Tudo mentira?

Segredos do Cinema: "A Substância" e o conceito de Suspensão de Descrença

Quer me convencer que uma idosa carcomida tem força para correr por um apartamento de luxo em Los Angeles? Tá tudo certo!

Segredos do Cinema: "A Substância" e o conceito de Suspensão de Descrença

A Substância é um dos melhores filmes de terror de 2024, mesmo se utilizando de estruturas narrativas e estéticas bem diferentes do que Hollywood está acostumada.

Câmera grande angular para aumentar o desconforto em determinadas cenas, pouquíssimos diálogos explicativos e o horror corporal grotesco, por exemplo, são ferramentas interessantes que ajudam a diretora Coralie Fargeat a contar sua história.

No entanto, para que o filme funcione, é necessário fechar os olhos para algumas questões que afastam a trama do pensamento lógico. Essa é a tal suspensão de descrença, recurso no qual o público é “convidado” a aceitar determinadas circunstâncias para que a experiência seja otimizada.

O que é suspensão de descrença?

Todo mundo conhece alguém que já falou o clássico “esse filme é muito mentiroso”. É justamente isso que significa suspender a descrença: aceitar que obras podem ser mentirosas para contar suas histórias.

O termo foi cunhado pelo poeta e filósofo inglês Samuel Taylor Coleridge, em 1817. Ele sugeriu que, para uma obra de ficção ser eficaz, o leitor (no caso do cinema, o espectador) deveria suspender sua descrença para apreciar a narrativa.

Indo para o lado prático, Velozes e Furiosos e Transformers são franquias acompanhadas por muitos comentários desse tipo, mas por que eles são ruins enquanto O Senhor dos Anéis, por exemplo, passa no filtro de “filmaço”?

Bom, a suspensão de descrença funciona quando a história respeita as próprias regras, e não necessariamente aquilo que o deixa “realista”. Ou seja, O Senhor dos Anéis não é chamado de “mentirada” porque, desde o início, deixa clara a existência de seres mitológicos, feitiços, explica a geografia daquele universo, etc.

Isso ajuda na imersão, nos convence de que somos parte daquela realidade e basta que a trama se desenvolva de forma minimamente lógica para comprarmos a ideia de fantasia – coisa que Transformers não faz.

A apresentação do universo existe, a aceitação do fantasioso é estabelecida logo de cara, mas eles forçam tanto a barra que rompe a corda das próprias regras. Nem a mais generosa das pessoas dá conta!

Velozes e Furiosos, por outro lado, se orienta pela reprodução da nossa própria realidade. Porém, quando a franquia passou a extrapolar alguns aspectos visuais de forma totalmente aleatória, ficou difícil aceitar o total desprezo pelas leis da física e a quantidade excessiva de coincidências que ajudam os protagonistas.

Suspensão de descrença em A Substância

Voltando para A Substância, o gênero de terror geralmente conta com a boa vontade do público para aceitar que algumas coisas não serão exatamente “normais” do ponto de vista narrativo.

No filme, protagonizado por Demi Moore e Margaret Qualley, a premissa em si já mostra que o caminho que será percorrido não será tão tradicional: uma mulher mais velha usa uma droga obscura para criar uma versão mais jovem de si. Isso já é impossível para nós, espectadores, então pode vir qualquer coisa daí em diante.

“Ah, mas como ela sabia onde aplicar a substância e como operar aquelas sondas, agulhas e seringas sendo que ela era só uma apresentadora de TV?”

Meu amigo, uma mulher acabou de se dividir em duas, com uma saindo de dentro da outra, em uma cena extremamente nojenta, física e biologicamente impossível. É sério que a sua preocupação é como ela manuseou os instrumentos?

O impossível é só questão de opinião

A suspensão de descrença nos pede para aceitar como possível algo que sabemos que não é. Nesses casos, é muito mais importante o impacto dos acontecimentos do que a sua viabilidade prática.

Em A Substância, ainda há uma camada extra de qualidade que vem do seu roteiro, das reflexões sobre a própria indústria do entretenimento, o etarismo e o machismo das relações profissionais. Por isso, não importa se dá para acreditar nas coincidências necessárias para que a protagonista não fosse vista pelos vizinhos, se ela não tinha amigos ou familiares que procurassem por ela.

O que conta de verdade está nas normas que o filme foi apresentando e, dentro dessas regras, o bizarro e o não convencional estão mais do que aceitos.

Ditadura do realismo

Para além do seu tio que acha o filme da Temperatura Máxima mentiroso, as redes sociais criaram um movimento muito forte de cobrança pelo realismo das obras. Filmes de super-heróis são o melhor exemplo da necessidade de trazer tudo para o real, vide todos os títulos da DC que tiveram influência de Zack Snyder.

Como um todo, temos que parar de exigir realismo dos filmes como principal régua de qualidade. Passou do tempo em que a gente reclamava da quantidade de tiros errados pelos capangas dos filmes de ação.

Terno blindado para proteger John Wick de tiros de fuzil? Tá ótimo! Quer fazer uma perseguição de carro com um piloto ouvindo música pra segurar o transtorno de ansiedade? Tudo bem!

Quer me convencer que uma idosa carcomida tem força para correr por um apartamento de luxo em Los Angeles? Tá tudo certo! É só contar uma história boa que tudo isso vira segundo plano.

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