Marcelo Monteiro, jornalista e editor do portal da Globo.com desde 2006, lançou seu primeiro livro, AVALANCHE – A revolução do streaming (2010-2020): 51 nomes para conhecer a novíssima música brasileira, com prefácio de Pena Schmidt e apresentação de Ricardo Cravo Albin.
Conhecido no mundo musical por seu trabalho no blog Amplificador, do jornal O Globo, Monteiro dedicou quatro anos à pesquisa profunda sobre a cena contemporânea brasileira, resultando em uma obra que mapeia os melhores lançamentos da última década e explora os impactos do streaming na indústria fonográfica.
AVALANCHE se destaca por sua abrangência e detalhamento ao longo de suas 430 páginas ilustradas com 300 fotos e 31 entrevistas com figuras-chave da indústria musical. O livro oferece perfis extensos de 51 artistas de diversos estilos, incluindo nomes consagrados como Céu, Criolo, Emicida, Luedji Luna, BaianaSystem, Francisco, El Hombre, MetáMetá e Boogarins.
Além disso, traz análises sobre a nova cena independente, o crescimento dos festivais e a transformação da indústria pós-streaming, com gráficos e pesquisas de institutos especializados em música do Brasil e do exterior.
A obra, publicada pela Natura Musical e Numa Editora, tem sua primeira edição lançada após um crowdfunding bem-sucedido feito em 2023.
AVALANCHE registra a história da música brasileira da década de 2010-2020 e serve como um guia para novos ouvintes e um mapa detalhado para quem deseja explorar os lançamentos mais impactantes da cena contemporânea. Monteiro descreve o livro como um esforço para destacar os talentos emergentes e oferecer uma visão abrangente das transformações ocorridas na indústria musical brasileira nos últimos anos.
Esse trabalho extenso finalmente chega ao público e o autor conversou com o TMDQA! com exclusividade. Confira abaixo!
TMDQA! Entrevista: Marcelo Monteiro
TMDQA!: Avalanche faz o caminho inverso: aborda a geração que foi da mídia física para o streaming. E agora, o livro transforma essa geração que viveu e prosperou no digital em um livro “de carne e osso”. O que motivou essa vontade de escrever um livro sobre a geração da música nacional de uma década tão transformadora?
Marcelo Monteiro: 2010-2020 foi a década da consolidação do streaming, da passagem de bastão do físico para o digital na indústria fonográfica, inaugurando uma nova forma de se produzir, consumir e monetizar discos. Foram dez anos de transformações radicais no mercado com as plataformas de música como solução para vencer a pirataria e com o digital pela primeira vez ultrapassando o físico como mídia dominante para circulação de discos, singles e clipes. São dois marcos, 2015, quando os lucros online com streaming, downloads e publicidade superam os registrados com as vendas de CDs, DVDs e discos de vinil, e 2017, quando o streaming sozinho se torna a principal fonte de renda para a indústria. Foi a década também de crescimento dos festivais de médio porte, da transformação e consolidação do midstream, dessa nova forma digital de movimentar a indústria e circular os sons nas plataformas, mídias sociais, blogs, sites de música, a afirmação de uma nova maneira de viver de música sem precisar seguir a cartilha em que praticamente o único caminho eram as gravadoras.
O mercado mudou radicalmente, fazer sucesso hoje não é necessariamente fechar com uma major, muitos artistas conseguem se manter, produzir e circular os festivais de forma independente, desde a criação do álbum, até gravação, divulgação e shows. Os artistas viraram seus próprios empresários e a definição de sucesso acabou mudando muito. A Letrux no livro define bem como ‘artista-polvo’, o músico (muitas vezes com equipes grandes) que atua em várias frentes substituindo o que antes era feito pelas gravadoras. Esse mercado independente explodiu, o número de artistas circulando em festivais e casas de shows hoje é gigante, uma avalanche de novos nomes que é até difícil acompanhar. O livro faz então esse resumão como filtro dos nomes mais relevantes e das principais transformações com muitos dados e análises.
Comecei a pensar o ‘Avalanche’ em 2018 como encerramento da década, a ideia era escrever sobre as bandas que tinham passado pelo Amplificador, blog do Globo só sobre novos sons brasileiros que criei em 2011 em parceria com os também jornalistas Ricardo Calazans e Eduardo Rodrigues (depois reforçado pelo Luccas Oliveira e Mateus Campos). O blog já tinha rendido uma coletânea para Far Out de Londres, ‘Amplificador – Novíssima Música Brasileira: The Brazilian 10s Generation’ (2016), com músicas de 17 artistas (Passo Torto, Abayomy, Baggios, Fino Coletivo, Luziluzia, entre outros do país inteiro) e uma parceria com a Sony para um selo também todo dedicado a novos sons, o ’Novíssima’ (2016-2019). Lancei com a Sony EPs e singles de artistas como Nômade Orquestra, Brvnks, Sara Não Tem Nome, Iconili, André Prando, Tagore e uma parceria internacional com a Flávia Coelho, brasileira radicada em Paris com super trajetória na Europa e ainda pouco conhecida no Brasil. Queria então fechar a década publicando em livro um resumão dos destaques da cena contemporânea desse mercado que chamamos de midstream, de bandas fora do pop e mainstream, que não necessariamente tocam em rádios e TV, mas tem público enorme no digital, nos festivais e frequentam as listas de melhores do ano da mídia especializada.
Todo debate e análise sobre a revolução digital tem papel chave no livro, são 150 páginas com muitos números, análises e entrevistas, já os perfis na segunda parte tem 250 páginas. Fiz então antes do top 51 uma pesquisa prévia longa sobre o boom do streaming para contextualizar. Li muito material em sites estrangeiros como o excelente Music Business Worldwide e pesquisas comentadas da MIDiAResearch, Statista, artigos no Guardian, Rolling Stone, MIDiAResearch, NPR, Wired, fora matérias e análises sobre streaming no Globo, Folha, Valor e blogs.
Mas aí veio a pandemia e sem clima para falar sobre toda efervescência da cena, adiei o lançamento. Já tinha feito toda primeira parte com análises da revolução digital e contextualização do mercado, reforcei com 31 entrevistas debatendo novo cenário digital e com gráficos licenciados de institutos de pesquisa do Brasil e de fora, como IFPI (dados oficiais da Federação Internacional da Indústria Fonográfica), MIDiAResearch, Statista, Pro-Música e ABMI, e com mais tempo no isolamento decidi estender os perfis. Para cada artista reservei uma semana inteira (fora meu trabalho na Globo.com) lendo tudo sobre trajetória, além de voltar em todos os discos. Grande parte dessa escrita foi feita então durante a pandemia e rendeu as 250 páginas da parte 2. Alguns artistas como Céu, MetáMetá, Criolo, Emicida, Bixiga 70, Carne Doce, Tulipa Ruiz, Karina Buhr, têm entre 5 e 7 páginas. Como não poderia manter esse tamanho, senão o livro teria mil páginas, concentrei informações nos outros artistas e cheguei em uma média de duas a quatro páginas para cada, todas amplamente ilustradas com fotos licenciadas com fotógrafos e capistas de todo o país, além de imagens dos arquivos do Circo Voador, SIM São Paulo e Porto Musical, que viraram apoiadores do livro, fora ensaios de divulgação das bandas. Em 2022, comecei a negociar com editoras e buscar como viabilizar um livro de 400 páginas e mais de 300 fotos. Levei um bom tempo também na liberação das fotos e crowdfunding. Pesquisa e escrita são só a primeira parte em um projeto desse tamanho.
O cardápio para quem gosta de música brasileira hoje em todas as suas nuances é enorme, quem vai atrás dos lançamentos no streaming pode facilmente chegar a 30-50-80 artistas para ouvir nas playlists. Então, de cara, tinha muitos nomes e, certamente, como toda lista aliás, meu top 51 não é unanimidade. A proposta no ‘Avalanche’ também não é criar ranking, pensar posições, quis construir quase uma playlist que enfileira revelações em um super panorama de artistas contemporâneos com discos essenciais dos anos 2010-2020. Um registro meio mapa-musical filtrando os principais artistas para quem acompanha de perto a cena e levando para o formato livro tudo que a gente lê em sites, blogs, mas fica sem esse registro histórico, impresso, que dá visão concreta mesmo de cena com um grande número de bandas, dos mais variados estilos, encarando juntos esse novo mercado digital com novas oportunidades e desafios.
Outro público que eu quero atrair com ‘Avalanche’ é esse menos especialista, que normalmente se informa pelas rádios e grande mídia, com muita gente que ainda acha que o rock brasileiro morreu nos anos 90 (80 até para alguns), mas que de alguma forma tem curiosidade e quer se entender no turbilhão de novos nomes. Para cada artista no top 51 eu conto toda trajetória, listo premiações, principais shows, músicas, tudo ilustrado com um arquivo gigante que eu montei indo banda por banda atrás das autorizações, depois reforçado pelos apoios da SIM São Paulo, Porto Musical e Circo Voador, que me cederam imagens incríveis de artistas como Liniker, Mahmundi, Ava Rocha, Céu, Djonga, BaianaSystem, Criolo, Emicida, Letruxe Luedji Luna, entre outros. Um trabalho quase artesanal de montagem de arquivo visual que enriqueceu demais o livro.
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TMDQA!: Como você escolheu os 51 artistas que compõem o livro e quais critérios utilizou para essa seleção?
Marcelo Monteiro: Os critérios foram impacto, relevância, representatividade na cena contemporânea e peso dentro do gênero musical, procurei equilibrar ao máximo espaço para rock, rap, nova MPB, afrogrooves, synth-pop, rock-eletrônico, instrumental, e, inevitavelmente, gosto particular. Adotei também o método criado pelo Pena Schmidt, autor do prefácio do ‘Avalanche’, produtor de dezenas de discos do rock-BR anos 80, passagem por várias gravadoras, ex-diretor do Centro Cultural SP, do Auditório Ibirapuera e ex-ABMI. Ele repassa todas as listas de melhores do ano de jornais, sites, blogs e cria anualmente a sua ‘lista das listas’ com os nomes mais citados usando critério de ‘reputação’ para tentar determinar outros recortes, além do mercadológico e radiofônico, para chegar a um ranking de artistas ‘bem-sucedidos-mais-comentados’ entre os que mais se destacam na música contemporânea brasileira. Não são os campeões de vendas ou execuções em rádio. São artistas que têm excelente ‘reputação’ por vários motivos, mas especialmente porque seus álbuns tiveram impacto nos ouvintes. Os artistas que mais frequentam as listas de melhores do ano invariavelmente também são os que mais circulam nas redes sociais, acabam escalados para os festivais e vão criando público e relevância. É um critério então que vai além do mercadológico, ou para ser mais direto, são os que mais frequentam as listas de melhores do ano feitas principalmente em sites e blogs de música. Tem um capítulo inteiro do ‘Avalanche’ dedicado à ‘lista das listas’ e foi por ele que cheguei ao Pena Schmidt. Ele foi um dos primeiros a ler o livro inteiro e a primeira reação dele vou guardar para sempre: ‘Fui soterrado’. O livro é bem isso, muita informação. Ficamos próximos, ele me ajudou muito, principalmente durante o crowdfunding, e acabou escrevendo o prefácio do ‘Avalanche’. Foi uma das pessoas fundamentais para o lançamento do livro e sou muito grato pela generosidade. Entre os parceiros cito a Natura Musical, patrocinadora oficial, que escolheu o ‘Avalanche’ como ‘registro histórico’, além do Circo Voador, SIM São Paulo e Porto Musical de Recife. Além dos 170 apoiadores do crowdfunding que compraram o livro por antecedência e garantiram a primeira impressão.
Já a ideia de colocar a Céu abrindo o top #51 nasceu na entrevista com Alexandre Matias, jornalista especializado em música do Trabalho Sujo, ex-curador do CCSP e hoje no Centro da Terra, em São Paulo. Concordei de cara com o Matias por três motivos: Céu abriu portas desde 2005 com seu álbum de estreia homônimo para uma nova geração de cantoras e compositoras que despontariam nos anos seguintes – Anelis Assumpção, Tulipa Ruiz, Karina Buhr e Luiza Lian, todas no top#51 do livro, têm cada uma ao seu estilo muito do espírito Céu de pensar música como arte -, consolidou uma nova forma tropicalista de ampliar e modernizar as fronteiras da MPB e encarou o mercado internacional de frente com turnês anuais, formação de público e reconhecimento da indústria. Fora os desafios de enfrentar juntos todas as transformações da indústria com passagem do físico para digital. Características então comuns a todos os artistas que apareceriam nos anos seguintes formando o que conhecemos como a cena da música contemporânea, ou da nova música brasileira, ou novíssima, como preferi chamar, desde os tempos do Amplificador.
Os artistas do meu #top 5 dos sonhos da Novíssima Música Brasileira aparecem com perfil mais extenso e dão pista sobre alguns dos principais gêneros dos anos 2010: Céu e sua MPB que equilibra ruptura e coerência ao longo de uma trajetória sublime de multiplicidade sonora, com cores, temperaturas e referências que vão da MPB mais raiz até os graves jamaicanos e os beats do eletro. Nessa linha posso citar também como destaques Anelis Assumpção, Karina Buhr, Tulipa Ruiz, Luiza Lian, Letrux, Mahmundi, Jam da Silva, Tiganá Santana, todos com perfil no livro. Também no meu top 5, BaianaSystem é um acontecimento da Novíssima Música Brasileira, fenômeno, shows arrebatadores, catárticos, cheio de misturas, partindo da união da guitarra baiana com graves do dub e as rimas curtidas no ragga dos SoundSystens jamaicanos. O rap é talvez o único gênero que hoje consegue fazer frente ao sertanejo no streaming, meu destaque é o Criolo, mas nomes como o Emicida, Baco, Rincon, Djonga, Black Alien, Edgar, fizeram discos sensacionais e super premiados. Do rock eu destaco o Boogarins no meu top 5, fenômeno também, faz turnês anuais à Europa e aos EUA com dezenas de datas em sequência e muita relevância (‘Manual’, segundo disco da banda, foi lançado com exclusividade do NYT com resenhas empolgadas). Mas o livro tem ainda perfis do Far From Alaska, Baggios, Macaco Bong, Baleia, Ventre, Francisco, El Hombre, todos nomes de ponta e premiados do rock contemporâneo. E fecho meu top 5 com MetáMetá e seus afro-grooves, meio free-jazz torto rasgante, à frente da cena que talvez seja a mais poderosa em todo o Brasil, a música urbana de SP com nomes como Rômulo Fróes, Rodrigo Campos, Marcelo Cabral, Maurício Takara, Rodrigo Brandão, Thomas Rohrer, ou ainda tocando juntos e misturados em bandas como o Passo Torto, Passo Elétrico, Pastiche Nagô, Sambanzo e, acima de todos, o Clube da Encruza. Tivemos ainda a cena do Pará com a Gang do Eletro e Felipe Cordeiro, ambos com perfil no livro, e ainda Strobo, Jaloo e Lucas Estrela como destaques. E a MPB em suas mais diversas formas, claro, sempre aparece com força, Mallu Magalhães, Graveola e Ana Frango Elétrico fizeram discos marcantes e premiados. Vivemos uma época de liberdade criativa muito grande com nomes fortes fora do eixo Rio-SP apoiados em festivais e cenas cada vez mais consolidadas em Goiânia, Natal, Porto Alegre, e sempre Salvador e Recife.
Absolutamente todas as bandas incluídas no top#51 têm carreira consolidada, produção farta, demanda de shows e festivais em todo o país, reconhecimento da indústria, enfileirando premiações, do Grammy Latino ao Prêmio Multishow e APCA, além de discos incluídos entre os melhores do ano da indústria, com repercussão entre mídia e público, e turnês internacionais em sequência no currículo.
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TMDQA!: Foram quatro anos de pesquisa, sem falar nos outros tantos que você passou cobrindo música. Mesmo sendo um conhecedor do assunto, houve algo na apuração que te surpreendeu – tanto positiva quanto negativamente?
Marcelo Monteiro: Vamos começar com o que me surpreendeu positivamente: os números da indústria com crescimento para mercado independente e principalmente para o que lá fora chamam de “direct artists’, aqueles que se lançam totalmente sozinhos por agregadores digitais, sem parceria com gravadoras ou selos, organizados e estruturado como “mini-selo-empresa”, prontos para disparar, promover e lucrar com as suas próprias estratégias e ações. Em 2020, os “direct-artists” pela primeira vez ultrapassaram a marca de US$ 1 bilhão em faturamento anual dos mais de US$ 20 bilhões de lucro da indústria fonográfica mundial (em 2017 eram US$ 500 milhões), já acima de 5% de marketshare, com crescimento de mais de 30% por ano. Se juntarmos os artistas que se lançam totalmente independentes com os selos, eles já representam 31% do mercado, em 2019 eram 29%. As três majors, que também passaram por transformações profundas nos anos 2010, agora trabalhando muito mais como distribuidoras, ainda ficam com parcela gigante do mercado, média de 70% do faturamento da música gravada na indústria fonográfica. Em um estudo, de 2019, aMIDiAResearch apontou expansão de 48% dos “direct artists”, 11% dos selos indies, representados pela Merlin, e 27% das majors. Apesar dos efeitos sombrios da pandemia, principalmente na indústria dos shows, o crescimento dos artistas que se lançam totalmente independentes se manteve altíssimo mesmo durante o isolamento, cravando 27% em 2020. Acho que o caminho do meio pelo midstream inaugurou uma nova forma de lançar, distribuir e monetizar, essa é a grande mudança dos anos 2010-2020. São números gigantes e robustos que me impressionaram.
Se levarmos em conta só o Brasil, temos também crescimento seguido da indústria desde 2017 (em 2015 e 2016 o mercado ficou no negativo porque o físico caiu muito e o digital ainda não tinha se consolidado totalmente). Em 2019, uma pesquisa da ABMI mostrou que 53% das músicas no top 200 diário do Spotify eram de artistas independentes. Não quero dizer, no entanto (muito longe disso), que todos os artistas da música estão ganhando no streaming o suficiente para se manter. É impossível as plataformas de música bancarem toda essa quantidade de artistas que surgem todos os dias no mercado. Mas sim que há uma nova forma de se chegar ao público, divulgar os discos e emplacar oportunidades em festivais e merchandising. Cada banda tem que descobrir seu melhor caminho de faturamento, ver seus pontos fortes e trabalhar muito, em composição, shows, turnês, divulgação. Entrevistei artistas como Benke Ferraz, do Boogarins, Cris Scabello, do Bixiga 70, Kiko Dinucci, do MetáMetá, Julio Andrade, da The Baggios, Bruno Kayapy, do Macaco Bong, analisando as diversas formas de ganhar dinheiro com os nichos. Acho bem interessante esse mosaico de opiniões no livro. Cada artista então tem seu ponto forte, no rap os artistas ganham muito com streaming e shows. Bandas como BaianaSystem são excelentes tanto nos discos quanto em shows. Tem outras que ganham muito com merchandising, outras fazem som que cai muito bem para os festivais no exterior, como Boogarins, Bike, o próprio Bixiga 70. Importante é ter um planejamento que não atrapalhe o lado artístico, o artista não pode descuidar de nenhum detalhe, o nível está muito alto.
Dito tudo isso, acho que o que garante relevância no final das contas é sempre talento para ganhar público. A Céu, além de excelente cantora, é letrista de mão cheia. O mesmo para Mallu Magalhães, Tulipa Ruiz, Karina Buhr. O MetáMetá é incrível tanto no palco quanto nos discos, mesmo para Ava Rocha, o talento, discurso e potência da Liniker são inquestionáveis, a força dos riffs do Far From Alaska com Emmily como vocalista, é incrível. Fazer sucesso hoje não é necessariamente fechar com uma major, muitos artistas conseguem se manter, produzir e circular os festivais de forma independente, desde a criação do álbum, até gravação, divulgação e shows. Os artistas viraram seus próprios empresários e a definição de sucesso mudou muito. O nome do livro, inspirado na música homônima do Boogarins, então vem desse conceito de excesso, fartura, um mercado efervescente de lançamentos e junto de oportunidades, do crescimento e transformação do chamado midstream. 2010-2020 vai ficar na história como período de transformações e revoluções tecnológicas, de linguagem, mercadológicas, e temos bases sólidas para que a cena siga forte e se transformando nos anos 2020 baseada em streaming-web-apps-festivais para circulação de novos sons com público gigante.
‘Avalanche’ foca nos anos 2010, mas tem raízes no final dos anos 2000, o primeiro disco da Céu, ponto zero no top 51 de artistas, é de 2006. A estreia do Macaco Bong, o clássico ‘Artista Igual Pedreiro’, primeiro e até hoje único álbum instrumental eleito melhor do ano pela Rolling Stone, competindo contra todos os discos do ano (bom deixar claro), é de 2008 e foi um dos primeiros todo lançado no digital. E fecho o top #51 com Ana Frango Elétrico, grande destaque de 2019, Artista Revelação na APCA e indicada depois em 2020 a Melhor Álbum de Rock Alternativo no Grammy Latino e Álbum do Ano e Revelação no Prêmio Multishow. Mas a avalanche não para. A Marina Sena, por exemplo, que começou no midstream com o Rosa Neon, lançou seu primeiro disco solo em 2021, Duda Beat e Tuyo também começaram a se destacar na virada para os anos 2020. Sobre a indústria de forma geral, fiquei muito surpreso também com previsões de crescimento de até 500% no streaming para os anos 2020, com faturamento podendo passar de US$ 30 bilhões, muito acima dos anos de bonança da indústria nas décadas de 80 e 90.
O que mais me impressionou negativamente no processo do ‘Avalanche’ foram todas as dificuldades de se tirar do computador para o papel projetos de livro sobre música, são pouquíssimos editais, o mercado editorial é dificílimo com muita concorrência e prioriza claro os best-sellers que não são voltados para os nichos. Fazer um projeto como o ‘Avalanche’ exige muita disciplina na produção e raça mesmo para levantar o dinheiro para impressão. Agradeço demais aos apoiadores do crowdfunding que acreditaram no projeto e compraram o ‘Avalanche’ antecipado, à Numa Editora, que que topou o desafio de fazer um livro de 400 páginas com mais de 300 fotos e projeto gráfico incrível da Dupla Design, aos apoiadores oficiais, Circo Voador, SIM São Paulo e Porto Musical de Recife, ao Pena Schmidt e Ricardo Cravo Albin, por toda força nos bastidores e pelos textos de introdução e apresentação, e, principalmente, à Natura Musical que classificou o ‘Avalanche’ como ‘registro histórico’ e patrocinou parte da impressão sem necessidade edital, com sensibilidade de enxergar o potencial e importância do livro. Transformar projeto, sonho, pesquisa e escrita em livro foi realmente um ponto que me surpreendeu por toda a dificuldade e exigiu muito. Sobre música, mais especificamente, a questão do ‘value gap’, a chamada “lacuna de valor” entre o que as plataformas digitais faturam e o que de fato pagam aos artistas, é um ponto ainda que ainda merece muito debate.
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TMDQA!: Para você, qual foi o impacto mais significativo do streaming na indústria fonográfica brasileira na última década?
Marcelo Monteiro: O primeiro grande impacto é na distribuição, bandas que antes teriam muita dificuldade de apresentar seus discos para um público maior agora estão lado a lado com grandes lançamentos nas plataformas de música. Não tem mais aquilo de ter que produzir com custo alto milhares de CDs e distribuir para lojas, hoje é recorrer aos agregadores e seu disco está disponível nas plataformas. Ficou então mais fácil não só produzir como circular os discos. Isso é uma grande conquista da geração streaming e uma revolução inédita para o mercado. Criando público, mesmo que não seja gigante com os números do mainstream, a banda tem chances de emplacar shows o ano inteiro em festivais e emendar turnês. Artistas do midstream hoje enchem casas como Circo Voador porque tem público suficiente, e só tem público porque são ouvidas. Isso leva a um novo fenômeno dos anos 2010-2020 que é o crescimento e consolidação de um circuito de festivais. Novos eventos estão pipocando em todo o país, todas as capitais têm hoje festivais de médio porte para até 5 mil pessoas já estabelecidos. Fora os festivais maiores, não gigantes como Rock in Rio e Lollapalooza, que também abrem espaço para novos nomes, mas ainda focam em medalhões para atrair público. Fui ao Festival DoSol em Natal em que o line-up tinha um número incrível de mais de 100 artistas se apresentando. Esse cenário só existe porque as bandas são ouvidas, criaram público e demanda no streaming. As plataformas podem não ser o principal canal de lucros para todas as bandas, a maioria na verdade tira maior parte do faturamento com shows. Mas é o streaming o motor principal para toda essa engrenagem rodar a todo vapor com novos nomes surgindo em uma velocidade e quantidade inédita na indústria.
TMDQA!: Depois de todo esse processo do livro, como você vê o papel dos artistas independentes no mercado musical atual e o futuro do midstream?
Marcelo Monteiro: Temos que pensar que antes não existia o caminho do meio, o que chamamos hoje de midstream: ou a banda entrava numa gravadora ou ficava no underground – ou pior, desistia. O midstream hoje é quase um mainstream paralelo muito mais plural e democrático. Até os anos 2000, os músicos tinham como opção quase que única tentar carreira no mercado e talvez parar no funil das gravadoras, ou se mantinham com muita dificuldade vendendo CDs para um público restrito e buscando shows em circuito ainda escasso de festivais de médio porte. O chamado sucesso era para muito poucos. Claro que a concorrência hoje é enorme, mas as chances de lançar discos, criar público, tocar a carreira de forma independente com todas as facilidades do digital, tanto na produção dos discos quanto na divulgação, aumentaram muito nos anos 2010. O que mantém uma banda viva continua sendo música, criatividade, shows, às vezes até um pouco de sorte, mas é necessário competência musical, muito trabalho e insistência, isso não mudou. O que acabou foi a receita única e quase obrigatória de chegar até uma gravadora, tocar no rádio e ter clipe na TV para atingir sucesso. Temos hoje um mercado onde as bandas se lançam sozinhas com todas as facilidades do digital e caem nessa enorme massa do mercado onde todos buscam espaço, cliques, views e relevância para criar público. Se antes tínhamos um mercado cheio de filtros onde 10-15 bandas conseguiam chegar ao sucesso, hoje, muitos nomes, que ficariam presos ao underground com tendência de desistir da carreira, conseguem sobreviver muito bem com público cativo e espaço nos festivais. É tudo talvez muito mais batalhado, o ‘artista-polvo’ compõe, grava, às vezes tem equipes numerosas, lança, divulga, marca shows, planeja turnês, lojinha, site, redes sociais, é muito trabalho (que antes era feito pelas gravadoras, por um custo alto, claro), mas as chances de chegar ao terceiro, quarto, quinto discos e sobreviver circulando o Brasil inteiro em um novo circuito efervescente de festivais de médio porte é muito maior. O próprio conceito de sucesso então mudou completamente, sucesso hoje é sobreviver da sua própria música, e muito mais nomes conseguem. Tem uma fala do Thiago França, do MetáMetá, lá de 2014 no livro, em que ele fala: “Mainstream não serve para gente, não serve para mim, e a recíproca é igualmente verdadeira: nós não servimos para ele, eu também não sirvo. Não sintam minha falta no mainstream, não sintam a nossa falta. Não se perguntem por que não somos o disco da semana, do dia, do minuto, em nenhum lugar. Não achem que somos injustiçados por não estarmos onde não devemos, onde não queremos. Meu tempo é outro”.
Os artistas que chegam hoje ao mercado acredito que já encaram a carreira na música de forma completamente diferente, têm muito mais possibilidades de realizar o sonho de viver de música sem o foco de ter que assinar com uma gravadora. O mercado independente hoje já é responsável por 1/3 do faturamento total da indústria fonográfica, os festivais de médio porte abrem muito espaço para novas bandas que não precisam mais ser estouradas como eram nos anos 80 e 90.
Tem um detalhe legal também na lista dos 51 artistas, percebi logo que poderia ir facilmente até um top 100 e resolvi indicar para cada artista mais 5 em um ‘para ouvir mais’. Cheguei assim a uma marca surreal de 306 artistas citados no livro, os 51 com perfis, mais 255 artistas recomendados. Sem nenhuma forçada de barra, diga-se de passagem, deixando alguns bons sons de fora. Qual outro país tem tamanho volume e diversidade? É a Novíssima Música Brasileira em seu estado mais puro e potente. Mas temos que lembrar que o mercado ainda encara como tarefa não resolvida o dilema sobre como distribuir todo o volume de dinheiro que vem jorrando no streaming de forma justa e proporcional entre gravadoras, aplicativos, músicos, compositores, editoras e demais envolvidos em toda a engrenagem. Muita gente reclama com razão sobre os valores pagos pelos aplicativos para os artistas. As empresas de tecnologia, as plataformas e as gravadoras ficam com as maiores fatias, enquanto os verdadeiros responsáveis pela criação das composições lutam por uma divisão, no mínimo, igualitária e justa dos lucros.
Já faz tempo que artistas em todas as partes do mundo têm lutado para obter reconhecimento e melhor remuneração. Essa é uma questão super importante e merece ainda muito debate. Olhando pelo lado do copo cheio, o streaming funciona como engrenagem fundamental na indústria para circulação de sons numa jukebox quase infinita de sons à disposição. São essas músicas e esse público, que talvez não ouvisse, não comprasse CDs e talvez nem chegasse a conhecer algumas bandas, que acabam formando público para shows e festivais.
TMDQA!: O visual do livro é um deleite à parte. Pode contar para a gente sobre as escolhas de design da edição?
Marcelo Monteiro: Adorei o deleite (risos), concordo totalmente, o projeto gráfico da Numa junto com a Dupla Design ficou lindo, eles entenderam exatamente o poder das imagens para um livro que conta a trajetória dos artistas. Gostei do design desde a apresentação, foi a primeira grande emoção da parte final de produção do ‘Avalanche’, ver o livro ganhando forma. Pensei o ‘Avalanche’ lá no início como livro de muitas imagens, com fotos de shows, capas de disco, bastidores e gráficos para visualização de informações do mercado e trajetória dos artistas. Já apresentei o livro com fotos para a editora, ainda sem trabalho de design e nenhuma autorização para uso das imagens. Quando fechei com a Numa, parti para a difícil tarefa de contactar os 51 artistas, mais os institutos de pesquisa dos gráficos, para conseguir as autorizações. Foram por baixo mais de 500 mensagens de email e zap para artistas, produtores, fotógrafos, capistas, levei mais de 6 meses nesse processo. Quando escolhemos a Dupla Design, parceiros antigos da Numa e autores de projetos grandes, como para Bienal, por exemplo, eu já tinha 70% das autorizações. O responsável foi o Ney Valle, também conhecedor e apreciador de música, mas que se encantou por novos artistas que ele não conhecia e embarcou no clima. O livro tem movimento, curvas, soluções gráficas excelentes para organização de informações, como as listas de discos no início de cada perfil e as aberturas de capítulo. Por limitações de orçamento, tivemos que fazer em preto e branco e no fim acho que deu um charme ainda maior, tem o link com o jornalístico, do registro, criou uma unidade, adorei e agradeço muito.
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TMDQA!: Como você vê a evolução da música brasileira nos próximos anos, especialmente em relação ao streaming e às novas tecnologias? Quais artistas ou tendências você acredita que serão os próximos a surgir na cena do indie BR?
Marcelo Monteiro: O streaming continuará como principal motor para circulação da música nos próximos anos até a invenção de uma nova tecnologia ou aprimoramento de ferramentas. A inteligência artificial certamente vai embaralhar o mercado e criar novos desafios, mas também oportunidades.Tem uma frase no livro criada pela Midia Research que acho que seguirá forte por muitos anos e não tem volta: ‘Niche is the new mainstream’. A cauda longa chegou para ficar, tem muito mais artistas hoje dividindo os pedaços do faturamento. E não só do faturamento com música gravada, mas com shows, festivais, merchandising e sincronização. Sobre tendências para o independente, acredito primeiro numa aproximação maior entre fãs e artistas por ferramentas digitais. E na questão estética aposto na força incrível do rap e em novas misturas entre tradição e modernidade, começou com Chico Science nos anos 90 e chegou ao topo com nomes como El Hombre, Bixiga 70 e acima de todos hoje o furacão BaianaSystem.
Até a próxima revolução, tenho certeza de que um número enorme de artistas vai chegar ao midstream. Aposto muito em carreiras longas, muitos shows e sucesso para nomes como Luedji Luna, BaianaSystem, MetáMetá, Francisco, El Hombre (que infelizmente anunciou hiato e fará shows de ‘até logo’), Carne Doce, Emicida, Baco, Djonga, Ana Frango Elétrico, O Terno (outra banda que vai dar tempo dos palcos e discos), entre muitos outros, a lista é enorme. Luedji, aliás, é o caso mais recente de uma artista que nasceu no midstream e vai furando bolhas para atingir novos públicos. Certamente, nunca tivemos tantos artistas no mercado brasileiro capazes de deixar cada pessoa com um top 5 de bandas preferidas totalmente diferente dos amigos. Como a gente escreveu lá em 2011 no alto do Amplificador, ‘central de lançamentos’ do Globo: ‘A novíssima música popular brasileira vai muito bem e cresce saudável, espalhada pelos quatro cantos do país e pela grande rede. A tarefa deste blog é reunir os lançamentos de todos os estados e estilos, do rock ao tecnobrega’. O livro vai por esse caminho também, mas com toda primeira parte de análise da revolução digital. ‘Avalanche’ é quase um filho do Amplificador. Vida longa para a música brasileira e suas revelações.
TMDQA!: O que você espera que os leitores levem consigo após a leitura de ‘Avalanche’?
Marcelo Monteiro: Vejo o ‘Avalanche’ com dois públicos, aqueles que acompanham de perto os artistas da cena midstream, e os interessados em música de forma geral que têm curiosidade sobre a avalanche de novos nomes e quer um resumão sobre as principais revelações e mudanças no mercado. Para cada um, então, acho que fica um objetivo: espero que os primeiros ganhem um mapa-musical dos anos 2010 de tantas transformações na música com registro profundo sobre principais acontecimento com análises e dados, e resumão dos principais nomes que fique como consulta para os próximos anos. Para o público menos especialista, espero contribuir para divulgação da cena contemporânea com apresentação de artistas já com números robustos no streaming e festivais, mas alguns ainda incrivelmente desconhecidos. Para o primeiro, mapa-registro, para o segundo, despertar curiosidade, resumir principais acontecimentos e abrir coração, mentes e ouvidos para novos sons.
‘Avalanche – A revolução do streaming (2010-2020): 51 nomes para conhecer a novíssima música brasileira’. 430 páginas. 51 perfis. 300 fotos. 31 entrevistas + gráficos e análises.
Texto e produção: Marcelo Monteiro. Prefácio: Pena Schmidt. Apresentação: Ricardo Cravo Albin. Patrocínio: Natura Musical. Apoios: Circo Voador, SIM São Paulo e Porto Musical Recife. Lançamento Numa Editora. Vendas nos sites da Numa,Amazon, Martins Fontes e Travessa. Em breve nas livrarias.