Não há nada melhor do que ouvir um álbum que “explode a mente” e nos apresenta possibilidades musicais que não conhecíamos antes. Esse foi exatamente o objetivo do Talking Heads quando gravou seu quarto disco, Remain in Light (1980), que está completando 44 anos de lançamento neste mês de outubro.
Mas o trabalho não nasceu da perfeita harmonia entre David Byrne, Tina Weymouth, Chris Frantz e Jerry Harrison. Na verdade, como costuma acontecer no Rock, músicas como “Once in a Lifetime” e “Born Under Punches” nasceram (como o próprio título da canção diz) de um momento de conflitos e indefinição na banda.
O grupo já era considerado um dos nomes mais criativos da cena New Wave, e com este álbum se tornou referência no Rock Alternativo ao misturar a música eletrônica emergente naquela virada de década com Afrobeat e elementos de Funk – tudo isso num álbum conceitual que flui como um ciclo contínuo.
Na coluna de hoje, eu vou te convencer que Remain in Light, do Talking Heads, deveria ser um dos seus discos favoritos dos anos 1980!
Continua após o vídeo
Brian Eno foi o “fiel da balança” para o Talking Heads
Depois de trabalhar com Brian Eno nos álbums More Songs About Buildings and Food (1978) e Fear of Music (1979), o baterista Chris Frantz e a baixista Tina Weymouth estavam ansiosos para começar o próximo disco com o lendário produtor de nomes como David Bowie e DEVO.
Mas o vocalista David Byrne havia se antecipado aos dois, e estava gravando um trabalho solo ao lado de Eno: o experimental My Life in the Bush of Ghosts (gravado em 1978, lançado em 1981), que foi pioneiro ao incorporar loops instrumentais, vocais sampleados e outros elementos eletrônicos no Rock.
Naquela época, Chris e Tina – que eram um casal – se mudaram para as Bahamas, mesmo local em que Byrne e Eno estavam trabalhando. Lá, o baterista e a baixista conheceram duas lendas do Reggae: os produtores Sly Dunbar e Lee “Scratch” Perry, que influenciariam muito o modo deles de tocar.
Como David, principal compositor do Talking Heads, não tinha músicas novas para apresentar à banda, Chris e Tina sugeriram que eles se reunissem em estúdio para uma simples jam – e convidaram Brian Eno para que o vocalista se sentisse mais à vontade.
Continua após a foto
“Once in a Lifetime” e a utilização do nonsense no Rock
Como as músicas do Remain in Light surgiram do improviso, o instrumental do disco é repleto de loops de bateria e linhas de baixo “groovadas” que se repetem e evoluem lentamente, criando uma teia de sons repetitivos ao melhor estilo de Brian Eno – basta ouvir faixas como “Crosseyed and Painless” e “Houses in Motion” pra entender do que estamos falando.
Byrne não escreveu as letras imediatamente. Ele precisou voltar para Nova York e criar um estilo de composição parecido com colagens, com muitas frases nonsense inspiradas em pregadores religiosos, entrevistas com escravos libertados e até um discurso no Congresso norte-americano durante o impeachment do presidente Richard Nixon.
Faixa mais icônica e mais famosa do álbum, “Once in a Lifetime” – ouça abaixo – conta com uma repetição quase maníaca dos vocais de Byrne que entram no contratempo do baixo, dando uma sensação de confusão e reflexão existencial enquanto o vocalista canta versos hilários como “This is not my beautiful house!?”.
Segundo o baterista Chris Frantz, por mais que as músicas e letras não fizessem questão de fazer sentido, elas precisavam ser coerentes com o conceito do álbum (via davidbyrne.com):
“Depois que gravamos todas as faixas básicas, o sentimento do David [Byrne] era de que se tratavam de faixas muito especiais, diferentes e fora do comum, e por isso ele precisaria de mais tempo para escrever letras e vocais coerentes.”
Continua após o vídeo
Como o Reggae e o Afrobeat influenciaram o Talking Heads
Outra característica fundamental de Remain in Light são os ritmos jamaicanos, por influência de Chris Frantz e Tina Weymouth, e os ritmos africanos que tinham conquistado David Byrne desde que ele foi apresentado por Brian Eno ao álbum Afrodisiac de Fela Kuti, lançado em 1973.
É por isso que músicas como “The Great Curve” e “Listening Wind” contam com percussões tribais e uma atmosfera quase ritualística, com uma “cama” reggaeira perfeita feita pelo baterista e a baixista.
Não à toa, em entrevista à revista Mother Jones em 1982, Byrne descreveu o trabalho final como algo “espiritual” – não só pelos ritmos, mas especialmente pelos dogmas e ensinamentos da cultura africana:
“É divertido e extasiante, mas também é sério. No fim, há menos africanismos em ‘Remain in Light’ do que falamos na época. Mas as ideias culturais da África eram muito mais importantes de serem passadas do que ritmos específicos.”
Remain in Light foi referência para gigantes do Rock Alternativo
O impacto de Remain in Light foi imediato, mas sua importância só cresceu ao longo dos anos – e isso ficou evidente em lançamentos do Radiohead e LCD Soundsystem nos anos 1990, e artistas mais jovens como o Paramore e St. Vincent, que chegou até a lançar um álbum com David Byrne recentemente.
Aqui no Brasil, é impossível não apontar os Titãs como a banda que incorporou esse estilo de colagens nonsense e ritmos groovados e repetitivos, até mesmo nas performances de Arnaldo Antunes, Branco Mello e Paulo Miklos no palco ao longo dos anos 1980.
Mas a importância do som do Talking Heads não foi suficiente para que a banda superasse as feridas abertas durante as gravações de Remain in Light. O grupo foi espaçando cada vez mais seus períodos em estúdio, e só lançou mais quatro discos antes de se separar em 1988.
Felizmente, o grupo deixou uma obra-prima do Rock Alternativo e um verdadeiro “amigo” para qualquer fã de música experimental, e que você pode relembrar na íntegra no player abaixo!