no meu projeto solo, o que está longe de ser verdade. Atrapalha a comparação ou a idolatria pelo meu pai no momento que quero divulgar o meu trabalho.“
Este é apenas um dos desafios de quem decide seguir um caminho profissional que coincide com o do pai. A familiaridade inerente a essa relação não tira a seriedade na conduta do trabalho, e as duas coisas não podem se misturar. E, na intimidade de pais e filhos, certas coisas não mudam nunca! É o que conta Vic Delnur:
“Eu amo tocar com meu pai, falar de música, sobre o que eu estou ouvindo, e acho tudo isso um privilégio. O desafio é que eu continuo sendo filho, e se bobear levo uma bronca (risos).”
Andreas Kisser aponta que a proximidade familiar pode, sim, colocar a objetividade em cheque. Por isso, é importante manter o profissionalismo:
“O desafio é manter a emoção de estar com a família separada dos negócios. De ter uma coisa mais objetiva do que for melhor para o negócio e não deixar muita emoção tomar conta nas decisões mais racionais, do que a banda precisa ou do que o business precisa. Esse é o grande desafio, mas é uma coisa também que é trabalhada. É uma coisa que a gente aprende a fazer fazendo. Não tem aula pra isso. É uma coisa que a gente realmente tem que, no meio de tudo, aprender a lidar com isso. Mas nada que atrapalhe. Sempre é um aprendizado nos desafios e nas grandes conquistas também.”
A escola do aprender fazendo é uma das melhores formas de estruturar as lições que vêm de uma convivência profissional no âmbito familiar. Desde muito cedo, os pais conseguem guiar pelo exemplo. Yohan recorda sobre a experiência de separar as personas do pai em casa e no contexto da música:
“Eu trabalho com meu pai desde os 12 anos, tanto na rádio quanto no Kisser Clan. Conhecer meu pai no trabalho, no palco, foi algo diferente no início, com alguns choques e aprendizados de como ele se comporta nesses ambientes, mas depois isso se tornou parte da nossa relação tanto profissional quanto de amizade.”
Troca de experiências
Os aprendizados não acabam – não importa se se tem uma ou quatro décadas de história na música. Andreas Kisser resume:
“Tenha respeito ao que você escolheu e se prepare pra isso. Meu pai era engenheiro e trabalhou na Mercedes por mais de 40 anos. Eu também estou celebrando 40 anos na minha empresa, o Sepultura, e sempre evoluindo, sempre estudando, procurando informações novas, vendo novas possibilidades. A gente tem o privilégio de viajar o mundo, de conhecer gente, culturas diferentes, maneiras diferentes de ver a música ou fazer música. Acho que é isso, realmente se dedicar à escolha que você teve e curtir, nunca perder o amor por aquilo que você faz pra não virar um emprego somente. Faça aquilo que você curte e continue crescendo até o fim.”
E há um conselho para quem deseja tocar em família? O chefe da casa Kisser recomenda:
“O conselho é fazer aquilo que gosta, sendo em família ou não, tipo um estilo de música e se preparar, estudar pra isso, curtir. Por mais difícil que seja o business, negociação, gravadoras, advogados, eu tive que me lembrar porque estou aqui, fazendo aquilo que amo, independente do estilo. As críticas vão estar sempre por aí e há muito a se aprender também com as críticas. Então é isso, faz o que gosta e se prepare, estude pra poder curtir no palco.”
Yohan teve oportunidades únicas para aprender, de um ângulo privilegiado, como se tornar um instrumentista de referência, gerir uma banda-empresa e ainda lidar com toda a pressão que essas demandas implicam. Foi uma escola para muito além das técnicas e conceitos, como ele mesmo resume:
“Acredito que os maiores aprendizados são muitas vezes em âmbitos filosóficos. Meu pai me ensina a pensar grande sempre e aponta meios possíveis no alcance independente, valorizando o estudo, a dedicação e acima de tudo a sinceridade e liberdade na música.”
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Ao gravar e compor com Vic Delnur, Victor Chicri também precisou voltar a aprender – dessa vez, a lidar com uma outra perspectiva de dar forma às canções. Como o filho trouxe as composições quase prontas para o álbum de Orlas, seu projeto conjunto, o trabalho acabou se tornando um exercício musical calcado no silêncio.
“Aprendi que ele tem um jeito de compor e produzir bem diferente do meu. Pratiquei ficar em silêncio e refletir quando ele dava uma ideia de algum caminho para a música, e me surpreendi diversas vezes com os resultados.“
Por vezes, é preciso ficar apenas com os olhos e os ouvidos bem abertos. Delnur conta que é isso que faz, mesmo depois de tanto tempo:
“Eu aprendo muito com ele, mesmo que só observando. Cresci vendo ele tocando, gravando, e é impressionante o olhar dele pra parte harmônica.”
A experiência já rendeu outros tantos aprendizados. E, para quem deseja seguir o mesmo caminho, Chicri aponta o que é indispensável:
“Respeitar muito a opinião do outro e principalmente falar baixo (risos)!”
Dessa forma, esse feat tem tudo para ser duradouro. Não há um mapa da mina para projetos musicais feitos por pais e filhos – assim como não existe manual de instruções para a paternidade. Há muitos caminhos possíveis, e quando ele leva à música, todos nós saímos ganhando.
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